29 dezembro 2007

Tudo de novo


Tem gente que vai dizer que entra ano e sai ano e tudo continua igual. Tem gente que vai alegar que está tudo na mesma porque o tempo é sempre isso que aí está, o calendário é que muda. E tem gente que justifica a desesperança afirmando que nada como um dia após o outro.

Como você gastou o tempo neste ano que chega ao fim? Saindo para trabalhar todos os dias, tentando ficar indiferente ao trânsito, à má educação das pessoas e à intolerância que escolheu este mundo para morar? Ou enfrentando filas, enrolando pensamentos em salas de espera, colecionando nãos, agora não dá, mais tardes e daqui a poucos? Será que seus dias foram todos iguais, feito as páginas padronizadas impressas nas agendas distribuídas como brindes nessa época?

É melhor acreditar que você soube usar bem o seu ano que agora acaba. Que você conheceu novas pessoas, ousou um pouco, engoliu o não e foi atrás de um sim, chorou de tanto rir, viu beleza no que é singelo, olhou para o céu de um jeito demorado, tomou chuva, viu uma criança nascer ou comemorar o primeiro aniversário, viajou para lugares tímidos e encantadores, aprendeu a tirar fotos direito, fez algum curso proveitoso, olhou profundamente para alguém e recebeu um sorriso em troca, vibrou com novidades, assistiu a um filme inesquecível, mudou de idéia, enterrou lembranças desnecessárias, amou de verdade mesmo sem ter sido correspondido, comeu pão quentinho estalando de gostoso, descobriu outros blogs legais, arriscou uns passos de dança, redescobriu uma música da adolescência, parou de se preocupar em impressionar, elegeu mais um ou dois intérpretes favoritos, amou de verdade e foi realmente amado em uma doce retribuição, fez caridade para aliviar a dor de alguém, voltou atrás em decisões precipitadas, soube pedir desculpas, conseguiu perdoar, aprendeu a se maquiar sem manchar tudo e a se barbear sem se cortar... aprendeu a não se machucar mesmo aproveitando a vida intensamente.

É melhor acreditar nisso tudo para lembrar com saudade do ano que passa e se esforçar para ter momentos assim no ano que vem. É preferível lembrar do que deu certo para repetir a fórmula amanhã. Por que não entender que é possível ser feliz agora? É tão fácil! A felicidade está também nas coisas simples, o olhar é que se desvia para o inalcançãvel, porque é complicado demais admitir que é suficiente o que se tem.

Não é para não querer mais nada. Ano novo combina com lista de desejos. É para conscientizar-se de que aproveitar os momentos ao máximo, no simples, mesmo em preto-e-branco ou ao contrário, um pouquinho diferente do imaginado, pode ser divertido também. Se acabou o sorvete de chocolate, por que não se contentar em dar outro sabor à vontade? Ano novo combina com experimentar o novo. Se o domingo não amanheceu ensolarado, qual o problema em ver a chuva cair com aquele barulhinho de embalar qualquer preguiça? Ano novo combina com adaptação. Se não recebeu flores o ano todo de ninguém, por que não ir a uma floricultura bem colorida e comprar umas bem lindas para enfeitar a casa? Ano novo combina com criatividade. Se foi engolido pelo tempo e não conseguiu ver todas as pessoas de quem gosta, por que não inverter as prioridades para acalmar o coração? Ano novo combina com mudança. Deixe neste que termina o mau humor, os ressentimentos e a reincidência de equívocos.

Se entra ano e sai ano e você continua igual, é porque não está vivendo direito. Quando a gente vive direito sempre aprende alguma coisa, muda um pouquinho, aprimora o gosto, revê conceitos, fica mais tolerante às diferenças, encontra graça no azul e no amarelo, mesmo morrendo de vontade de viver vermelho ou verde, faz novas amizades, expande mais o coração, respira fundo e conta até mil se preciso for, lapidando a civilidade, sorrindo mais e revestindo-se de boa vontade para olhar sempre para cima e ver que o céu é mesmo lindo, e que ele vai continuar lá no ano que se inicia. Basta aprender a apreciá-lo.


Feliz ano-novo a você que me lê e não me conhece, a você que me conhece e que me lê, a você que caiu aqui por acaso, a você que se esforça para melhorar.

13 dezembro 2007

Um livro para chamar de meu

A convite do Vinícius, o Devorador de Livros, escrevi um texto sobre o livro que mais me marcou. Foi uma literatura que influenciou bastante meu jeito de escrever. Lá no texto eu explico por quê.

Vai lá dar uma olhada e aproveitar para conhecer o blog do "Elfo". Ele é mesmo encantador (o blog e o autor).

08 dezembro 2007

Linguagem

Para Marcelo, pela sugestão do tema e pelo desafio que ele é.

Salvador - Bahia

"O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.

O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.

O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar."


Carlos Drummond de Andrade, "O mundo é grande".


O mundo é grande. O mar é grande. O amor é grande. E tudo cabe no breve espaço de beijar.

No breve espaço de beijar cabe o universo. Um universo de sensações, um universo de expectativas, um universo de desejo que vai e vem, que percorre o corpo várias vezes, provocando ondas de calor como se todos os segundos fossem verão.

Mas, mesmo sendo universo, no breve espaço de beijar só cabem dois: dois pares de lábios, dois pares de olhos fechados, duas línguas, dois corações, duas pessoas, dois jeitos, duas improvisações.

No breve espaço de beijar cabe mesmo o mar. Um mar de água na boca. Vontade de mais, de sempre, de grude, de amasso, de sexo.

No breve espaço de beijar cabe muita volúpia, muito movimento, toque e tesão. Cabe uma aquarela completa que dança no pensamento vazio enquanto o corpo se enche de... mundo.

No breve espaço de beijar cabe troca. De saliva, de textura, de sentimento, de um mar de silêncio, apesar da trilha sonora que toca na imaginação, porque um beijo pára tudo ao redor só para ser apoteose, mesmo quando considerado mera alegoria.

No breve espaço de beijar cabe o que a gente ainda não sabe. Não sabe se é amor, se é paixão, química, tentação ou só impulso. Cabe o indefinível, porque beijar é mais importante do que qualquer tentativa de dicionarização.

No breve espaço de beijar cabe estréia. O primeiro, o segundo, o terceiro, o milésimo. Todos premières cheias de glamour, porque as variáveis são muitas e as combinações, inúmeras: variam as bocas, os lábios, os amantes, os dias, os cenários, os motivos — um beijo nunca é igual ao outro.

O breve espaço de beijar é tão enorme que nele também cabe paradoxo: brevidade e permanência, elegância e desalinho, calma e voracidade, fome e satisfação. Congela a memória mas faz ferver o sangue. Em um beijo cabe um mundo de contrariedades, de opostos que se atraem, de algo em comum.

O beijo é intenção declarada, ponte para o outro, uma invasão consentida mesmo quando roubado, apetite incontido, jeito ousado de mostrar com a boca o que os olhos querem e não alcançam. É sei lá, deixa para lá, o lá de dentro e o lá de fora num diálogo mudo que diz tudo aqui e agora.

Beijar desequilibra, faz perder o rumo, a cabeça, a razão, mas não a oportunidade. É mesmo um espaço infinito ainda que acabe rápido, deixando a respiração ofegante e o corpo todo falante, já que a boca está ocupada demais para pronunciar sílaba. Um beijo é língua comum embora deixe a gente sem palavras. Beijo é linguagem. Desvia todos os sentidos para o paladar. É gosto que não se discute ao sabor de cada par.

Por isso que o beijo contém o mar, o céu e o que mais for possível imaginar. Porque qualquer beijo é um gigante mostrando horizontes inteiros para a gente desvendar.

O mundo é grande. O mar é grande. O amor é grande. E tudo, absolutamente tudo, cabe no breve espaço de beijar.

24 novembro 2007

Correspondências


Corresponder, no mundo de hoje, é, sem dúvida, uma arte, pois, segundo algumas acepções do Houaiss, significa "estabelecer ligação com (alguém) por meio de carta", "apresentar relação mútua", "responder de maneira semelhante", "retribuir".

É uma arte, primeiro porque poucos hoje em dia estão aptos a escrever cartas como se deve, com bom português e redação cuja leitura dá vontade de devorar. Segundo, porque essa era pós-industrial se mostra cada vez mais despersonalizada e individualista, e individualismo não combina com retribuição.

Assim, nada corresponde às expectativas. A mesa que arranjam para você no restaurante nunca é a que você escolheria, o amor da sua vida geralmente ou não sabe que é o amor da sua vida ou, o que é pior, mesmo sabendo, não corresponde. A empresa para a qual você trabalha não valoriza você, por vezes te explora e, novamente o que é pior, finge que você não existe e que não precisa de você. O pãozinho da padaria não vem torradinho o suficiente ou vem branco demais. A marca que você procura no supermercado não tem. Param de fabricar sua bolacha predileta, o batom que você encomendou por catálogo vem numa cor diferente, a conta do celular aumenta de um jeito que te pega de surpresa, as fotos que mandou revelar não vêm no papel fosco que você pediu, a empregada esquece de limpar o beiral da janela, essas coisas. Corresponder é mesmo difícil.

Houve uma época em que eu me correspondia muito com as pessoas, na primeira acepção. Escrevia cartas gigantescas com essa minha linguagem peculiar, sem rascunho, de modo mais personalizado que eu. Como diz a reportagem da revista, escrever cartas aos outros, para mim, "tem poderes especiais", porque uma carta "pode ser mais íntima e tocante que uma conversa. Pode ser mais pessoal que uma ligação. É um presente".

Embora, quando presenteamos alguém, não exijamos retribuição, no caso de qualquer tipo de correspondência ela é necessária, porque corresponder não é verbo unilateral. Então, fui parando de escrever cartas mediante a escassez das respostas. A concorrência com mensagens eletrônicas e linguagem esburacada foi desleal. Assim, hoje, só escrevo uma carta em ocasiões muito especiais. E, se puder, não uso o correio, porque ele estraga meu lacre de cera, outro indício de que nasci na época errada.

Assim começou, não só para mim, mas para todo mundo (e todo o mundo)*, a era da descorrespondência, nome que dei ao que chamam de era pós-industrial, que, como disse aí em cima, é tão despersonalizada que nem nome próprio tem. E, pela terceira vez, o pior: começou a contaminação mundial com a idéia de que ninguém precisa de ninguém, de que as pessoas têm de parar de ser tão exigentes e querer reciprocidade, aprendendo de uma vez por todas a lidar com as frustrações — isso faz parte da vida, meu filho. Cá para nós, só faz porque as pessoas se acostumam.

Esse sentimento global de descorrespondência assola de um jeito avassalador. Gera carência, tristeza, um punhado de infelicidade e muita coisa sem resposta (perdoe-me o jogo de palavras). Então, quando um iluminado qualquer decide mandar uma carta bonita e bem escrita, sincera e especial, o destinatário, em vez de ficar feliz, se assusta. Quando um outro iluminado resolve dizer o que vai no coração, sincera e especialmente, o interlocutor, em vez de sentir-se lisonjeado, fica com medo. Quando um terceiro iluminado resolve enfrentar tudo de peito aberto, com comportamento sincero e especial, o mundo, em vez de acolhê-lo, o repele. Quando o quarto iluminado decide dedicar-se de corpo e alma a um trabalho bem feito, a empresa, em vez de recompensá-lo, o explora. E tudo fica ao contrário de um jeito confuso.

De minha parte, ainda tenho papéis de carta e caligrafia legível porque acredito na correspondência em todas as acepções. Entretanto, qualquer que seja ela, se não for uma relação mútua, se não trouxer respostas de maneira semelhante, se não indicar retribuição, um dia acaba. Como tudo. Ter consciência disso é a resposta que falta.



* todo mundo = todas as pessoas (aqui, "todo" é pronome indefinido); todo o mundo = o mundo inteiro (aqui, "todo" é adjetivo). Como adjetivo, é sempre seguido de artigo definido; por isso tem semântica diferente da outra classe gramatical, o pronome. Usar um pelo outro, além de demonstrar falta de domínio gramatical, leva o leitor a ler gato por lebre. Como é erro muito comum por aí, achei por bem corresponder às expectativas e esclarecer a diferença.


12 novembro 2007

Complexo de hoje

O gentil e talentoso Doda convidou-me para:
1 - pegar um livro próximo;
2 - abrir na página 161;
3 - procurar a 5.ª frase completa;
4 - postar essa frase em meu blog.

Aproveitei e escrevi sobre ela...



"Simplicidade e simplificação são características do pensamento racional."
5.ª frase completa da página 161 de O ócio criativo,
de Domenico de Masi



Todo mundo acorda de manhã pensando que a vida poderia ser mais simples. Pede um café simples na padaria, torce para que a prova da primeira aula seja simples, que sejam tomadas decisões simples ao longo do dia, que o chefe simplifique as coisas para poupar mais raciocínio, que o namorado ou a esposa entendam a simplicidade intensa que vai no coração dos cônjuges ou que tudo simplesmente caia do céu.

Entretanto, a gente complica um bocado. Faz tempestade em copo d'água, se apaixona pela pessoa errada, atravessa a rua fora da faixa, fura fila, esquece de pagar conta, leva multa, perde a hora e o guarda-chuva, esquece as chaves, polui o ar e a água só para poder reclamar depois de que não dá para respirar ou nadar, se mete em briga e ainda quer sair sem se machucar, fica adivinhando pensamentos que não são nossos e reagindo a eles como se fossem. A gente sofre apertado como se o mundo fosse uma caixa de fósforos.

Muito difícil tudo isso, tamanha confusão que vai na gente, redemoinho estranho de coisas contrárias que não se bicam por nada no mundo, mesmo com torcida. De um lado, uma vida simples, clean, que leva a gente à rua todos os dias usando roupa branca e levinha recendendo a sabonete bem cheiroso. De outro, sentimentos e comportamentos inconsistentes duelando num tabuleiro de xadrez enorme feito elefante, que a gente carrega com costas que não tem — é daí que vem o peso.

É disso que resulta a frustração: o querer é uma coisa; o fazer é outra. Querem ensinar coesão e coerência em aulas de redação, mas a maioria teima em escrever tudo errado; lutam pelos direitos humanos, mas o noticiário só traz desumanidade; pregam a alimentação saudável, mas não param de inventar guloseimas industrializadas que dão água na boca; criam cada vez mais entretenimento para ser desfrutado em um tempo que ninguém tem, quando é necessário trabalhar cada vez mais; desenvolvem cremes anti-rugas miraculosos para combater linhas de expressão que ganhamos nos cansando todos os dias do sempre.

E, se a gente parar para amar a pessoa certa, para atravessar na faixa, não poluir e esperar a vez chegar, perde mais um pouco daquele mesmo tempo que a gente não tem. Se tiver boa memória para pagar as contas em dia, lembrar onde deixou o guarda-chuva e as chaves, colocar o relógio para despertar e procurar a paz, entra num tédio sem tamanho e vira um daqueles quadradinhos em branco do calendário, que, curiosamente, serve para marcar o tempo que todo mundo quer ter um dia.

Simples assim.


Taking roots, de autoria de Christopher Ferris, é o nome do papel de parede que ilustra este post. Você pode encontrar este e outros deste fotógrafo aqui.

02 novembro 2007

Eu não sou fiel

Não vou pedir desculpas, porque não me envergonho do que fiz. Eu traí. Deixei a lealdade em casa e saí, com o maior sorriso na cara, esperando o inusitado, o gostinho de novidade. Foi mesmo uma aventura, que é que tem?

Ninguém descobriria, porque fiz tudo bem-feito. Mas achei melhor falar. Não, não, isso não é drama de consciência, culpa, nada disso. Eu repetiria a dose outras vezes, porque foi muito bom. Uma adrenalina boa de sentir e prazer antes, durante e depois. Só se eu fosse louca para me arrepender.

Há quem diga que é falta de personalidade, fraqueza, mania de querer abraçar o mundo, literalmente. Não sou dessas. Acreditem: foi a primeira vez, um ato deliberado, friamente planejado, com dia e hora marcados. Sou decidida. Foi depois do trabalho, na última quarta-feira de outubro.

Eu torci para dar certo. Gritei muito, embora tenha tido umas crises de identidade esporádicas. "Então, é assim que um traidor se sente?" Difícil explicar a dualidade. Meus sentimentos eram sólidos em relação às minhas convicções de sempre, mas aquele desvio era excitante demais. Eu continuava amando o que ia no meu coração, mas estava gostando muito do que se passava diante dos meus olhos, do que meus ouvidos ouviam, do meu batimento cardíaco acelerado esperando o ápice. E foram três. Sou mesmo uma mulher de sorte.

Fui covardemente seduzida. Meu ponto fraco: a razão. Foram argumentos irrefutáveis e uma oportunidade e tanto de entender mais o ser humano. Como ele se comporta numa situação dessas? O que sente? O que o leva a se sujeitar a isso? A sensação é tão boa assim? É.

Podem falar o que for. Traí bonito, com fogos de artifício e tudo. E o pior: sabia que estava sendo filmada. Eu sou assim: dou a cara a tapa. Assumo o que faço e não ligo para o que os outros pensam. Julguem-me como quiserem. E vou além: todo mundo deveria, pelo menos uma vez na vida, ter uma experiência dessas.

A traição aconteceu num estádio. Nunca havia pisado em um. Foi no jogo do São Paulo contra o América do Rio Grande do Norte. Foi no meio da torcida, na arquibancada mesmo. Muitíssimo bem acompanhada. Tudo se deu ali, no meio daquela energia contagiante, das emoções à flor da pele, do anônimo uniformizado, entre bandeiras e palavrões. Foi tórrido e inesquecível.


Uma corintiana desde a infância, que deveria estar ao lado do time num momento de desespero, quando ele está com um pé na segunda divisão, ali, prestigiando o pentacampeão, um dos arquiinimigos. Vestindo a camisa. Cantando o hino. Fazendo ola. Gritando olés. Ovacionando o Rogério Ceni. Batendo palmas. Boquiaberta com a visão tão panorâmica. Entusiasmada por, finalmente, entender a paixão nacional.

Tenho o Corinthians no coração, meu relacionamento estável. E, agora, uma queda inexplicável pelo São Paulo, de quem me tornei amante.

Uma traidora, eu.

Tudo porque me dei conta de que, definitivamente, eu não sou Fiel.



Dedico este texto

Aos são-paulinos do meu coração: Keyla, Alexandre Tadeu, Fernanda e Milton.


E aos corintianos a quem peço perdão: Noé, Priscila, Jana, Rodrigo e Mauricio.



21 outubro 2007

Vontade de verdade

Hoje me deu vontade de pôr tudo no lugar, os pingos nos is, tudo em pratos limpos — e novos. Vontade de verdade, de sol, de ar bem puro passeando pelos pulmões de um jeito bem despreocupado.

Hoje é dia de pregar botão, de alinhavar tudo o que está solto, pôr para lavar o encardido, tirar o edredom da cama, porque é quase verão, e a preguiça teima em enrolá-lo ao pé da cama todos os dias — isso sufoca.

Hoje é para jogar fora aquele monte de coisa que recebo pelo correio e que me informa o que eu já sei. Tirar o pó, limpar o teclado, mudar de idéia. Está na hora de arquivar a tonelada de documento que se empilha há dias em cima de mim — isso oprime. Trocar a cor da tinta, escrever com outra caneta, colocar para reciclar algumas embalagens que, sei lá, eu cismei de guardar por algum motivo que já fugiu de mim.

É porque hoje acordei de outra cor, com uma disposição daquelas de lavar carro, mas vou lavar mesmo é meus pecados, minhas lamúrias e toda sorte — aqui seria melhor escrever "azar" — de quinquilharias emocionais que andam atopetando de cólera todos os meus armários.

É dia de devolver para a estante os livros que não estou lendo, mudar a folha do calendário, porque o mês novo já entrou faz um tempo e eu nem percebi. A vontade é mesmo tirar da frente o que confunde minha visão, aquele monte de formas que olham para mim toda hora pregadas no quadro de avisos. Já avisaram o que tinham para avisar. Está na hora de saírem de lá.

Agora é a hora de parar de implicar, parar de amontoar as roupas em cima daqui e de lá, esperando a hora de arrumar. É hora de parar de esperar. Sacudir a moleza e mandá-la passear. De preferência, lá para a Capadócia, que é onde a gente pode ser bem mole até ver o tempo parar.

Hora de acabar com os restos de xampu, com o nunca que a gente enfia nas gavetas achando que um dia vai usar. Hora de doar, pôr para circular, desfazer-se tirando todos os nós, andar descalço, vestir roupa leve, esfoliar o cérebro para deixar só essência.

Hoje, minha gente, é dia de ver orquídeas, de andar florido, de encher a casa de lírios, de sentir perfume bom, cheiro de bolo quente, pão doce ou bom humor.

É dia de simples, de dançar, de rodopiar até ficar tonto no meio de tanta coisa para fazer. Dia de deixar o que é chato para lá. Porque a vontade de verdade é de paz.



Para quem é de São Paulo e está a fim de ver orquídeas, o Orquidário Morumby é uma boa pedida. A exposição "Festival da Primavera" vai até dia 28/10/2007, e, para entrar, basta levar um quilo de alimento não perecível. Você vê beleza e ajuda o próximo. Ótima maneira de ficar em paz.

Os lírios da paz que ilustram o post são um pedacinho do meu quintal que escaneei, usando como fundo um presente lindo que ganhei da Cleu Sampaio, junto com uma bolsa linda que ela fez para mim, porque ela transforma a arte que vai dentro dela em objetos personalizados que combinam com a alma. Passa lá para ver...



14 outubro 2007

Pão nosso de cada dia

Foz do rio São Francisco, Alagoas


Magnólia saiu para jantar mesmo sem fome. Pensava em padaria embora não tivesse estômago para encontrar soluções. Os problemas teriam de acabar um dia, ela pensava. Um dia, padaria.

Sentou-se ao balcão e remoeu indecisão. Tantos pães diferentes poderiam resolver os percalços do mundo, ela pensou. De certa forma, saber que muita gente passava fome consolou-a um pouco. Ela, pelo menos, podia escolher o pão embora não pudesse fazer o mesmo com os problemas. Um dia, faria.

Pediu um francês, frios, suco de laranja sem gelo — de frieza já estava farta. Sem açúcar, de preferência. Necessidade urgente de acostumar-se ao amargo. Preparava a garganta para misturar tudo aquilo quando viu que alguém a observava. Será possível? Um dia, pararia.

Nada feito. Magnólia não acreditava no desassossego que aquele olhar lhe causava. A paz que procurava na refeição tinha virado farinha. "Algum problema?", tinha vontade de perguntar. Resolveu engolir seco. O suco não estava bom mesmo. Um dia, estaria.

Ignorava o olhar, o sabor, a resistência do estômago em digerir tudo aquilo. Levantou-se, foi até o outro lado do estabelecimento, lavou as mãos na pia para enxaguar a confusão. Não havia papel para enxugá-las. Um dia, haveria.

Voltou para o seu lugar, terminou o francês, os frios, parou de ruminar e finalmente decidiu: "algum problema?", perguntou, incisiva. "Todos", ouviu de volta. Calou-se. Descobriu-se. Percebeu que era só mais uma. Um dia, não mais seria.

E era isso o que ela mais queria.


08 outubro 2007

Muralha de vento

Castelo de Almourol, Portugal


Disseram-me que sou uma mulher corajosa. Nunca temos certeza de uma coisa dessas até que nos digam isso.

Já fui mais covarde. Muito mais covarde, como todo mundo. A sorte é que, com o passar dos anos, as linhas de expressão que vão marcando o rosto mostram-se um indicativo de que estamos aprimorando a arte de expressarmo-nos e aprendendo a dizer o que sentimos sem medo de incompreensão. É uma liberdade estranha que poucos entendem, mas que nos torna mais corajosos, destemidos e decididos a enfrentar o que vier: solidão, rejeição, desmotivação, hipocrisia, egoísmos de todos os tipos, insegurança, cegueira, escudos intransponíveis de psicológicos alheios mais diversos que toda a diversidade que guardamos dentro de nós.

Não precisamos ser inesquecíveis. Seremos corajosos se tivermos presença de espírito para saber que somos falíveis, substituíveis, falhos e imperfeitos, nunca nos acomodarmos com essa consciência, mas usá-la para aprimorar nossos sentidos.

Temos de saber lidar com nãos. Podemos simplesmente passar pela vida de algumas pessoas se assim elas quiserem. Seremos corajosos se as respeitarmos como são, represando nossa imensa vontade de nos impor a qualquer custo, porque sentimos, porque queremos, porque sabemos que nossa bondade é maior que tudo e que estamos repletos de boas intenções. Há horas em que elas não bastam. Nem nosso olhar mais terno, nossa sinceridade mais nua, nossas paixões mais viscerais ou nosso eu em ebulição. A coragem cresce a cada balde de água fria, e é necessária principalmente quando precisamos chorar. Só os corajosos não têm vergonha de chorar de verdade, vestidos numa transparência que moda nenhuma imita.

Aliás, parece-me proporcional: quanto maior a coragem, maior a probabilidade de sofrer. Porque dar a cara a tapa dói, cair machuca, entender que nem tudo acontece como gostaríamos decepciona, perceber que os outros não sentem o mesmo que sentimos, ou tão profundamente quanto, desilude, vermo-nos ilha tira-nos o chão.

E, ainda com as pernas bambas, quando perdemos a base temos apenas duas possibilidades: permanecermos inócuos e chorosos pelos cantos, esperando o mundo resolver-se por si só, ou levantar toda santa vez, aprender com os tombos, memorizar bem o que causou as feridas, para literalmente não cairmos de novo na mesma emboscada, e resgatar o ânimo para continuar andando, doloridos por um tempo, é verdade, mas mais preparados e cientes de que haverá mais tropeços. Tudo porque quem se mete a desbravar tudo aventura-se a desbravar a si mesmo. E não tem coisa mais assustadora e perigosa que o autoconhecimento. Olhar para dentro é uma forma de ser valente.

Mais do que enfrentarmos tudo, termos garra, acreditarmos nos próprios princípios e colocá-los em prática, trabalharmos, esforçarmo-nos, não esmorecermos, não perdermos as esperanças nem temermos o sofrimento, sermos corajosos é sabermos nos despedir de quem não nos quer ou nos faz mal, sairmos das situações que nos atam as mãos e nos deixam infelizes, livrarmo-nos sem dó do que não serve mais e guardarmos o carinho e a ternura que o aprendizado vai marcando tão gentilmente em nós com todas as linhas de expressão a que temos direito.

Pensando em tudo isso, descobri-me corajosa exatamente como disseram que sou. Porque eu sempre recomeço. Sem rancores.


24 setembro 2007

O dia em que choveu azul


"You tell me we can start the rain
You tell me that we all can change"
Rainmaker - Iron Maiden
(Dave Murray/Bruce Dickinson/Steve Harris)



Achava que já estava completa, de tantas convicções que carregava dentro de si. Sempre foi alegre, distribuindo por aí pitadas aleatórias de intensidade e revestindo de otimismo todos os acontecimentos, como se se preparasse constantemente para um baile de Carnaval.

Até que um dia deparou-se com um azul. Ficou desconcertada com tanto deslumbre. Era de um tom que ela nunca havia visto antes, desses que a gente não encontra em mostruários; só sob encomenda.

Numa determinada manhã, daquelas bem calminhas, a moça das convicções saiu para caminhar numa praia desconhecida, lugarzinho perdido num canto esquecido do mapa. Levou com ela o azul, ávido por encontrar mais cores. Então, num dado momento, desses que o relógio esconde quando o mundo pára em forma de deserto, sentaram-se à beira-mar para olhar para o horizonte.

À frente deles havia verde, um pouco do bege da areia, o branquinho de quando as ondas quebram, várias nuanças de marrom cobrindo pedras e uma vastidão de cinza maciço, como se o céu tivesse se vestido mais sério só para se impor em silêncio.

Foi aí que viram, no mesmo horizonte para onde olhavam, uma nuvem chuvosa carregadinha de de-repente vindo na direção deles. Mais ninguém ao olhar para a direita. Mais ninguém ao olhar para a esquerda. Só ela e o azul, as outras cores e a chuva iminente, trazendo água para, quem sabe, desbotar tudo numa lavagem inocente.

Então, com uma coragem serena, dessas que não se compram a granel, permaneceram ali, quietos. Não correram. Não falaram. Pensavam aquarela enquanto esperavam a nuvem chegar.

Foi quando choveu. Forte, torrencialmente, numa sucessão de pingos grossos ensopando tudo. Decerto a chuva seria passageira, dessas de verão que atravessam outras estações em forma de imprevisto.

De súbito, debaixo daquela chuva, a moça das convicções viu todas escoarem para o mar, deixando-se chover também, completamente despreocupada. E, daquele dia em diante, ela nunca mais foi a mesma.

Dizem que a culpa é daquela aguaceira toda. Mas alguma coisa dentro dela sabe que foi a cumplicidade do azul.


20 setembro 2007

Logo ali, onde você vai estar

O meu querido amigo André convidou-me a escrever um post sobre viagens para colocar no blog dele enquanto ele viaja pela Europa.

O texto, escrito especialmente para o Marmota, está logo ali para você ler e, se quiser, comentar, lá ou aqui.

Boa viagem!

12 setembro 2007

Algodão-doce

Com um pouco de atraso (desculpem!), este post responde o convite que recebi do Rafael Porto, do Alforria. Parece simples, mas resumir as lembranças todas da infância a apenas cinco faz pensar um bocado...


Lápis de cor

Sempre fui uma criança curiosa, que tudo perguntava e tudo queria saber. Nunca aceitava ordens sem que me explicassem o motivo, porque a racionalidade mora em mim desde que nasci. Então, quando me mandavam fazer alguma coisa sem me explicarem por quê, eu simplesmente não fazia, por não entender a necessidade daquilo.

Os apelos eram em vão. Se não me convencessem, nada feito. Uma criança quase incorruptível, não fossem... os lápis de cor! Por uma caixa deles, de 12, 24 ou 36 cores, eu fazia qualquer coisa. Lembro-me de que minha mãe, às vezes cansada de argumentar comigo, apelava para o acordo: "Kandy, se você fizer o que a mamãe combinou com você, você ganha uma caixa de lápis de cor". Valia a pena.

Mesmo que eu já tivesse uma caixa, sempre queria mais. Adorava olhar para as cores arrumadinhas fazendo degradê, mesmo sem entender para que servia o branco; achava mágico demais ter o poder de colorir tudo o que nasce sem graça, desprovido de alegria.

Um dia, num aniversário aí, acho que de 8 ou 9 anos, minha tia me deu um estojo de zíper com dois compartimentos recheado de cores. Ela conseguiu reunir lápis de cor e canetinhas de todas as cores do mundo num lugar fechadinho só para mim! Foi um presente inesquecível! Outro dia, no Orkut, reencontrei um amigo meu da infância que, ao ser perguntado se se lembrava de mim, respondeu rapidinho: "se eu me lembro? Claro! Você era aquela menina que tinha um estojo cheio de lápis de cor!"...



Jantar de domingo na casa da minha avó

Uma vez por mês, eu, meus irmãos e minha prima nos reuníamos na casa da minha avó materna para jantar. Éramos tão pequenos que cabíamos todos ao redor da mesa de centro da sala, que minha avó cobria com uma toalha com cheiro de sabão em pó. Comíamos em pratos fundos, de louça boa, com garfo e faca de sobremesa. Bebíamos vinho com água e açúcar, que minha avó colocava em cálices de cristal bem pequenininhos, desses de servir licor. Eu me sentia importante com um cálice daqueles, porque, nas histórias da Idade Média que eu lia, todos os cavaleiros e reis e rainhas e princesas usavam cálices nas refeições.

O menu era sempre o mesmo: macarrão com salsicha Santo Amaro, aquelas gorduchas e suculentas, farofa com ovinho e azeitonas e, às vezes, a torta de batata da Celina, uma senhora que sempre trabalhou para a minha avó e que merece um post só para ela.

Minha avó gostava de guardanapo de pano, xícara de borda fina sempre com pires, coisas de cristal, porta-guardanapo de metal, tudo fino. Eu achava o máximo, mas sempre me atrapalhei com molho de tomate. Todas as roupas do meu armário têm atração por molho de tomate... Então, minha avó abria um guardanapo de pano bem grande (para mim era bem grande) e amarrava-o em volta do meu pescoço, feito aqueles bandidos de bangue-bangue. E era assim que eu comia, junto com meus irmãos e com minha prima, assistindo aos Trapalhões, quando eram quatro e engraçados.



Livros de contos de fadas e do rei Artur



Sou fã número um do Rei Artur. Chorei feito uma louca quando li a história do Tristão e da Isolda. Acho a rainha Guinevere uma fraca indecisa e, apesar de concordar com a população feminina mundial de que o Lancelot era um pedaço de mau caminho, nunca o perdoei por ter traído o rei Artur, um homem tão nobre e justo daqueles! E rei, ainda por cima!


Isso é que dá ler desembestada! Eu me insuflava de maniqueísmos de tanto que lia contos de fadas de todos os países, em edições de capa dura com a ortografia ainda antiga, antes da reforma ortográfica de 1970, apesar de eu ter nascido em 1975. Da coleção toda, os de que eu mais gostava eram Os mais belos contos de fadas tchecos e Os mais belos contos de fadas húngaros. Eu nem sabia o que era tcheco e húngaro, mas tudo bem, devia ser uma coisa legal.


As ilustrações eram grosseiras, mas eu gostava. Passavam uma idéia de sombra, mistério... e aquela ausência de cor me fazia querer pintar tudo com os meus lápis de cor. É que eram tantas ilustrações que, se eu fosse pintar uma, teria de colorir todas. Era trabalho demais, eu acho... ia gastar todo o meu estoque de lápis de cor. Então, decidi que não valia a pena. Ficava só com as histórias mesmo, com anões, dragões, princesas e injustiças num mundo esquisito onde as pessoas usavam roupas mais esquisitas ainda, sumiam e apareciam do nada, voavam, adivinhavam ou eram tapadas demais para entender o que estava acontecendo ao redor.




Passeios de graça com o meu avô

Meu avô já ganhou um post só para ele, mas os passeios que fazíamos eram mesmo inesquecíveis, sobretudo porque ele me fotografava, numa época em que ninguém quase era fotografado assim, com essa abundância de cliques.

Como éramos cinco netos, meu avô não tinha dinheiro para levar a gente a lugares caros. Então, ele foi o responsável por estreitar minhas relações nada amigáveis com o governo, porque me levava a todos os lugares públicos de São Paulo. Eu conhecia todos os parques, o do Ibirapuera, da Água Branca, do Carmo e do Piqueri; andava de metrô para cima e para baixo, e era amiguíssima da girafa do Zoológico, porque eu vivia lá, era praticamente de casa. Ao que parece, num dado momento lá ela nem agüentava mais olhar para a minha cara, por isso nossa amizade terminou, eu acho. Pescoçuda de uma figa!



Brincadeiras na casa da minha prima

Era muito legal ir para a casa da minha tia, a única irmã da minha mãe. Lá eu jogava Atari, apesar de sempre perder dos meus irmãos, brincava de pista (minha prima espalhava pistas em pedaços de papel remetendo a gente de um lugar para outro pela casa inteira até achar o tesouro, geralmente uma coisa bem besta...), de trenzinho, de casinha, de cabana no jardim, participava do batizado da Fifi, a coelha bege e fofa que minha prima tinha, escorregava pelo beiral da escada, dava comida para as tartarugas que me morderam o nariz quando eu era bem pequena, ouvia música, dançava e, o mais legal de tudo: me fantasiava. Não sei se minha prima me achava com cara de boneca para ficar me vestindo daquele jeito, mas eu achava divertido experimentar aquele monte de roupas engraçadas, usar colares, chapéus, bolsas, sapatos e maquiagem de gente grande. Minha prima tinha uma Polaroid e acho que se divertia mais do que eu fotografando aquela palhaçada toda!



Não posso reclamar porque tive uma infância especial e feliz, a base do que sou hoje, dos valores que carrego, do meu senso de família. Foi na infância que aprendi a ser verdadeira, a dar vazão à criatividade, a achar que todo mundo é bom, que tudo é açucarado e possível, numa ingenuidade típica de quem não tinha com o que se preocupar.

Então, apesar de ser uma pena crescer e perder um pouco disso, a saudade é bem boa. Dá um acalento todo especial à alma e faz brotar um sorriso suave nos lábios, desses que só quem foi criança de verdade consegue resgatar de vez em quando.


27 agosto 2007

Da cegueira de cada um


"Só num mundo de cegos, as coisas serão o que realmente são"
Ensaio sobre a cegueira, José Saramago


Uma das minhas cenas favoritas do cinema está em um de meus filmes preferidos: O fabuloso destino de Amelie Poulain.

A personagem principal, vivida pela adorável Audrey Tautou, é diferente de tudo. Enxerga as pessoas mais ou menos como a Blimunda, de O memorial do convento: extrai-lhes a alma, inserindo-a num mundo de possibilidades. Assim, acaba brincando com a vida das personagens do filme, mostrando-lhes outros pontos de vista.

Nesse intuito, de fazer as pessoas verem o que não podem ou não conseguem, Amelie pega um senhor cego pelo braço e percorre uma rua inteira, descrevendo a ele tudo o que a deficiência o impede de ver, desde os melões dispostos em uma banca, até o estado de espírito das pessoas que passam. Mesmo atordoado com tanta informação, a alma dele sorri de um jeito agradecido, porque tudo o que ele podia ver na rua em que sempre passava eram apenas cheiros, vozes e sensações.

Então, quando me dá saudade de ser humano, desses capazes de enxergar além da aparência, eu revejo essa cena e sempre me pergunto o quanto aquele senhor cego é mais feliz do que todos aqueles que Amelie descreve a ele.

"Como um cego pode ser feliz?", você deve estar se perguntando... A cegueira é, por um lado, uma limitação física, decerto. Mas, por outro, é um portal que permite ir além do que todo mundo vê. Só os cegos alcançam o que os olhos não vêem, só eles entendem a essência das coisas sem se deslumbrar pela imagem, pela cor, só eles valorizam os cheiros, as vozes e as sensações de uma maneira delicada e profunda, numa dimensão que, apesar de escura, traz muito esclarecimento.

Ver o que as pessoas carregam dentro de si, enxergar o sentimento delas sem precisar interpretar-lhes as feições, aguça os sentidos de uma forma invejável. É ver sem precisar de olhos. É debruçar-se no outro pelo que ele é, não pelo que veste, pelo penteado que tem, a cor do olho, o sorriso perfeito, a cor das bochechas, o furinho no queixo ou os lábios rosados.

E, ironicamente, tanta gente com olhos sãos sofre de cegueira, tantos míopes que, mesmo de óculos, não enxergam um palmo à frente do nariz, tantos olhos de todas as cores perdem tempo olhando para o nada em vez de fecharem-se e olharem para dentro de si, onde estão as respostas que procuram, tanto óbvio salta aos olhos e ninguém vê... Uma ilusão de óptica, sem dúvida.

Então, por tudo isso, sempre que vejo a minha cena preferida do filme, não penso na bondade da Amelie em fazer o que, para ela, era provocar uma mudança de perspectiva, porque, se analisarmos bem, o senhor cego do filme não precisava que Amelie lhe descrevesse o que ele não enxergava. Ela quis ser gentil, numa atitude proveniente da visão ingênua de que ele estava perdendo o melhor de toda a rua movimentada num dia de sol. Mas ele foi mais gentil ainda em não lhe recusar a gentileza, porque decerto enxergava muito mais do que ela. E, ao contrário de quem vê, ele não quis ser rude.



Aqui em São Paulo, a Fundação Dorina Nowill aceita voluntários que tenham quatro horas contínuas semanais disponíveis. Uma das funções mais legais é ser um ledor: levar literatura para quem só consegue ler em braile. Você pode ajudar gravando livros falados ou executando outras tarefas, colocando à disposição dos deficientes visuais um talento ou habilidade que você tenha. Fazer qualquer tipo de serviço voluntário é deixar de ser cego.

11 agosto 2007

Pelos seus belos olhos



O casal está jantando numa noite normal. Pouco tempo de namoro, mas um silêncio que compete com a eternidade. Olhavam-se de vez em quando, mas os olhares não combinavam. As intenções eram diferentes, eles não percebiam.

De repente, palavras dela:

Você não vai falar nada? — artifício feminino para demonstrar iniciativa.
Falar o quê? — instinto masculino defensivo.
Ah, qualquer coisa. Você tá muito calado, eu tô achando esquisito demais...
É que eu tô pensando...
Em quê? — curiosidade feminina inoportuna.
Então, justamente, eu não sei... — ingenuidade masculina que o universo feminino é incapaz de ler.
Como assim? — curiosidade feminina insistentemente inoportuna.
É, eu não sei... Eu não sei em que pensar, o que querer, o que fazer... — ingenuidade masculina não-cognitiva para o cérebro feminino.
Em relação a que exatamente? — inconveniência verbalizada.
Bem... er... a tudo.

Ela pára de mastigar e olha para ele de um jeito incrédulo. Engole o pedaço de pizza para balbuciar:

Tudo? Inclusive nós? — necessidade feminina de confirmação de uma mensagem previamente compreendida.
É por isso que eu estava quieto. Você é que puxou o assunto... — justificativa masculina objetivamente insuficiente.
Lógico! Silêncio não combina com pizza nem com namoro! — indignação invadindo a razão.
Eu não sei o que eu quero... Se quero continuar no emprego que eu tenho ou tentar algo diferente, se quero viajar pelo mundo ou fincar raiz em algum lugar, se quero pintar meu quarto de azul ou deixar como está, se quero continuar namorando ou ficar sozinho, eu não sei, eu não sei! Isso está me consumindo! — sinceridade masculina com grandes chances de ser mal interpretada pela percepção feminina.

Ela desiste de comer. Aquilo era de tirar o apetite.

Sinceramente, eu nunca vi alguém não saber o que quer! Todo mundo sempre quer algo. Pode ser o mais aparentemente impossível, sei lá, escalar o Everest, visitar a Lua, transar com a Madonna, acordar com uma moto nova na garagem, enfim, qualquer coisa, porque o mundo está consumista demais... É natural querer tudo! Nunca vi ninguém querer nada! — razão totalmente tomada pela indignação.
Tá vendo agora: eu. Não é por mal, sabe, eu tô sendo bem franco com você... Eu acho que essa coisa de não saber o que eu quero é da minha natureza... — justificativa masculina objetiva e irritantemente insuficiente.
Por quê? Você nasceu assim, por acaso? — ironia feminina cruel que quer dizer "tente outra explicação, por favor".
Não, não... Eu quis dizer que eu fui ficando assim ao longo do tempo... Eu acho... — justificativa masculina indecifrável para o universo feminino.
Ai, graças aos céus ainda tem salvação! Olha aí! Você disse "eu quis dizer". Tá vendo? No fundo, no fundo você quer alguma coisa... — sutileza feminina indecifrável para o universo masculino.
Hã? Eu não sei o que você tá tentando dizer com isso, mas eu tô aqui com um problema aparentemente sem solução... — tentativa masculina de trazer o universo feminino para a realidade.
Vamos tentar racionalizar essa situação. Você disse que não sabe se quer continuar namorando ou se quer ficar sozinho. Isso a gente precisa decidir, porque, não querendo pressionar, sabe, mas me diz respeito... — mania feminina de pôr os pingos nos is quando tudo é hiato.
Claro, é verdade — mania masculina de ser sucinto ao demonstrar sentimento.

Ele descansa o garfo no prato e olha para ela. Ela respira fundo e diz:

Você gosta de mim? — resquício da Inquisição.
Gosto. Você é legal, a gente se dá bem, eu admiro seu jeito, te acho bonita, rola química e...
Pode ir parando por aí... — resquício da ditadura.
Ué, por quê? — lentidão masculina em acompanhar a complexidade do universo feminino.
Porque, quando a gente quer alguma coisa, o olhar brilha. Eu vi agorinha nos seus olhos. Você falando assim de mim e seu olhar opaco de dar dó! — ingenuidade feminina em tentar explicar o que não é cognitivo para o cérebro masculino.
É impressão sua, não é nada pessoal, é um momento de indecisão meu, entende, não tem nada a ver com olhar... — justificativa masculina óbvia para o universo masculino mas ainda insuficiente para o feminino.
Ah, tem sim, senhor! Vai por mim: olhar opaco acaba com tudo, você nem precisa abrir a boca. Eu notei, o pior é que eu notei! Você não está mais a fim de mim, está? — leve indício de democracia pelo benefício da dúvida.
Eu tô! Quer dizer, não sei se eu tô. Não, não, eu tô sim! — sinceridade masculina entendida como cinismo pelo universo feminino.
Olha aí! Aconteceu de novo! Quando você disse "eu tô", seu olhar não brilhou! Nem uma faisquinha, nada! — típica atitude feminina de interpretar as profundezas que o universo masculino não alcança.
Pára de drama! Todo esse auê porque eu não sei o que eu quero?! Daqui a pouco isso passa... — tentativa masculina de trazer o universo feminino novamente para a superfície.
Não! Os olhares conversam, sabia? E mulher saca tudo pelo olhar. Ela só não entende se não quiser. — tentativa feminina de explicar as profundezas ao universo masculino.

Ela se levanta, pega a bolsa, dá um beijo no rosto dele com uma compreensão de fim-de-mundo, um gosto assim, de pizza com nunca mais, e diz, de um jeito característico feminino de deixar tudo enervantemente subentendido:

Não saber o que quer é o de menos, qualquer mulher compreende. O problema é não olhar brilhante... — jeito feminino teimoso de dizer "venha atrás de mim assim que eu sair e me olhe com vontade".

Ela vai embora. Ele fica olhando para o prato — jeito masculino de tentar entender o que não faz sentido e deixar as oportunidades passarem.

O casal estava jantando numa noite normal. Pouco tempo de namoro, mas um silêncio que competia com a eternidade. Os olhares não combinaram. As intenções foram diferentes. E ninguém percebeu.



A imagem que ilustra este post é um papel de parede que você encontra aqui.


30 julho 2007

Amigo pra cachorro


Quando cheguei em casa hoje, vi a Lua linda e redondinha no céu. Estava tão brilhante, talvez por causa do frio, que me deixei encantar. Mas faltava alguma coisa... Uma Lua assim tão imponente no meio do azul-marinho (que deveria ser celeste) estava silenciosa demais para o meu gosto.

Em noites assim, de Lua calada, sempre me lembro do Apolo. Por razões que talvez apenas Zeus conheça, o Apolo detestava tudo o que habitasse o céu. Latia para a Lua, para pipas, aviões, fogos de artifício, pássaros e balões. Só perdoava as estrelas. Era poético esse meu amigo, um dog alemão muito boa gente, que de cachorro só tinha a fidelidade, o físico e a onomatopéia — tem muita gente-cachorro que não chega aos pés dele.

Ninguém nunca me olhou como ele me olhava, jeito desvelado de dizer eu te entendo sem sequer levantar as sobrancelhas. Aceitava-me triste, entusiasmada, concentrada ou feliz, com os cabelos bonitos caindo sobre os ombros ou todo emaranhado num birote improvisado; de pijamas descombinados ou na elegância de um salto alto. Nunca desfiou uma meia de náilon minha, apesar de ter destruído meu escalímetro. Às vezes cismava em subir na minha cama. E ficávamos cada um com metade, em média uns cinco minutos, até que ele se enchesse de tanto aperto e resolvesse ir para o chão.

Até hoje, foi o único que me enxergou transparente, fazendo-me companhia, sem reclamar, em muitos longos finais de semana em que eu ficava em casa e a família debandava, revoada inquieta. Fazia o supermercado inteiro achar que eu era dona de um canil: "80 quilos de ração? Nossa, quantos cachorros você tem?". "Um", eu respondia. Era único mesmo.

Mal-agradecida que eu só pela gentileza da fiel companhia, premiava meu amigo dourado — melhor seria dizer de ouro — com um banho que encharcava o mundo. O Apolo era enorme. Só assim para abrigar coração tão grande. Íamos ora eu e ele, ora ele e eu, não se sabe quem levando quem para onde, rumo à saga de tentar fugir ou desencardir toda aquela área peluda. Eu sempre saía mais molhada, e ele, mais limpo. É o que dá misturar leão com cachorro.

Em compensação, eu o deixava andar no meu carro popular. Abaixava o banco e abria o porta-malas, convite perfeito para um passeio, porque, na coleira, era impossível andar civilizadamente com aquele ser mitológico fora dos portões de casa. Os quase noventa quilos dele sempre arrastavam os meus cinqüenta.

Invariavelmente, porém, acabávamos sempre no mesmo lugar: a casa da Sonia, uma dachshund muito da posuda, apesar do tamanho, que se dependurava nas orelhas do Apolo com uma coragem espantosa. A Sonia guardava o consultório da Florinda, criadora de são-bernardos e veterinária do bairro, a paciência em pessoa para limpar o tártaro daquela bocarra de cavalo que só o Apolo tinha. Era tratado no chão mesmo, sobre o cobertor dele — um de solteiro, que ele sempre carregava com a boca, dobrado, sem arrastar no chão —, visto que colocá-lo na mesa era missão para alguém bem mais forte do que eu e a Florinda juntas.

Não sei quantas tardes de sábado eu passei naquele consultório esperando os quase noventa quilos acordarem da anestesia e caminharem com as próprias pernas para o porta-malas do meu carro. Não sei quantas vezes levei o carro para lavar depois de ter sido marcado tão carinhosamente por montes de babas alegres por voltar para casa, nem quantos chumaços de algodão gastei para limpar aquela vastidão de orelhas sem fundo ou quantas foram as tentativas de fazê-lo parar quieto para trocar os curativos da orelha operada para retirada de coágulo.

Quanto trabalho!, todo mundo dizia. Não entendiam que, quando a gente ama verdadeiramente, se doa de um jeito desinteressado e espontâneo, que compensa supostos esforços que nunca existiram, nada mais que uma troca: eu cuido de você, você me ensina a ser melhor.

Estabanado, guloso, divertido, desengonçado, carinhoso, folgado e sem noção de direção, proporção ou espaço, esse meu cachorro me ensinou a semântica de sua denominação: era mesmo um animal para estimar, meu bicho de estimação por oito anos e meio.

Não me lembro o ano em que o perdi, só sei que faz tempo, muito pra mim. A saudade é mesmo assim: se estica até não poder mais quando o amor é maior que a gente. O Apolo morreu dormindo, depois de, sem saber, termos nos despedido rolando longamente pelo chão em brincadeiras afoitas.

Hoje eu entendo por que ele não latia para as estrelas.


15 julho 2007

Absurdo

Eu deveria ser fútil e um tantinho burra, daquelas que falam besteiras sem perceber, para quem referência é tão-somente uma carta elogiosa assinada por um ex-patrão qualquer, em cima do qual já deram — ou para quem já deram, tanto faz.

E deveria ser menos dedicada às pessoas. Falta-me um tiquinho de egoísmo. E roupas mais ousadas, decotes mais profundos para evidenciar seios siliconados que eu não pretendo ter. Eu deveria me enquadrar, sabe? Aquela coisa de padrão: uma etiqueta imaginária de ÓBVIO bem legível pregada na testa. Trabalho nenhum para entender.

Não poderia mais sacar piadas de primeira ou ser espirituosa, porque contexto teria de ser apenas sinônimo de legenda curta, do contrário eu não conseguiria ler, pera lá! Deveria me contentar com qualquer tá e monossílabos do gênero em vez de buscar explicações, deixando todas as incógnitas restritas aos livros de Matemática. Nada de pensamentos complexos.

Ser mais consumista e pensar só em moda, sapatos e batons. Ser menos bem-sucedida, talvez com um pé no limite do cheque especial, carregando dívidas homéricas provenientes de juros acumulados em trezentos cartões de crédito abarrotados de gastos dispensáveis que, elementar, algum idiota se achando indispensável pagaria para mim com sorriso nos lábios e sussurros de "gostosa".

Eu não deveria ter cursado (e aproveitado) uma boa faculdade nem aprendido outra língua. Errei feio. E deveria parar de usar um vocabulário erudito conjugando verbos certo. Anômalos deveriam ser meus neurônios a ponto de assassinar o português com doses generosas de ignorância pura no agora sim e no daqui a pouco também.

O ideal seria me despir sem pudores e com mais freqüência para qualquer homem que balbuciasse clichês camuflados em sorrisos interesseiros. Junto com a roupa, eu também teria de deixar meu senso crítico. Essa coisa de questionar, analisar, ter opinião própria... chatices assim não estão com nada. Isso, falar mais gírias permeadas de uns palavrões também me faria bem.

É, eu deveria mesmo passar mais tempo em salóes de beleza, em cima de um salto quinze de ponta bem fina, que me faria andar feito uma galinha limitada que não pode afastar as patas mais que dez centímetros para não perder o equilíbrio. Mascar chiclete de boca aberta e usar bolsa minúscula de marca carérrima permeada de cristais Swarovski dentro da qual só coubesse um rímel, tudo de que preciso.

Deveria abolir de meus comportamentos conhecimentos políticos e noções de cidadania, para quem ecologia seria apenas a ciência que estuda o eco, o que, sem dúvida, provocaria umas risadinhas masculinas certamente acompanhadas de desejo.

Seria proibido saber que país fica onde, quantos continentes tem o mundo, o que é Meridiano de Greenwich e qualquer verso do Hino Nacional. Cantá-lo inteiro, então, nem pensar! Muito menos saber o significado de "plácidas", "retumbante", "penhor" e afins... caso para internação. De preferência em um spa.

E essa coisa de se virar nas emergências também deveria acabar. A solução seria ter na agenda do celular cor-de-rosa com adesivo de menina superpoderosa uma lista de telefones masculinos com quem já tivesse transado, para quem ligar com voz de desamparada e entonação infantil pedindo uma ajuda inocente no meio da rua do outro lado da cidade.

Eu teria de aprender a fazer cara de interrogação quando fosse a algum lugar cultural, perguntando mais durante as sessões de cinema o que está acontecendo no filme. Interpretá-los está definitivamente fora de cogitação.

Seria necessário doar meus livros para, no lugar, colocar vários CDs de axé e pagode, revistas femininas com conselhos picantes sobre posições sexuais ou testes de múltipla escolha cientificamente comprovados para avaliar minha auto-estima, se sei cuidar dos meus namorados, se uso o perfume certo ou se sou capaz de segurar um cara na cama.

Eu deveria ter nascido de-vez-em-quando no lugar de ter nascido constância, mulher para ficar em vez de mulher para amar. Tinha de saber tratar os homens como objetos em vez de cogitar considerar o que sentem. Nunca pedir por favor por educação, mas só quando fosse preciso fazer manha. Ser uma daquelas namoradas bem grudentinhas, que ligam quinhentas e cinqüenta vezes por dia sem assunto, só para trocar respiração, e que andam rebolando e sabem empinar a bunda como ninguém.

Teria de parar de ler manual de apetrechos eletrônicos para, com a mesma voz desamparada e infantil das situações de emergência, pedir para o namorado da vez — que, diga-se de passagem, eu teria de aprender a chifrar — se sentisse poderoso e inteligente ao decifrar os três botões de power, menu e reset.

Deveria falar hormônios e comer com os olhos, jogando meus longos cabelos para lá e para cá feito comercial de xampu em vez de tentar evidenciar sentimentos sinceros e questionar minha solidão todo santo dia. Jogar mais e transparecer menos, exceto nas blusas, porque o vulgar nunca foi tão valorizado, nós sabemos.

Quem sabe assim eu não constatasse que beiro mesmo o absurdo.





07 julho 2007

E alguém se apaixona hoje em dia? (diálogo entre textos)

I


"— Você já se apaixonou de verdade?
— Sim, já.
E você contou pra ele?
Ele nunca soube.
E por que você nunca contou?
Há coisas que não precisam ser ditas."

Em busca da felicidade. República Theca/Alemanha (2005).
Direção:
Bohdan Slama.


Ele não a via, e ela sabia. Ele nunca soube. Talvez nem o nome dela soubesse. Mas dele ela sabia cada contorno; sempre tivera boa memória. A dele é que era dispersa. Tudo nele era muito nebuloso. E ela nunca gostara de sol. Sempre silenciosa, preferia a intensidade da paixão à claridade de qualquer verão. Disso ele também não sabia. Ela nunca lhe disse.



II

"Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será."


"Não se mate",
de Carlos Drummond de Andrade.
In: Brejo das almas. São Paulo: Círculo do Livro, 1996, p. 111
.


Hoje ela olhou para ele com aquele jeito de interesse sorrindo de canto. Ele, feliz, andou suave em reciprocidade a manhã toda. Até vê-la olhando do mesmo jeito interessado e sorridente para o melhor amigo dele. Amanhã não olharia mais para ela nem imaginaria mais os beijos que dariam. Depois, ninguém mais soube dele.



III


"Amores que puderam ter sido e não foram"


Gabriel García Márquez.
In: Memórias de minhas putas tristes.
Rio de Janeiro: Record, 2005.


Enquanto ela dançava alegremente remexendo as saias com as pontas dos dedos, era observada por eles. Para cima e para baixo iam as saias e os olhos dela. Ela era mesmo cheia de amores que podiam ter sido e não foram. Só para ser admirada, nunca amada. Talvez por isso sua coreografia fosse tão boa. Dançava conforme a música.



IV

"Encostei-me a ti, sabendo bem que eras somente onda.
Sabendo bem que eras nuvem, depus minha vida em ti.
Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar, quando caí."


"Epigrama n.º 8", de Cecília Meireles. In: Viagem vaga música.

3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 86.

Aparecia de vez em quando, vasculhando as gavetas com o olhar inquieto. Tinha esquecido algo, sempre esquecia. E por isso voltava. Não por ele. Liberdade demais presa num corpo bem-feito, isso ele entendia. Até o dia em que ela voou. O que esquecer ali, não havia. E, mesmo no chão, isso ele entendia.


30 junho 2007

Volúpia


À vista ou a prazo, comercial ou doméstico, balas coloridas ou somente as vermelhas, impresso ou digital, mp3 ou wma, com ou sem juros, pré ou pós-pago, novo ou reciclado, colorido ou preto-e-branco, no sol ou à sombra, cara ou coroa, original ou pirata, arrumado ou fora do lugar, nacional ou importado, ele ou ela, aquele ou aquela, vai logo ou espera aí, convite ou decepção, com ou sem gelo, garfo ou colher, prato raso ou prato fundo, massa fina ou massa grossa, com ou sem colarinho, limão ou laranjada, integral ou desnatado, casca branca ou queimadinha, chá gelado ou bem quentinho, açúcar ou adoçante, eu ou nós, dança ou reflexão, tempestade ou céu aberto, escarcéu ou mudez, drama ou comédia, maquiagem ou transparência, curto ou comprido, convívio ou saudade, cremoso ou cintilante, neutro ou com perfume, amanhã ou depois, cotidiano ou absurdo, uniforme ou desigual, par ou ímpar, alma ou matéria, verdade ou ficção, particular ou coleção, cano curto ou cano longo, movimento ou introspecção, ar ou chão, realidade ou imaginação, ponte ou abismo, já ou mais tarde, razão ou coração, hesitação ou entrega, no meu apartamento ou no seu, branco ou tinto, com ou sem couvert, tradição ou novidade, lábios ou silêncio, renda ou algodão, no escuro ou no claro, com gosto de morango ou sem sabor, convencional ou inusitado, aqui ou mais pra lá, língua ou quadril, dentro ou fora, rápido ou impulsivo, espasmo ou gemido, falta de ar ou palpitação, reto ou atalho, tudo ou nada, agora ou nunca, dois.


24 junho 2007

Ignorância

Praia da areia preta - Guarapari - ES


Eu achava que existia. Até ontem. Não, não, eu não morri; apenas nunca existi. Dei-me conta da minha transparência e senti toda a importância que eu achava que tinha escorrer violentamente pelo ralo do descaso.

QUEM VOCÊ PENSA QUE É?

Não sou ninguém. Ignorada quer pela falta de reciprocidade, quer pelo desinteresse de notícias e telefonemas não recebidos, quer pela ausência total de criatividade forjada em plágios descarados. Aniquilaram minha originalidade retirando-me a vontade de escrever e de criar, apagaram as lembranças que tinham de mim dissolvendo-me a naturalidade de confiar.

Ser neutralizada pela descrença é como acordar cinza e vazia por terem-me arrancado a presença. Virei fantasma de valores insossos, inexistência de sentimentos.

QUEM SE IMPORTA COM O QUE VOCÊ SENTE?

Se eu não existo, não há por que se importarem. Se não me enxergam, não há por que me fazer notar. Se querem que eu apenas passe, por que insisto em ficar?

Infelizmente, a individualidade e o egoísmo alheios têm sobrepujado meus esforços de não ser generalização.

No entanto, apesar de saber que eu não existo, não me roubaram a identidade. Imitaram-na, ignoraram-na, calaram-na. Mas ela ainda é minha. E é ela que me faz perguntar:

QUANTAS VEZES É PRECISO RENASCER?




14 junho 2007

A vela, o pão e a procissão

Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa


Todos os anos eu vou à missa de Santo Antonio numa tímida igrejinha aqui perto de casa. Depois da missa sempre tem uma procissão. É, na metrópole mais desenvolvida do país, ainda existem bairros de vizinhança amigável, de crianças brincando na rua com traves improvisadas com pares de chinelos, de igrejinhas pequenas com procissão seguindo o santo.

Eu vou à missa porque simpatizo com Santo Antonio, que prefiro chamar de Santo Antonio de Lisboa — minha parte portuguesa falando mais alto. Mas não é só por isso que sigo a procissão com uma vela simples acesa iluminando o caminho. Não sou movida pela esperança de que o santo me ajude a casar, embora esse seja o motivo principal de a maioria das mulheres lá irem. Eu simplesmente gosto desse santo, porque ele me ajuda a achar as coisas perdidas, me ouve com uma paciência de Jó apesar de ser Antonio, tem aquele olhar complacente difícil de encontrar hoje em dia. Além disso, eu sou afeita a tradições e confesso adorar o caráter cultural que as procissões têm. Elas mostram mesmo a alma das pessoas.

Quando estive em Portugal, por exemplo, terra desse santo Antonio, pude visitar Fátima, onde há a Procissão das Velas. À noite, com tudo escuro, aquele mar de gente reza junto o terço, cada dez ave-marias em uma língua diferente, que é para agregar todos os povos que por lá passam. E todo mundo anda com uma vela na mão. A mistura cultural e a união de pessoas provenientes de cantos tão longínquos uns dos outros é tão emocionante quanto o visual de tudo aquilo: luzinhas cintilantes mostrando corações tão acesos.

Pois eu lá, comovida com tudo, obviamente quis participar da procissão. Mas eu não tinha vela. Estava com cinco euros no bolso, o que dá para comprar um monte delas. Minha ingenuidade brasileira fez-me crer ser possível adquirir a vela, receber o troco e ainda dar um sorriso amigável a alguma portuguesa simpática que as estivesse vendendo. Mas lá em Fátima as velas ficam em caixas de acrílico abertas, ao lado das quais há um vão, como a abertura de um cofrinho, onde são colocadas as moedas para pagá-las. O valor de uma era algo como trinta centavos de euro, o que significava que a nota que eu tinha no bolso era muito. No lugar onde as velas ficavam à venda não havia qualquer tipo de fiscalização, câmera, pessoas vigiando ou conferindo se o valor depositado correspondia mesmo à quantidade de velas tiradas das caixas. Santa honestidade!

Fiquei maravilhada com aquilo: só faltou cair de joelhos para agradecer o contato com a civilização. Entretanto, fiquei mesmo sem vela diante da impossibilidade de obter troco. Não que a lindíssima procissão não valesse uma vela superfaturada, mas é que a conversão para reais travou minha fé.

Pude me redimir de ter ido a uma procissão de velas sem uma vela em outra procissão, desta vez na cidade natal do meu pai, onde fiquei uma semana. O patrono da cidade, São Sebastião, estava sendo festejado justamente quando de minha passagem pela aldeia. A festa é linda. A procissão é de verdade. Nunca andei tanto na minha "imaculada" vida. Lá, as pessoas se comprometem com o propósito da procissão, levam a sério de um jeito que emociona estrangeiros, dedicam-se a tornar tudo bonito, organizado e inesquecível.

No entanto, todo santo ano eu me decepciono quando, aqui em São Paulo, vou à missa de Santo Antonio. Não com o santo nem com a procissão em si, mas com as pessoas. A maioria é de um egoísmo de irritar qualquer cristão, até os não praticantes. Talvez por isso precisem freqüentar a missa, ir à igreja, pedir perdão ou o que for. Mas já era para terem aprendido, não?

A impressão que me dá é que as pessoas só seguem a procissão porque é apenas depois dela que são distribuídos os famosos pães bentos de Santo Antonio, comumente tidos como fonte inesgotável de abundância até o próximo 13 de junho. A tradição diz que se deve deixar um pedaço daquele pão onde se guardam os mantimentos, para que nunca falte comida. Reza a história — e o padre — que o pão de Santo Antonio simboliza o pão que Jesus dividiu com os apóstolos na Última Ceia, isto é, representa a partilha.

Dividir é tudo o que aquelas pessoas não fazem. Terminada uma procissão onde só meia dúzia acompanha a reza enquanto o restante da centena fala da novela, reclama do trajeto, presta atenção no carro da CET interditando as ruas, reclama da fome, olha para as placas de vende-se dependuradas em qualquer portão, brinca de colocar fogo no copo de plástico que protege a vela, faz-se um tumulto ao redor do que era para ser um andor — os tempos modernos demandam que o santo ande de carro, coitado.

Pois aquela bendita gente depena o pobre do santo. Não sobra uma flor para contar a história. Arrancam tudo como se aquilo fosse prover milagres, suprir necessidades, arranjar casamentos hollywoodianos com homens estonteantemente belos, bons, honestos e românticos. É, faz mesmo bem acreditar em milagres.

E a partilha, a comunhão, o olhar o próximo e dividir com ele, tudo isso fica na promessa. As pessoas se engalfinham com saquinhos plásticos nas mãos pegando quantos pães o desespero e a falta de educação permitirem. Não olham para trás, não levam em consideração a existência de outras pessoas, não têm sequer vergonha daquela insanidade toda. Os mais pacientes, que ficaram esperando sua vez com uma civilidade d'além-mar e atitude cristã, acabam sem pão. Justo eles, que saberiam, como ninguém, multiplicá-lo em tantos pedaços quantos fossem necessários para satisfazer a todos.

Não sei se é ignorância ou egoísmo demais abraçando a alma desses pobres de espírito. Sei que é preciso ser santo para continuar perseverante na crença de que elas um dia serão de fato catequizadas, introjetando, independentemente da religião que escolherem, a máxima que salvaria o mundo de todo tipo de infortúnio: "ama o próximo como a ti mesmo".