09 julho 2006

Lendo o mundo


A gente aprende a aprender em casa. Pelo menos foi assim comigo. Sou perguntadeira. Meus pais, respondedores de primeira.

Lembro-me como se fosse hoje de quando aprendi a ler. Nauseada pela ânsia de juntar aquelas letras todas que passavam apressadas enquanto andávamos de carro, eu perguntava: “Nossa, como é que vocês conseguem? Eu fico tonta!”. Meu pai: “Calma, você não precisa ler tudo o que aparece pela frente”. Então, eu tapava os olhos com as mãos, porque fechá-los era pouco. Eu não me continha. Primeiro me ensinam a ler e depois me falam que não é pra ler?! Vai entender a cabeça dos adultos!

Nem preciso dizer que meu primeiro filme legendado foi frustrante. As linhas eram muito longas e eu não me contentava em mover apenas os olhos. A cabeça ia pra e pra também. É, ler, definitivamente, era uma tortura.

Mas, quem diria! Se a vocação de fato existe, eu demonstrei a minha precocemente. Eu dizia “cisnei” porque fazia o paradigma com Disney, que, pra mim, nem com letra maiúscula era. Meu eu infantil achava que disney era um lugar comum, não sobrenome de gente.

No dia em que descobri que testemunha não começava com D, quase caí pra trás. Pra quem sempre “guspia”, o cuspe foi difícil de engolir. Minha mãe sempre me corrigia quando eu perguntava se íamos ao isológico. Na minha cabeça de criança que tudo compara, esse lugar não era nenhum bicho-de-sete-cabeças: um mero prefixo iso- com a palavra lógico. Pra quem conhecia isopor e isolar, isológico era o mais lógico, obviamente. Mas minha mãe dizia: “eu disse, Kandy, que é zoológico”. Errei outras vezes não por ignorância ou teimosia. Era por convicção mesmo. Como ninguém pronuncia os dois o, que outra palavra começava com zo? Desde criança a gente aprende a desconfiar do que é esquisito...

Mas só fui descobrir que tinha um i no fim da imundície na faculdade. Vergonhoso. Mas tanta palavra termina com ice que esse ície até hoje não me convence. Outra esquisitice.

Ainda criança, um dia comentei: “pai, eu não aprendi na escola essa letra da globo”. Eu olhava, olhava e não entendia que aquilo era um G grudado no L inclinadinho. É mais ou menos como os pingüins da Antarctica que parecem uma carinha ou o C branco do Carrefour que todo mundo como uma seta azul. Eu enxergava a Globo com uma letra dela que não tinha no meu alfabeto.

Meu alfabeto, diga-se de passagem, era bem diferente mesmo. Fui alfabetizada com a cartilha Caminho Suave, que trazia de um tudo, exceto o K de Kandy e o Y do meu final. Naquela cartilha, eu sempre me senti incompleta.

Nela, a lição do fá-fé-fi-fo-fu tinha uma faca desenhada na letra F. Sei por quê eu associava o som do f com a letra v. Ainda hoje, quando minha mão vai mais rápido que o pensamento, troco um pelo outro. É tanta faca que sai vaca que eu nem te conto!

Não me lembro a idade que eu tinha quando perguntava essas coisas. Mas me lembro perfeitamente de que nunca fiquei sem resposta. Não para as indagações lingüísticas; para tudo.

Por que alguns fios dos postes têm essas bolinhas no meio?”, “Para os aviões não baterem neles quando pousarem ou decolarem, Kandy”. “Como a gente faz para sair de dentro da Terra?”, “a gente não está dentro da Terra, Kandy, mas em cima dela”. Isso eu levei um certo tempo para entender, confesso. Como via sempre aquelas gravuras do planeta todinho azul, achava que aquela cor era o céu em volta da gente, porque, na figura, o resto era preto e sem forma. Na minha cabeça isológica, o céu era mesmo redondo, de um horizonte a outro, e a gente morava dentro do globo, um desses simples, sem letra estranha grudada e inclinadinha.

Por essas e outras é que a gente aprende a aprender em casa. Sem as pacientes respostas que meus pais sempre me deram, eu não teria seguido a tal da vocação. Hoje mesmo, vinte e poucos anos depois disso tudo, ainda perguntei pro meu pai enciclopédico enquanto assistíamos a tv: “o que é aquilo oval atravessado por uma reta que a gente sempre de cima do Cristo Redentor?”. “É o jóquei clube do Rio de Janeiro, Kandy”.

Não adianta. Eles sempre sabem tudo. Pra minha sorte.


10 comentários:

Anônimo disse...

Este texto me fez lembrar de minha irmã mais nova. Hoje é advogada, mas conta que quando começou a aprender a ler chorava pois eram tantas letras, tantos sons ....eeheheh.

É, não adianta, nossa vida será sempre uma busca constante pelo conhecimento (fato que eu acho extremamente fascinante, não acha ?)

Grande abraço

Anônimo disse...

Kandyyyyyyyyyyyyyyyy!!!
Ri muito em certa parte do texto, porque eu também era adepta do "CISNEI", rs. Aqui em casa todos se lembram até hoje! Eu também tinha um vocabulário próprio: remelho, (acho que já queria falar em inglês), as fases da lua eram: lua banana, lua melancia, lua unha...rs. Mas a pior coisa que essa cabeça- que tb era ruiva na infância- "deduziu" foi a seguinte: uma vez, minha professora do pré ficou doente e mandaram uma substituta. Mas a bruxa estava solta e esta também adoeceu e mandaram então a substituta da substituta. Daí eu cheguei em casa e falei para meus pais que tive aula da "prostituta"... rs. Eu demorei a entender, é lógico, por que eles riam tanto, e por que me pediram pra chamar a "prostituta" de "tia" mesmo, mas a família sempre conta que entre os os 15 netos do lado materno, a de vocabulário mais criativo foi sua amiga aqui.
Sobre a cartilha "Caminho Suave", me lembrei das aulas de Psicologia da Educação: foi duramente criticada, pois o pessoal da FEUSP acreditavam que ela era tremendamente discriminatória e que desestimulava as crianças a estudarem. Eu não sei... Não conheci tal cartilha. Aliás, mesmo sem conhecer ela me causou traumas: eu e a Helô não estudamos com ela... Todo o mundo que eu conheço estudou... Putz! Eu usei uma tal de "Hora Alegre", (gostava dela e acho que esse nome que me fez tão palhaça e amante dos estudos). Já a Helô foi alfabetizada com uma tal de "Cartilha da Pipoca", rs. Cartilha construtivista de "1ª geração", mas que pelo nome é a cara da minha saltitante irmã!
Nossa! Escrevi muito! É que hj estou inspirada, (mais tarde vou postar no meu blog, rs). Mas qdo eu li o cisnei, não poderia deixar passar em branco!
bjs,
Jana
P.S. Peguei seu recado no meu blog. Infelizmente não tenho nariz de palhaço e sim um título de eleitor, o que, hoje em dia, dá quase na mesma... :(

Anônimo disse...

Huahuahuaha...
Meu pai brincava falando que aquelas bolas dos fios eram bolas de basquete... E que uns jogadores muito altos prenderam elas lá em cima....
Lembro-me que a primeiras letras que aprendi foram em casa.... Com minha mãe me ensinando....
E concordo... A gente aprende a aprender em casa.....

Anônimo disse...

Kandy...
faz muito tempo que eu nao passo por aqui... vc me perdoa, né ? haahhahahaha

Muito bom o texto...

Bjs

Anônimo disse...

Caminho Suave... eu me lembro. E sobre dúvidas, quando descobri que o mundo girava, achava que na estrada o carro ficava parado, e a Terra se movia, como num brinquedo que eu tinha. Mas a pior decepção foi descobrir que Quinzena, aquela palavra onipresente nos comerciais do Mappin (Mappin, venha correndo Mappin, chegou a hora Mappin, é a liquidação...), significava tão somente "15 dias". E eu achando que era algo mágico. Forte besta! rsrs

Anônimo disse...

Querida,
fascinante!! Simplesmente fascinante!! Ri muito, muito mesmo. Que delícia, que prazer recordar a infância e reconhecer a importância da família em nossa vida!
Parabéns!!
saudades sempre....

Anônimo disse...

Kandy:

Pipoca, para mim, era "popoca"...
Frango era "cocó"...
Como é bom ser criança... hehehe

Adorei!

Andreia

Anônimo disse...

Kandy, garota que crônica fantástica!
Eu vi o seu blog através de sua mãe na comunidade (orkut)Caminho Suave.
Adorei! Assim como Paulo Freire, você teve a sensibilidade de expressar a sua indignação com o mundo das letras e mostrar que o que nós realmente levamos deste mundo, é o meio em que vivemos.
Parabéns pelos Pais educadores que você tem. Um forte abraço, Roseli Queródia

Anônimo disse...

Me lembrou de qdo eu alfabetizava crianças carentes e não conseguia ensinar a letra A no inicio da palavra para um aluno. Eu falava Abacaxi e ele escrevia Bacaxi, falava Abacate e ele escrevia Bacate e assim por diante... Resolvi passar então para a letra E e qdo cheguei no Elefante ele escreveu finalmente ALEFANTE...
rsrsrs
Qto a sua infância, quero que saiba que foi muito bom ter compartilhado dela com você!
BJS

Anônimo disse...

Kan, amei...show...vai se preparando para a Amanda...o que eu não souber vou pedir pra ela ligar para a madrinha Kandy!!!rsrsrsrsr
beijos