03 setembro 2006

Para acabar com a sua raça...

O barulho ensurdecedor e contínuo do helicóptero negro daquele famoso plano de saúde era freqüente àquela hora para os pacientes do oitavo andar. Todos os intermináveis dias registravam aquele som. Porém, naquele específico, o som seria diferente: a máquina voadora viria buscar um rim especial, doado por um empresário que se propusera a ajudar o próximo. Estava ali porque fora se submeter a uma pequena intervenção cirúrgica para a retirada de um cinturão de gordura proveniente de anos de ócio, praticados ao assistir aos outros trabalharem por e para ele, num negócio escuso que herdara do pai.

Ali, naquele edifício gelado e transparente, resolvera ser útil à humanidade e, em meio a uma grave crise existencial, decidira doar um de seus rins, pois, segundo seu médico, não lhe faria falta. No entanto, contaminado por valores distorcidos, permitiu-se fazer uma única exigência, afinal, seria uma separação dolorosa: vivera cinqüenta e sete anos em companhia de seu rim, um dos poucos que o aturava, além de seu cachorro e de sua empregada, pois sua ex-esposa já vivia a anos-luz de distância, junto com os filhos, os quadros, as jóias e outras tantas boas companhias proporcionadas por gordas contas bancárias.

— Meu rim só irá para um branco.
— Óbvio que vai para um banco, senhor. Há milhares de pessoas esperando na fila — retrucou a enfermeira, mediante uma compreensão equivocada.
— Eu disse branco, mocinha. Só doarei meu rim se tiver a certeza de que o receptor é branco.

Diante de tais fatos e da insuficiência de órgãos destinados a transplantes, a vontade do paciente foi acatada.
No entanto, quando o médico fez o corte para a retirada do órgão, ficou espantado! Nunca vira nada parecido: o rim era verde, um musgo viscoso, feijão imaturo.
Foi retirado, encaminhado, carimbado, analisado, embalado e transportado pela burocracia a seu destinatário: o receptor alvo agonizava na hemodiálise havia anos.

— O senhor terá o privilégio de receber um rim especial, verde, doado por um dos maiores empresários do país — informou o médico.
— O senhor quer dizer espacial, né, doutor? Verde?! Negativo! Vai saber o que o sujeito comia! Acha que vou receber um rim embolorado?! Pois fico na hemodiálise!

As tentativas para que fosse achado a tempo um receptor para aquele filtro verde foram muitas. Nenhum branco que se prezasse queria receber um rim verde. Todos desconfiavam; hoje em dia, qualidade é requisito básico para qualquer transação.

Quando finalmente a questão parecia resolvida, o paciente apresentou rejeição: seu corpo branco, já pálido, desejava expelir aquele intruso colorido.

o-o-o-o-o

No pós-operatório, o médico achou por bem dar uma satisfação ao burocrata renal:
— Senhor, sinto informar que seu rim foi rejeitado.
— Como assim, rejeitado?! Era um rim de classe, da realeza, coisa importante!
— Se fosse real, seria azul, mas era verde e, por isso, quase ninguém o quis.
— Arrá, você disse “quase”. Isso quer dizer que algum branco foi salvo com ele...
— Eu diria que quase morreu por causa dele, pois, como lhe disse, houve rejeição.
— E?
— E agora seu rim está na última prateleira do laboratório de uma escola pública da periferia, dentro de um vidro de formol, o que provocou uma ligeira alteração de cor...
— Ficou branco!
— Não, preto.


5 comentários:

Anônimo disse...

Até que enfim! Esse eu conheço há um bom tempo, e gostei de reler.

Anônimo disse...

arrasou... ;)
Se precisar, posso utilizar esse texto em trabalho com meus alunos da suplência?
bjs
Jana

Anônimo disse...

é que o rim ainda não tinha amadurecido. Foi isso...

Livia Mata disse...

Linda crônica. PArabéns! Um abraço, Lina

Anônimo disse...

De onde vc tirou isso?
Tô rindo até agora...
BJS