03 setembro 2010

Intervalo

"Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que a morte nos separe."


Cansamos os dois.

Um do outro.

Seu jeito infinito de pensar no sem-fim emudeceu minha concisão. Minha forma apressada de antecipação amarrou sua liberdade de passear em probabilidades. E ficamos ambos aprisionados no frio que habita o estômago e na aridez que seca as palavras. Falamos apenas silêncio, tão imenso ele, que abraça um milhão de interpretações. Perdemo-nos ainda mais.

Um do outro.

De você, ficam sentimentos que o coração quer guardar, mas que a razão estrangula, como se ficasse infecunda e raivosa de repente. De mim, ficam a impaciência, a precipitação, o presságio de um futuro que desconheço. Ambos fomos acuados pelo medo. De amar. Um, mais; outro, demais. Ficamos ausentes na própria existência.

Um do outro.

Descansamos os dois.

Cabo da Roca, Portugal

Para Desirée, pela penúltima frase, que semeou o texto.

16 julho 2010

Isto é só

Um senhor em Barcelona, batendo à porta de si mesmo

A gente só tem a gente. No fundo, lá no fundo, essa é a realidade. Qualquer outra interpretação é espera. No outro. Que o outro fale, que o outro perceba, que outro entenda. Não entende. Porque não é a gente. Imagina que entende, mas não enxerga porque os olhos são outros, ainda que da mesma cor.

A gente só tem um: o íntimo ou o espírito, o pensamento ou o sexto sentido. Fala um de cada vez, mas a gente cisma em ensurdecer por dentro e ouvir um outro. O alheio parece mais sábio, tem mais razão. Fala mais alto.

Qualquer boa vontade alheia é lucro. Ou caridade, compaixão, gentileza, consideração. Com um pouco de sorte, amizade; mais sorte ainda – muito mais! –, amor. Mas tudo isso não é da gente, é de quem o tem. Porque a gente, ah, a gente sabe, no fundo, lá no fundo, que não tem ninguém.


P.S.: Escrevi este texto no interminável trânsito paulistano, nesta noite chuvosa de sexta-feira. Parei em uma padaria e tive a sorte de encontrar pão de laranja quentinho. Ao sair, dei de cara com uma obra grande e li na placa do arquiteto o nome da minha melhor amiga-irmã. Isso me sacudiu, sobretudo porque passo ali diariamente e nunca havia visto a tal placa. Talvez, no fundo do no fundo-lá no fundo, a gente tenha alguéns, sim.

10 maio 2010

Bad romance

A Lady Gaga pode ser estranha, over, super, até mega. Mas temos de dar o braço a torcer: ela fala algumas verdades em suas letras que ninguém tem coragem de falar.

Ela descreve bem o que é um bad romance, a estranha liberdade que isso provoca. E, infelizmente, em algum momento da vida, todo mundo experimenta um. Porque amar mal é mais fácil, exige menos comprometimento e nenhuma verdade. A pessoa fica solta numa nuvem de confusão e acha a neblina comum.

É mais instigante amar um cafajeste ou uma vagabunda. Mais emocionante trair. Mais masoquista saber-se traído e continuar com quem foi infiel, alimentando aquela esperança besta de que o outro muda. Dá menos trabalho imaginar a mudança alheia do que promover a própria.

Um romance assim torna confortável a anulação. É cômodo ignorar a si mesmo em vez de ignorar o outro para sempre, mandá-lo passear ou sumir de vista. Ao contrário, aqueles que curtem um relacionamento assim têm o dom da contemplação: assistem a tudo de olhos bem abertos como se fechados estivessem, porque sabem que a dor de ver é maior que a de apenas desconfiar. E, para que fique tudo assim, imutável e quieto, com a mordaça do pensamento calam a intuição. Mentem para si mesmos.

As pessoas amam mal. Amam nas coxas, de qualquer jeito, empurrado, no modo automático, numa espécie de eterno stand by, na tentativa de congelar a situação e não deixá-la ficar ainda pior. Aos poucos, contentam-se cada vez com menos. Não se esforçam nem se respeitam. Fingem. Dissimulam. Mentem. E não sentem remorso.

É. Não sentem.

O beijo de Judas - esculpido na fachada da Catedral da Sagrada Família, de Gaudí
Barcelona - Espanha

22 janeiro 2010

Depois de amanhã

Engenho Central - Piracicaba - SP


Somos um galpão que se esvazia todos os dias. Na vastidão do chão imenso, é comum sentirmo-nos pequenos, porque ele reflete o que inexiste: o que gostaríamos de ter sido, o que deveria ter sido dito, as histórias que não vivemos, as pessoas que não conhecemos, os lugares que não visitamos, os gostos que deixamos de experimentar, as páginas que preferimos não ler.

Somos um galpão que se enche todos os dias. Na agonia da falta de espaço, é comum sentirmo-nos pequenos, porque ela reflete a bagunça que somos: as ideias inacabadas, os dias intermináveis, as indecisões que se arrastam fazendo um barulho incômodo, distorções, indisciplina como fronha do travesseiro, imaturidade misturada a uma sopa insossa.

Pequenos nós somos, por mais adultos que achemos ser. Porque enchemo-nos e esvaziamo-nos dia sim outro também, encontrando espaço para conservar o que acabamos de descobrir, ao mesmo tempo que despejamos em caixas robustas o que poderíamos ter aprendido.

Apesar de menores, entretanto, podemos ser grandes nas intenções, no porvir, no calendário que ainda não estreamos. Porque é disso que somos feitos: de um eterno preparo para o breu à nossa frente, que, sabemos, um dia vai se descortinar...