21 outubro 2007

Vontade de verdade

Hoje me deu vontade de pôr tudo no lugar, os pingos nos is, tudo em pratos limpos — e novos. Vontade de verdade, de sol, de ar bem puro passeando pelos pulmões de um jeito bem despreocupado.

Hoje é dia de pregar botão, de alinhavar tudo o que está solto, pôr para lavar o encardido, tirar o edredom da cama, porque é quase verão, e a preguiça teima em enrolá-lo ao pé da cama todos os dias — isso sufoca.

Hoje é para jogar fora aquele monte de coisa que recebo pelo correio e que me informa o que eu já sei. Tirar o pó, limpar o teclado, mudar de idéia. Está na hora de arquivar a tonelada de documento que se empilha há dias em cima de mim — isso oprime. Trocar a cor da tinta, escrever com outra caneta, colocar para reciclar algumas embalagens que, sei lá, eu cismei de guardar por algum motivo que já fugiu de mim.

É porque hoje acordei de outra cor, com uma disposição daquelas de lavar carro, mas vou lavar mesmo é meus pecados, minhas lamúrias e toda sorte — aqui seria melhor escrever "azar" — de quinquilharias emocionais que andam atopetando de cólera todos os meus armários.

É dia de devolver para a estante os livros que não estou lendo, mudar a folha do calendário, porque o mês novo já entrou faz um tempo e eu nem percebi. A vontade é mesmo tirar da frente o que confunde minha visão, aquele monte de formas que olham para mim toda hora pregadas no quadro de avisos. Já avisaram o que tinham para avisar. Está na hora de saírem de lá.

Agora é a hora de parar de implicar, parar de amontoar as roupas em cima daqui e de lá, esperando a hora de arrumar. É hora de parar de esperar. Sacudir a moleza e mandá-la passear. De preferência, lá para a Capadócia, que é onde a gente pode ser bem mole até ver o tempo parar.

Hora de acabar com os restos de xampu, com o nunca que a gente enfia nas gavetas achando que um dia vai usar. Hora de doar, pôr para circular, desfazer-se tirando todos os nós, andar descalço, vestir roupa leve, esfoliar o cérebro para deixar só essência.

Hoje, minha gente, é dia de ver orquídeas, de andar florido, de encher a casa de lírios, de sentir perfume bom, cheiro de bolo quente, pão doce ou bom humor.

É dia de simples, de dançar, de rodopiar até ficar tonto no meio de tanta coisa para fazer. Dia de deixar o que é chato para lá. Porque a vontade de verdade é de paz.



Para quem é de São Paulo e está a fim de ver orquídeas, o Orquidário Morumby é uma boa pedida. A exposição "Festival da Primavera" vai até dia 28/10/2007, e, para entrar, basta levar um quilo de alimento não perecível. Você vê beleza e ajuda o próximo. Ótima maneira de ficar em paz.

Os lírios da paz que ilustram o post são um pedacinho do meu quintal que escaneei, usando como fundo um presente lindo que ganhei da Cleu Sampaio, junto com uma bolsa linda que ela fez para mim, porque ela transforma a arte que vai dentro dela em objetos personalizados que combinam com a alma. Passa lá para ver...



14 outubro 2007

Pão nosso de cada dia

Foz do rio São Francisco, Alagoas


Magnólia saiu para jantar mesmo sem fome. Pensava em padaria embora não tivesse estômago para encontrar soluções. Os problemas teriam de acabar um dia, ela pensava. Um dia, padaria.

Sentou-se ao balcão e remoeu indecisão. Tantos pães diferentes poderiam resolver os percalços do mundo, ela pensou. De certa forma, saber que muita gente passava fome consolou-a um pouco. Ela, pelo menos, podia escolher o pão embora não pudesse fazer o mesmo com os problemas. Um dia, faria.

Pediu um francês, frios, suco de laranja sem gelo — de frieza já estava farta. Sem açúcar, de preferência. Necessidade urgente de acostumar-se ao amargo. Preparava a garganta para misturar tudo aquilo quando viu que alguém a observava. Será possível? Um dia, pararia.

Nada feito. Magnólia não acreditava no desassossego que aquele olhar lhe causava. A paz que procurava na refeição tinha virado farinha. "Algum problema?", tinha vontade de perguntar. Resolveu engolir seco. O suco não estava bom mesmo. Um dia, estaria.

Ignorava o olhar, o sabor, a resistência do estômago em digerir tudo aquilo. Levantou-se, foi até o outro lado do estabelecimento, lavou as mãos na pia para enxaguar a confusão. Não havia papel para enxugá-las. Um dia, haveria.

Voltou para o seu lugar, terminou o francês, os frios, parou de ruminar e finalmente decidiu: "algum problema?", perguntou, incisiva. "Todos", ouviu de volta. Calou-se. Descobriu-se. Percebeu que era só mais uma. Um dia, não mais seria.

E era isso o que ela mais queria.


08 outubro 2007

Muralha de vento

Castelo de Almourol, Portugal


Disseram-me que sou uma mulher corajosa. Nunca temos certeza de uma coisa dessas até que nos digam isso.

Já fui mais covarde. Muito mais covarde, como todo mundo. A sorte é que, com o passar dos anos, as linhas de expressão que vão marcando o rosto mostram-se um indicativo de que estamos aprimorando a arte de expressarmo-nos e aprendendo a dizer o que sentimos sem medo de incompreensão. É uma liberdade estranha que poucos entendem, mas que nos torna mais corajosos, destemidos e decididos a enfrentar o que vier: solidão, rejeição, desmotivação, hipocrisia, egoísmos de todos os tipos, insegurança, cegueira, escudos intransponíveis de psicológicos alheios mais diversos que toda a diversidade que guardamos dentro de nós.

Não precisamos ser inesquecíveis. Seremos corajosos se tivermos presença de espírito para saber que somos falíveis, substituíveis, falhos e imperfeitos, nunca nos acomodarmos com essa consciência, mas usá-la para aprimorar nossos sentidos.

Temos de saber lidar com nãos. Podemos simplesmente passar pela vida de algumas pessoas se assim elas quiserem. Seremos corajosos se as respeitarmos como são, represando nossa imensa vontade de nos impor a qualquer custo, porque sentimos, porque queremos, porque sabemos que nossa bondade é maior que tudo e que estamos repletos de boas intenções. Há horas em que elas não bastam. Nem nosso olhar mais terno, nossa sinceridade mais nua, nossas paixões mais viscerais ou nosso eu em ebulição. A coragem cresce a cada balde de água fria, e é necessária principalmente quando precisamos chorar. Só os corajosos não têm vergonha de chorar de verdade, vestidos numa transparência que moda nenhuma imita.

Aliás, parece-me proporcional: quanto maior a coragem, maior a probabilidade de sofrer. Porque dar a cara a tapa dói, cair machuca, entender que nem tudo acontece como gostaríamos decepciona, perceber que os outros não sentem o mesmo que sentimos, ou tão profundamente quanto, desilude, vermo-nos ilha tira-nos o chão.

E, ainda com as pernas bambas, quando perdemos a base temos apenas duas possibilidades: permanecermos inócuos e chorosos pelos cantos, esperando o mundo resolver-se por si só, ou levantar toda santa vez, aprender com os tombos, memorizar bem o que causou as feridas, para literalmente não cairmos de novo na mesma emboscada, e resgatar o ânimo para continuar andando, doloridos por um tempo, é verdade, mas mais preparados e cientes de que haverá mais tropeços. Tudo porque quem se mete a desbravar tudo aventura-se a desbravar a si mesmo. E não tem coisa mais assustadora e perigosa que o autoconhecimento. Olhar para dentro é uma forma de ser valente.

Mais do que enfrentarmos tudo, termos garra, acreditarmos nos próprios princípios e colocá-los em prática, trabalharmos, esforçarmo-nos, não esmorecermos, não perdermos as esperanças nem temermos o sofrimento, sermos corajosos é sabermos nos despedir de quem não nos quer ou nos faz mal, sairmos das situações que nos atam as mãos e nos deixam infelizes, livrarmo-nos sem dó do que não serve mais e guardarmos o carinho e a ternura que o aprendizado vai marcando tão gentilmente em nós com todas as linhas de expressão a que temos direito.

Pensando em tudo isso, descobri-me corajosa exatamente como disseram que sou. Porque eu sempre recomeço. Sem rancores.