Ali, naquele edifício gelado e transparente, resolvera ser útil à humanidade e, em meio a uma grave crise existencial, decidira doar um de seus rins, pois, segundo seu médico, não lhe faria falta. No entanto, contaminado por valores distorcidos, permitiu-se fazer uma única exigência, afinal, seria uma separação dolorosa: vivera cinqüenta e sete anos em companhia de seu rim, um dos poucos que o aturava, além de seu cachorro e de sua empregada, pois sua ex-esposa já vivia a anos-luz de distância, junto com os filhos, os quadros, as jóias e outras tantas boas companhias proporcionadas por gordas contas bancárias.
— Meu rim só irá para um branco.
— Óbvio que vai para um banco, senhor. Há milhares de pessoas esperando na fila — retrucou a enfermeira, mediante uma compreensão equivocada.
— Eu disse branco, mocinha. Só doarei meu rim se tiver a certeza de que o receptor é branco.
Diante de tais fatos e da insuficiência de órgãos destinados a transplantes, a vontade do paciente foi acatada.
No entanto, quando o médico fez o corte para a retirada do órgão, ficou espantado! Nunca vira nada parecido: o rim era verde, um musgo viscoso, feijão imaturo.
Foi retirado, encaminhado, carimbado, analisado, embalado e transportado pela burocracia a seu destinatário: o receptor alvo agonizava na hemodiálise havia anos.
— O senhor terá o privilégio de receber um rim especial, verde, doado por um dos maiores empresários do país — informou o médico.
— O senhor quer dizer espacial, né, doutor? Verde?! Negativo! Vai saber o que o sujeito comia! Acha que vou receber um rim embolorado?! Pois fico na hemodiálise!
As tentativas para que fosse achado a tempo um receptor para aquele filtro verde foram muitas. Nenhum branco que se prezasse queria receber um rim verde. Todos desconfiavam; hoje em dia, qualidade é requisito básico para qualquer transação.
Quando finalmente a questão parecia resolvida, o paciente apresentou rejeição: seu corpo branco, já pálido, desejava expelir aquele intruso colorido.
o-o-o-o-o
No pós-operatório, o médico achou por bem dar uma satisfação ao burocrata renal:
— Senhor, sinto informar que seu rim foi rejeitado.
— Como assim, rejeitado?! Era um rim de classe, da realeza, coisa importante!
— Se fosse real, seria azul, mas era verde e, por isso, quase ninguém o quis.
— Arrá, você disse “quase”. Isso quer dizer que algum branco foi salvo com ele...
— Eu diria que quase morreu por causa dele, pois, como lhe disse, houve rejeição.
— E?
— E agora seu rim está na última prateleira do laboratório de uma escola pública da periferia, dentro de um vidro de formol, o que provocou uma ligeira alteração de cor...
— Ficou branco!
— Não, preto.
5 comentários:
Até que enfim! Esse eu conheço há um bom tempo, e gostei de reler.
arrasou... ;)
Se precisar, posso utilizar esse texto em trabalho com meus alunos da suplência?
bjs
Jana
é que o rim ainda não tinha amadurecido. Foi isso...
Linda crônica. PArabéns! Um abraço, Lina
De onde vc tirou isso?
Tô rindo até agora...
BJS
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