30 julho 2007

Amigo pra cachorro


Quando cheguei em casa hoje, vi a Lua linda e redondinha no céu. Estava tão brilhante, talvez por causa do frio, que me deixei encantar. Mas faltava alguma coisa... Uma Lua assim tão imponente no meio do azul-marinho (que deveria ser celeste) estava silenciosa demais para o meu gosto.

Em noites assim, de Lua calada, sempre me lembro do Apolo. Por razões que talvez apenas Zeus conheça, o Apolo detestava tudo o que habitasse o céu. Latia para a Lua, para pipas, aviões, fogos de artifício, pássaros e balões. Só perdoava as estrelas. Era poético esse meu amigo, um dog alemão muito boa gente, que de cachorro só tinha a fidelidade, o físico e a onomatopéia — tem muita gente-cachorro que não chega aos pés dele.

Ninguém nunca me olhou como ele me olhava, jeito desvelado de dizer eu te entendo sem sequer levantar as sobrancelhas. Aceitava-me triste, entusiasmada, concentrada ou feliz, com os cabelos bonitos caindo sobre os ombros ou todo emaranhado num birote improvisado; de pijamas descombinados ou na elegância de um salto alto. Nunca desfiou uma meia de náilon minha, apesar de ter destruído meu escalímetro. Às vezes cismava em subir na minha cama. E ficávamos cada um com metade, em média uns cinco minutos, até que ele se enchesse de tanto aperto e resolvesse ir para o chão.

Até hoje, foi o único que me enxergou transparente, fazendo-me companhia, sem reclamar, em muitos longos finais de semana em que eu ficava em casa e a família debandava, revoada inquieta. Fazia o supermercado inteiro achar que eu era dona de um canil: "80 quilos de ração? Nossa, quantos cachorros você tem?". "Um", eu respondia. Era único mesmo.

Mal-agradecida que eu só pela gentileza da fiel companhia, premiava meu amigo dourado — melhor seria dizer de ouro — com um banho que encharcava o mundo. O Apolo era enorme. Só assim para abrigar coração tão grande. Íamos ora eu e ele, ora ele e eu, não se sabe quem levando quem para onde, rumo à saga de tentar fugir ou desencardir toda aquela área peluda. Eu sempre saía mais molhada, e ele, mais limpo. É o que dá misturar leão com cachorro.

Em compensação, eu o deixava andar no meu carro popular. Abaixava o banco e abria o porta-malas, convite perfeito para um passeio, porque, na coleira, era impossível andar civilizadamente com aquele ser mitológico fora dos portões de casa. Os quase noventa quilos dele sempre arrastavam os meus cinqüenta.

Invariavelmente, porém, acabávamos sempre no mesmo lugar: a casa da Sonia, uma dachshund muito da posuda, apesar do tamanho, que se dependurava nas orelhas do Apolo com uma coragem espantosa. A Sonia guardava o consultório da Florinda, criadora de são-bernardos e veterinária do bairro, a paciência em pessoa para limpar o tártaro daquela bocarra de cavalo que só o Apolo tinha. Era tratado no chão mesmo, sobre o cobertor dele — um de solteiro, que ele sempre carregava com a boca, dobrado, sem arrastar no chão —, visto que colocá-lo na mesa era missão para alguém bem mais forte do que eu e a Florinda juntas.

Não sei quantas tardes de sábado eu passei naquele consultório esperando os quase noventa quilos acordarem da anestesia e caminharem com as próprias pernas para o porta-malas do meu carro. Não sei quantas vezes levei o carro para lavar depois de ter sido marcado tão carinhosamente por montes de babas alegres por voltar para casa, nem quantos chumaços de algodão gastei para limpar aquela vastidão de orelhas sem fundo ou quantas foram as tentativas de fazê-lo parar quieto para trocar os curativos da orelha operada para retirada de coágulo.

Quanto trabalho!, todo mundo dizia. Não entendiam que, quando a gente ama verdadeiramente, se doa de um jeito desinteressado e espontâneo, que compensa supostos esforços que nunca existiram, nada mais que uma troca: eu cuido de você, você me ensina a ser melhor.

Estabanado, guloso, divertido, desengonçado, carinhoso, folgado e sem noção de direção, proporção ou espaço, esse meu cachorro me ensinou a semântica de sua denominação: era mesmo um animal para estimar, meu bicho de estimação por oito anos e meio.

Não me lembro o ano em que o perdi, só sei que faz tempo, muito pra mim. A saudade é mesmo assim: se estica até não poder mais quando o amor é maior que a gente. O Apolo morreu dormindo, depois de, sem saber, termos nos despedido rolando longamente pelo chão em brincadeiras afoitas.

Hoje eu entendo por que ele não latia para as estrelas.


15 julho 2007

Absurdo

Eu deveria ser fútil e um tantinho burra, daquelas que falam besteiras sem perceber, para quem referência é tão-somente uma carta elogiosa assinada por um ex-patrão qualquer, em cima do qual já deram — ou para quem já deram, tanto faz.

E deveria ser menos dedicada às pessoas. Falta-me um tiquinho de egoísmo. E roupas mais ousadas, decotes mais profundos para evidenciar seios siliconados que eu não pretendo ter. Eu deveria me enquadrar, sabe? Aquela coisa de padrão: uma etiqueta imaginária de ÓBVIO bem legível pregada na testa. Trabalho nenhum para entender.

Não poderia mais sacar piadas de primeira ou ser espirituosa, porque contexto teria de ser apenas sinônimo de legenda curta, do contrário eu não conseguiria ler, pera lá! Deveria me contentar com qualquer tá e monossílabos do gênero em vez de buscar explicações, deixando todas as incógnitas restritas aos livros de Matemática. Nada de pensamentos complexos.

Ser mais consumista e pensar só em moda, sapatos e batons. Ser menos bem-sucedida, talvez com um pé no limite do cheque especial, carregando dívidas homéricas provenientes de juros acumulados em trezentos cartões de crédito abarrotados de gastos dispensáveis que, elementar, algum idiota se achando indispensável pagaria para mim com sorriso nos lábios e sussurros de "gostosa".

Eu não deveria ter cursado (e aproveitado) uma boa faculdade nem aprendido outra língua. Errei feio. E deveria parar de usar um vocabulário erudito conjugando verbos certo. Anômalos deveriam ser meus neurônios a ponto de assassinar o português com doses generosas de ignorância pura no agora sim e no daqui a pouco também.

O ideal seria me despir sem pudores e com mais freqüência para qualquer homem que balbuciasse clichês camuflados em sorrisos interesseiros. Junto com a roupa, eu também teria de deixar meu senso crítico. Essa coisa de questionar, analisar, ter opinião própria... chatices assim não estão com nada. Isso, falar mais gírias permeadas de uns palavrões também me faria bem.

É, eu deveria mesmo passar mais tempo em salóes de beleza, em cima de um salto quinze de ponta bem fina, que me faria andar feito uma galinha limitada que não pode afastar as patas mais que dez centímetros para não perder o equilíbrio. Mascar chiclete de boca aberta e usar bolsa minúscula de marca carérrima permeada de cristais Swarovski dentro da qual só coubesse um rímel, tudo de que preciso.

Deveria abolir de meus comportamentos conhecimentos políticos e noções de cidadania, para quem ecologia seria apenas a ciência que estuda o eco, o que, sem dúvida, provocaria umas risadinhas masculinas certamente acompanhadas de desejo.

Seria proibido saber que país fica onde, quantos continentes tem o mundo, o que é Meridiano de Greenwich e qualquer verso do Hino Nacional. Cantá-lo inteiro, então, nem pensar! Muito menos saber o significado de "plácidas", "retumbante", "penhor" e afins... caso para internação. De preferência em um spa.

E essa coisa de se virar nas emergências também deveria acabar. A solução seria ter na agenda do celular cor-de-rosa com adesivo de menina superpoderosa uma lista de telefones masculinos com quem já tivesse transado, para quem ligar com voz de desamparada e entonação infantil pedindo uma ajuda inocente no meio da rua do outro lado da cidade.

Eu teria de aprender a fazer cara de interrogação quando fosse a algum lugar cultural, perguntando mais durante as sessões de cinema o que está acontecendo no filme. Interpretá-los está definitivamente fora de cogitação.

Seria necessário doar meus livros para, no lugar, colocar vários CDs de axé e pagode, revistas femininas com conselhos picantes sobre posições sexuais ou testes de múltipla escolha cientificamente comprovados para avaliar minha auto-estima, se sei cuidar dos meus namorados, se uso o perfume certo ou se sou capaz de segurar um cara na cama.

Eu deveria ter nascido de-vez-em-quando no lugar de ter nascido constância, mulher para ficar em vez de mulher para amar. Tinha de saber tratar os homens como objetos em vez de cogitar considerar o que sentem. Nunca pedir por favor por educação, mas só quando fosse preciso fazer manha. Ser uma daquelas namoradas bem grudentinhas, que ligam quinhentas e cinqüenta vezes por dia sem assunto, só para trocar respiração, e que andam rebolando e sabem empinar a bunda como ninguém.

Teria de parar de ler manual de apetrechos eletrônicos para, com a mesma voz desamparada e infantil das situações de emergência, pedir para o namorado da vez — que, diga-se de passagem, eu teria de aprender a chifrar — se sentisse poderoso e inteligente ao decifrar os três botões de power, menu e reset.

Deveria falar hormônios e comer com os olhos, jogando meus longos cabelos para lá e para cá feito comercial de xampu em vez de tentar evidenciar sentimentos sinceros e questionar minha solidão todo santo dia. Jogar mais e transparecer menos, exceto nas blusas, porque o vulgar nunca foi tão valorizado, nós sabemos.

Quem sabe assim eu não constatasse que beiro mesmo o absurdo.





07 julho 2007

E alguém se apaixona hoje em dia? (diálogo entre textos)

I


"— Você já se apaixonou de verdade?
— Sim, já.
E você contou pra ele?
Ele nunca soube.
E por que você nunca contou?
Há coisas que não precisam ser ditas."

Em busca da felicidade. República Theca/Alemanha (2005).
Direção:
Bohdan Slama.


Ele não a via, e ela sabia. Ele nunca soube. Talvez nem o nome dela soubesse. Mas dele ela sabia cada contorno; sempre tivera boa memória. A dele é que era dispersa. Tudo nele era muito nebuloso. E ela nunca gostara de sol. Sempre silenciosa, preferia a intensidade da paixão à claridade de qualquer verão. Disso ele também não sabia. Ela nunca lhe disse.



II

"Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será."


"Não se mate",
de Carlos Drummond de Andrade.
In: Brejo das almas. São Paulo: Círculo do Livro, 1996, p. 111
.


Hoje ela olhou para ele com aquele jeito de interesse sorrindo de canto. Ele, feliz, andou suave em reciprocidade a manhã toda. Até vê-la olhando do mesmo jeito interessado e sorridente para o melhor amigo dele. Amanhã não olharia mais para ela nem imaginaria mais os beijos que dariam. Depois, ninguém mais soube dele.



III


"Amores que puderam ter sido e não foram"


Gabriel García Márquez.
In: Memórias de minhas putas tristes.
Rio de Janeiro: Record, 2005.


Enquanto ela dançava alegremente remexendo as saias com as pontas dos dedos, era observada por eles. Para cima e para baixo iam as saias e os olhos dela. Ela era mesmo cheia de amores que podiam ter sido e não foram. Só para ser admirada, nunca amada. Talvez por isso sua coreografia fosse tão boa. Dançava conforme a música.



IV

"Encostei-me a ti, sabendo bem que eras somente onda.
Sabendo bem que eras nuvem, depus minha vida em ti.
Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar, quando caí."


"Epigrama n.º 8", de Cecília Meireles. In: Viagem vaga música.

3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 86.

Aparecia de vez em quando, vasculhando as gavetas com o olhar inquieto. Tinha esquecido algo, sempre esquecia. E por isso voltava. Não por ele. Liberdade demais presa num corpo bem-feito, isso ele entendia. Até o dia em que ela voou. O que esquecer ali, não havia. E, mesmo no chão, isso ele entendia.