28 fevereiro 2011

Quanto tempo demora?

Daqui a um mês,
quando você voltar,
a Lua vai estar cheia
e no mesmo lugar


Quanto tempo demora um mês,
Biquíni Cavadão.


Acordei com o seu gosto e a lembrança do seu rosto. Mas, daqui a um mês, ela vai ter se dissipado, eu sei. Quando salpicamos os dias de lacuna, o tempo acaba apagando tudo, até as memórias mais resistentes. No começo, é um esforço para não deixar as reminiscências submergirem, trazendo-as à tona toda hora, num resgate incessante. Há quem diga que isso se chama esperança. Eu chamo de teimosia. A gente resiste a ver morrer, quer sempre salvar. Dá um certo desespero, é um derramamento de angústias. Mas tudo o que é sedimento uma hora sucumbe e afunda. Devagar. O inflexível não tem como ser fácil.

Não é fim do mundo. Até porque ele não acaba. Daqui a um mês, a Lua vai continuar no mesmo lugar.

Se eu pudesse escolher outra forma de ser, seria menos em vez de querer sempre ser mais. Eu me contentaria com a Lua imutável, com o tempo pastoso, a falta de gosto, a ausência. Acharia normal. Não me esforçaria para salvar nada. Deixaria passar. Eu me anestesiaria mais. Sonharia mais, realizaria menos. Seria menos esperançosa, mais mitológica, menos humana. Se eu pudesse escolher, nada eu sentiria. Mais simples.

E a saudade em mim agora, quanto tempo será que demora? Sentimentos assim não demoram. Perduram. Daqui a um mês, um ano, uma década.

E a Lua lá, no mesmo lugar.





Os versos destacados foram retirados da letra da música "Quanto tempo demora um mês", cantada por Biquíni Cavadão. Ao contrário deste texto, a música dá outro sentido para os versos. Ouça-a.

05 fevereiro 2011

A falta que você me faz

Serra Negra, SP, numa tarde em que Deus resolveu tomar sopa no céu


Deveria ser lei todo mundo ter avó até o final da vida, porque a gente passa a maior parte dela sentindo falta de uma. E não me refiro aos doces, aos afagos cúmplices, à piscina de afeto azulzinha só de olhar. Sinto falta da sabedoria que só as avós têm. Elas sempre sabem o que fazer bem na hora em que não sabemos. Elas pescam as dúvidas em nossos olhos, sem que tenhamos de pronunciar angústia.

Quando eu era bem pequena, minha avó materna me visitava às quintas, quando a feira fugia do dia da semana para se instalar na rua em barracas bem coloridas. Ela chegava um pouco antes do almoço, carregando uma panela cor de abóbora com tampa preta, onde guardava salsichas apetitosas mergulhadas em molho de tomate caseiro. Prendia a tampa à panela com uma manobra de elástico. Logo atrás vinha uma tigelinha cor de areia de tampa de vidro transparente que deixava à mostra uma farofinha gostosa.

As quintas eram meus dias preferidos porque era quando eu mais tinha avó. Num desses dias, ganhei dela uma lupinha para observar formigas. Até então, eu nunca havia reparado no minúsculo. Essa é outra habilidade das avós: ensinar a gente a ampliar o campo visual.

Foi com a minha avó que aprendi que não se pode gastar com uma mão o que não se tem na outra. Às quintas ela me dava moedas, mas me incentivava a poupá-las em vez de sair desembestada para comprar uma vontade. Quando eu era um pouco maior, mas ainda pequena diante de parâmetros adultos, veio outra lição: o dinheiro se conquista, não se ganha. Eu pintava umas gravuras que achava bonitas e minha avó as comprava de mim com mais centavos. Devia jogá-las fora, hoje eu sei.

Minha avó era severa na educação dos netos. Falava baixo, mas sempre firme. Tinha horror a escândalo, louça e toalha de plástico, xícara de borda grossa, guardanapo de papel. Vestia-se sempre com roupas simples mas de caimento perfeito, era recatada. Embora não tivesse completado o ensino fundamental, teve educação europeia: aprendera boas maneiras como governanta de uma família alemã de cuja fazenda o pai fora administrador. Comigo nunca falou alemão, mas minha mãe afirma que minha avó conhecia muitas palavras dessa língua.

Tinha nome literário ela: Julieta. Tinha um irmão Romeu. Entretanto, embora alfabetizada, minha avó não era de ler histórias em livros. Ela me contava algumas de cabeça. Uma delas era uma parlenda – hoje eu sei o nome – de um caranguejo que havia brigado com um galo e levado uma bicada. Saía por aí pedindo um “pano porque o galo me pinicou” e desenrolavam-se muitas exigências dependentes umas das outras para que o bicho obtivesse o tal pano. Foi a primeira vez em que tive contato com um final não feliz, porque, mediante tanta barganha, o pobre-diabo acabava morrendo. Ao terminar o caso, minha avó ria. Eu não entendia a graça e achava horrível as pessoas terem se recusado a ajudar alguém necessitado por pensarem em se beneficiar disso de alguma forma. Sábia, minha avó. Estava me preparando para o mundo: no fundo somos todos caranguejos implorando por panos para estancar feridas.

Todas essas lembranças, porém, não são suficientes para eu me sentir completa. Minha avó sempre falta, porque tem muita coisa que eu não tive tempo de perguntar a ela e que eu tenho certeza de que ela saberia me responder com o pé nas costas, com toda aquela experiência que o rosto denunciava. Ela me entendia mais do que meus pais porque era mãe ao quadrado.

Deveria ser proibido as avós morrerem no início da adolescência da gente, quando mais precisamos delas. A gente acaba se virando sozinha, é verdade, mas nunca tão bem. E termina arrastando para a vida adulta todas as perguntas que não puderam ser pronunciadas e que manual, guru ou google nenhum respondem.

Penso na minha avó todos os dias, porque ela faz parte de mim, porque foi com ela que aprendi a me portar direito, a zelar por meus pertences, a ser criativa, solidária, responsável, observadora e sensível. É nela que me espelho para continuar uma mulher forte. Ela era dona de si.

Mas hoje, especialmente, eu sinto uma falta gigante da minha avó. Hoje é um daqueles dias sem saída, em que tentamos escalar as paredes mesmo conscientes de sua altura. Nessas situações, dona Julieta não me estenderia uma escada, tenho certeza, mas me ensinaria a construir uma com o que eu tivesse à mão.

Eu olho, olho, olho ao redor. Até enxergo possibilidades. Mas não sei montar com elas uma escada. Continuo perdida, me debatendo com perguntas e mais perguntas me tirando a voz, acumulando na garganta. Perguntas que só minha avó, do alto de sua sabedoria, saberia responder, ainda que sem palavras.

Queria que hoje fosse quinta-feira.