25 janeiro 2007

Entrada franca

Para Eduardo Lima,
que tem olhos lindos
quando estão abertos...


Primeiro abra os olhos e tenha coragem, porque você não vai encontrar tudo como deixou.

Levante a cabeça e saia do lugar. As coisas mudaram, isso é fato. Encare-o sem perguntas, porque elas atrapalham demais.

Mas, cuidado! Não tropece nos próprios passos na ânsia de ver novidades. Acordar leva tempo.

Tome um copo d’água enquanto tenta encaixar as peças, mas, por favor, pare de bocejar. Você já dormiu tempo demais.

E todos aqueles jornais que se empilham lá fora? E as xícaras sujas de café de ontem transbordando na cozinha? E todo esse silêncio que desperdiça minutos? Os ossos doem, eu sei. Mas é preciso engolir esse amargo da boca e parar de ruminar desgosto.

E apagar lembranças, e curar ressacas, e tomar atitudes, e ir para algum canto, para deixar a luz entrar.

Você precisa se mexer! Parar de tratar a vida como pão fatiado, que acontece em capítulos e precisa ter final feliz. Geralmente não tem, aceite.

O cansaço é inevitável, nunca imbatível. Mas você desiste, porque a fraqueza acarpeta sua sala sem permissão. Olhe pra você, assim, tão miserável por tentativas fracassadas de suicidar desilusões. Em vez disso você as alimenta como animais de estimação. Covarde.

Não investigue sua casa tentando achar motivos. A culpa não é dela; é sua, que se machuca toda hora com essa descrença podre que aprendeu em algum lugar escuro não sei com quem.

Você ficou sozinho tempo demais com todas as mentiras, o descaso, o azar, a perda. E se afundou nessa torpeza nauseante por não saber nadar. Não foi capaz de pedir socorro...

Ninguém te salvou, eu sei, porque você mesmo matou a esperança e se trancou aí, nesse rancor bruto e irritantemente maciço, sem deixar ninguém entrar.

Não adianta, não há pra onde fugir. Uma hora você vai ter de enfrentar tudo isso mesmo, querendo ou não. E a hora é agora, porque parece que você acordou.

Diga-me que você abriu os olhos, vamos, diga-me que você finalmente abriu esses olhos...

Porque aí vai faltar pouco pra abrir essa maldita porta.



15 janeiro 2007

Aquilo que em mim toca





O piano hoje jaz na sala, móvel inútil, imponente e aposentado. Dorme quieto num dia-a-dia conturbado que olha para ele com uma injustiça muda.

Mas ele já foi ativo, já ajudou algumas pessoas a entender e a apre(e)nder música, já animou aniversários e acompanhou cantorias — cavalheiro, como sempre.

Já pensou se ouvíssemos melodias tocadas ao piano no primeiro beijo, em despedidas, nascimentos, nome na lista de aprovados no vestibular, decepções amorosas, olhares interessados, conquistas e céu azul?

O piano é a trilha sonora perfeita para bolo de chocolate em dia de chuva, rumores abafados por melancolia, amores perdidos em páginas de diários, reflexões demoradas em qualquer janela. Embala viagens de trem, musicando a paisagem; dá ritmo a qualquer descompasso, dor de cabeça, constatação infeliz, conta de luz.

Ele não precisa ser de cauda, alemão, austríaco ou de marca boa. Pode ter teclas amareladas, tampo trincado, madeira opaca, pedal engasgado. A melodia que emana toca a alma, como se isso fosse inato ao ser humano. E são tantas bailarinas rodopiando nas veias clássicas que fica difícil não melodiar momentos — mesmo que na imaginação sem partitura.

Acordes ao piano são pensamentos pingando, brisa em dia quente, água escorrendo pela pele, massagem nos nervos, passos apertados, suspense, abraço caloroso e beijos apaixonados. É trilha sonora para viver. Qualquer coisa.

Sou filha, sobrinha e prima de professoras de piano, mas tudo que sei tocar são palavras, embora seja mais hábil em tirar sons de seus sentidos que propriamente de sua sonoridade. Não obstante minha incapacidade para debulhar qualquer instrumento, minha vocação musical é o canto, mas ainda não tomei vergonha na cara para ir estudar técnicas vocais, embora a vergonha apareça em minhas bochechas quando canto em público. No entanto, tudo muda de figura se houver um piano em cena. Acompanhada por um, eu viro uma sem-vergonha, porque ele é tão mais importante, que fica mais em evidência que eu.

Seu som me conforta, como se as notas fossem todas estofadas e macias, formando nuvens onde consigo encostar a cabeça e soltar as preocupações.

Se mais pianistas povoassem o planeta, se pudéssemos ouvir com mais freqüência o piano imaginário que toca nossa intuição, se os acordes desse instrumento compusessem nossos sentidos, haveria mais poesia e sensibilidade no ar.

Quem dera ele musicasse o mundo, espalhando mais som àqueles que se recusam a ouvir até mesmo o pulsar de toda a sinfonia de vida que jaz dentro de si.


08 janeiro 2007

Balada de um coração desconcertado

Para ela, todo homem era um canalha. Todos mentiam, dissimulavam, escondiam-se. Ora no medo, ora na covardia.

Para ela, todo homem era menos homem do que podia ser: não olhavam no olho dizendo com o olhar o que de fato o olho via. Passavam outra mensagem para enganar o cérebro. Deles e dela.

Para ela, todo homem tinha verdadeira paúra de ser verdadeiro. Não se sentiam à vontade nus. Que fossem tímidos, vá lá, mas assim, tão irritantemente inverídicos? Difícil de acreditar que fosse natural. Eles eram naturalmente assim, digamos, esquisitos. E, para ela, a esquisitice não parava aí: eles tinham códigos próprios, em sua maioria indecifráveis, capazes de concorrer em grau de dificuldade com quaisquer hieróglifos. Isso para não falar da caligrafia. Eram mesmo ilegíveis.

Para ela, todo homem lavava o rosto de manhã com uma porção generosa de complicação, ainda que com cheiro de hortelã. Mas eles também eram tão absurdamente objetivos que o paradoxo virava um nó gigante e para sempre indesatável, de enforcar qualquer tentativa de compreensão.

Para ela, todo homem enganava, traía, se aproveitava — das situações e dela. Corriam da fidelidade como se todos os dias fosse São Silvestre. Nisso, ela admitia, eles eram bem rápidos, assim como no raciocínio e na arte do sumiço.

Para ela, todo homem não valia nem um dos números do telefone dela, que, infelizmente, não tinha zero. Tinham incertezas flutuantes a deriva, desejos múltiplos e simultâneos por todas as mulheres do mundo, paixão por jipe na garagem, dicionário próprio, descontrole emocional impetuoso ou controle insensível e frio das próprias emoções. Todos uns malabaristas desequilibrados e mulherengos, com alergia a compromisso ou ao simples conceito de exclusividade.


Para ela, todo homem era isso: genética embutida num DNA distorcido e infeliz, numa química mal explicada que podia explodir a qualquer momento, sem manual de instruções. Sempre querendo impressionar com uma espontaneidade premeditada, mas incrivelmente perfumados num fanatismo esportivo de dar nos nervos.

Para ela, todo homem era generalização, conteúdo pouco original diluído em massa, estatisticamente comprovado como sendo de valor questionável, que não merece aplicação ou investimento. Tinha cansado de ver casos e mais casos da espécie que, mais dia, menos dia, apresentavam os sintomas. Mas quem caía doente era sempre ela. Por isso tinha desistido de antídoto. O caso era mesmo crônico.

Para ela, todo homem era uma decepção em potencial quando não um doido neurótico. Uns passivamente calados, morando no mundo aéreo e distante das idéias; outros tagarelas insistentes soltando insensatez a torto e a direito. Era tão mais fácil falarem a verdade, abrirem o jogo, os olhos, o coração; dizerem sinceramente o que sentiam, com todas as letras, sílabas, palavras, gestos, beijos e abraços. Para ela, os homens não sabiam abraçar senão o próprio egoísmo e não se esforçavam para entendê-la com o mesmo afinco com que tentavam tirar a aliança do dedo enquanto escondiam a mão no bolso.

Para ela, todo homem era um joão-vai-com-os-outros, disparando intimidades hiperbólicas em rodas bêbadas de amigos sóbrios demais para saber que ela existia.

Mas, um dia, sua teoria foi traída pela prática, e ela ouviu um olhar sincero vindo em sua direção. E viu palavras tão descomedidamente reais atingindo suas inquietações, que tremeu. De medo ou de covardia, embaraçada em seu próprio vocabulário. E sentiu-se complicar, dizendo com o olhar coisas diferentes do que a boca dizia com gosto de hortelã. Travou sua espontaneidade, engoliu a caligrafia em monossílabos ressecados de timidez, soltou disparates e refreou a sinceridade numa paralisia incrédula. Não podia mesmo ir falando tudo assim, aquele monte de sentimentos em dia de feira, porque isso passa outra mensagem para o cérebro deles, o dela sabia.

Daquele dia em diante, para ela, todo homem era apaixonantemente desafiador. Então, ela se desequilibrou de seu malabarismo defensivo e deixou-se cair. Inebriada, caiu numa particularidade, dessas de neutralizar impressões. Ficou tão desconcertada com aquela exceção que nunca mais teve conserto. E, mesmo suspirando dúvidas, respirou uma certeza absoluta: ele podia ser homem, mas, para ela, ele era único.


06 janeiro 2007

A romã e a Rute

Todos os anos, no Dia de Reis, eu como romã e separo três carocinhos, um para cada rei mago. Peço a eles que nunca me deixem sem algum dinheiro na carteira, centavos que sejam. Não sei se é a superstição ou o quê, mas tem dado certo.


O problema sempre é o mesmo: achar a romã. Este ano, no entanto, nem deu tempo de a expectativa virar problema, porque a romã veio quase voando parar na minha mão. Há quem diga que é providência divina. Mas foi a Rute, o que dá no mesmo.

A Rute trabalha na mesma empresa que eu, mas em outro prédio. É esforçada, bondosa, espontânea, sorridente, prestativa e poética, porque faz aniversário no Dia dos Namorados. “Vou te dar a romã mais bonita que tiver no meu jardim”, ela disse, quando perguntei a ela se ela sabia quem poderia me arrumar uma romã.

Por eu não estar acostumada a essas preferências, esse tipo de frase me emociona. E, para ser mais Rute do que já é, a Rute me encontrou no refeitório, na hora do nosso almoço, e me deu um pacotinho azul com fita verde. Era uma romã redondinha de presente.

A Rute diz que eu faço muito por ela ensinando análise sintática e tirando todas as dúvidas de português que ela tem. É, eu a ajudo a redigir as cartas, a revisar releases, explico gramática, descomplico as regras e a incentivo porque eu sei o quanto de Rute ela tem: uma bondade imensurável que não cabe nem em Itu; um olhar de compaixão que abraça todo mundo; uma vontade instintiva de abrandar qualquer aflição, solucionar impasses e desfazer nós; um esforço agigantado pela determinação de progredir; uma forma muito particular de acolher o próximo conhecendo-o ou não, sem qualquer tipo de preconceito, palavra que Rute não conhece. Na sua ingenuidade angelical, a Rute não poderia ter um nome mais de acordo, porque, mesmo baixinha, ela é enorme.

Então, quando olhei para aquela romã ontem enquanto eu caminhava de volta para o prédio onde trabalho, decidi que ela não poderia ficar só comigo, porque isso não combina com ser Rute. A romã vai ser dividida em quantos pedaços der, para que todo mundo possa fazer seu pedido para o rei mago preferido. E todo mundo vai ter no mínimo uns centavinhos na carteira o ano inteiro, porque a Rute merece que a bondade se espalhe, que a felicidade floresça, que a boa vontade dê frutos assim tão redondinhos.

Ela diz que o pouco que ela faz para mim não é suficiente para me agradecer pelo muito que eu faço por ela. A Rute é que não sabe que tem um tudo bem genuíno e desmesurado dentro de si. E que pode qualquer coisa, a hora que quiser.

É por isso que eu acho que todo mundo precisa ter uma Rute na vida. Porque aprender a ser Rute é um dos desafios da humanidade.