24 setembro 2007

O dia em que choveu azul


"You tell me we can start the rain
You tell me that we all can change"
Rainmaker - Iron Maiden
(Dave Murray/Bruce Dickinson/Steve Harris)



Achava que já estava completa, de tantas convicções que carregava dentro de si. Sempre foi alegre, distribuindo por aí pitadas aleatórias de intensidade e revestindo de otimismo todos os acontecimentos, como se se preparasse constantemente para um baile de Carnaval.

Até que um dia deparou-se com um azul. Ficou desconcertada com tanto deslumbre. Era de um tom que ela nunca havia visto antes, desses que a gente não encontra em mostruários; só sob encomenda.

Numa determinada manhã, daquelas bem calminhas, a moça das convicções saiu para caminhar numa praia desconhecida, lugarzinho perdido num canto esquecido do mapa. Levou com ela o azul, ávido por encontrar mais cores. Então, num dado momento, desses que o relógio esconde quando o mundo pára em forma de deserto, sentaram-se à beira-mar para olhar para o horizonte.

À frente deles havia verde, um pouco do bege da areia, o branquinho de quando as ondas quebram, várias nuanças de marrom cobrindo pedras e uma vastidão de cinza maciço, como se o céu tivesse se vestido mais sério só para se impor em silêncio.

Foi aí que viram, no mesmo horizonte para onde olhavam, uma nuvem chuvosa carregadinha de de-repente vindo na direção deles. Mais ninguém ao olhar para a direita. Mais ninguém ao olhar para a esquerda. Só ela e o azul, as outras cores e a chuva iminente, trazendo água para, quem sabe, desbotar tudo numa lavagem inocente.

Então, com uma coragem serena, dessas que não se compram a granel, permaneceram ali, quietos. Não correram. Não falaram. Pensavam aquarela enquanto esperavam a nuvem chegar.

Foi quando choveu. Forte, torrencialmente, numa sucessão de pingos grossos ensopando tudo. Decerto a chuva seria passageira, dessas de verão que atravessam outras estações em forma de imprevisto.

De súbito, debaixo daquela chuva, a moça das convicções viu todas escoarem para o mar, deixando-se chover também, completamente despreocupada. E, daquele dia em diante, ela nunca mais foi a mesma.

Dizem que a culpa é daquela aguaceira toda. Mas alguma coisa dentro dela sabe que foi a cumplicidade do azul.


20 setembro 2007

Logo ali, onde você vai estar

O meu querido amigo André convidou-me a escrever um post sobre viagens para colocar no blog dele enquanto ele viaja pela Europa.

O texto, escrito especialmente para o Marmota, está logo ali para você ler e, se quiser, comentar, lá ou aqui.

Boa viagem!

12 setembro 2007

Algodão-doce

Com um pouco de atraso (desculpem!), este post responde o convite que recebi do Rafael Porto, do Alforria. Parece simples, mas resumir as lembranças todas da infância a apenas cinco faz pensar um bocado...


Lápis de cor

Sempre fui uma criança curiosa, que tudo perguntava e tudo queria saber. Nunca aceitava ordens sem que me explicassem o motivo, porque a racionalidade mora em mim desde que nasci. Então, quando me mandavam fazer alguma coisa sem me explicarem por quê, eu simplesmente não fazia, por não entender a necessidade daquilo.

Os apelos eram em vão. Se não me convencessem, nada feito. Uma criança quase incorruptível, não fossem... os lápis de cor! Por uma caixa deles, de 12, 24 ou 36 cores, eu fazia qualquer coisa. Lembro-me de que minha mãe, às vezes cansada de argumentar comigo, apelava para o acordo: "Kandy, se você fizer o que a mamãe combinou com você, você ganha uma caixa de lápis de cor". Valia a pena.

Mesmo que eu já tivesse uma caixa, sempre queria mais. Adorava olhar para as cores arrumadinhas fazendo degradê, mesmo sem entender para que servia o branco; achava mágico demais ter o poder de colorir tudo o que nasce sem graça, desprovido de alegria.

Um dia, num aniversário aí, acho que de 8 ou 9 anos, minha tia me deu um estojo de zíper com dois compartimentos recheado de cores. Ela conseguiu reunir lápis de cor e canetinhas de todas as cores do mundo num lugar fechadinho só para mim! Foi um presente inesquecível! Outro dia, no Orkut, reencontrei um amigo meu da infância que, ao ser perguntado se se lembrava de mim, respondeu rapidinho: "se eu me lembro? Claro! Você era aquela menina que tinha um estojo cheio de lápis de cor!"...



Jantar de domingo na casa da minha avó

Uma vez por mês, eu, meus irmãos e minha prima nos reuníamos na casa da minha avó materna para jantar. Éramos tão pequenos que cabíamos todos ao redor da mesa de centro da sala, que minha avó cobria com uma toalha com cheiro de sabão em pó. Comíamos em pratos fundos, de louça boa, com garfo e faca de sobremesa. Bebíamos vinho com água e açúcar, que minha avó colocava em cálices de cristal bem pequenininhos, desses de servir licor. Eu me sentia importante com um cálice daqueles, porque, nas histórias da Idade Média que eu lia, todos os cavaleiros e reis e rainhas e princesas usavam cálices nas refeições.

O menu era sempre o mesmo: macarrão com salsicha Santo Amaro, aquelas gorduchas e suculentas, farofa com ovinho e azeitonas e, às vezes, a torta de batata da Celina, uma senhora que sempre trabalhou para a minha avó e que merece um post só para ela.

Minha avó gostava de guardanapo de pano, xícara de borda fina sempre com pires, coisas de cristal, porta-guardanapo de metal, tudo fino. Eu achava o máximo, mas sempre me atrapalhei com molho de tomate. Todas as roupas do meu armário têm atração por molho de tomate... Então, minha avó abria um guardanapo de pano bem grande (para mim era bem grande) e amarrava-o em volta do meu pescoço, feito aqueles bandidos de bangue-bangue. E era assim que eu comia, junto com meus irmãos e com minha prima, assistindo aos Trapalhões, quando eram quatro e engraçados.



Livros de contos de fadas e do rei Artur



Sou fã número um do Rei Artur. Chorei feito uma louca quando li a história do Tristão e da Isolda. Acho a rainha Guinevere uma fraca indecisa e, apesar de concordar com a população feminina mundial de que o Lancelot era um pedaço de mau caminho, nunca o perdoei por ter traído o rei Artur, um homem tão nobre e justo daqueles! E rei, ainda por cima!


Isso é que dá ler desembestada! Eu me insuflava de maniqueísmos de tanto que lia contos de fadas de todos os países, em edições de capa dura com a ortografia ainda antiga, antes da reforma ortográfica de 1970, apesar de eu ter nascido em 1975. Da coleção toda, os de que eu mais gostava eram Os mais belos contos de fadas tchecos e Os mais belos contos de fadas húngaros. Eu nem sabia o que era tcheco e húngaro, mas tudo bem, devia ser uma coisa legal.


As ilustrações eram grosseiras, mas eu gostava. Passavam uma idéia de sombra, mistério... e aquela ausência de cor me fazia querer pintar tudo com os meus lápis de cor. É que eram tantas ilustrações que, se eu fosse pintar uma, teria de colorir todas. Era trabalho demais, eu acho... ia gastar todo o meu estoque de lápis de cor. Então, decidi que não valia a pena. Ficava só com as histórias mesmo, com anões, dragões, princesas e injustiças num mundo esquisito onde as pessoas usavam roupas mais esquisitas ainda, sumiam e apareciam do nada, voavam, adivinhavam ou eram tapadas demais para entender o que estava acontecendo ao redor.




Passeios de graça com o meu avô

Meu avô já ganhou um post só para ele, mas os passeios que fazíamos eram mesmo inesquecíveis, sobretudo porque ele me fotografava, numa época em que ninguém quase era fotografado assim, com essa abundância de cliques.

Como éramos cinco netos, meu avô não tinha dinheiro para levar a gente a lugares caros. Então, ele foi o responsável por estreitar minhas relações nada amigáveis com o governo, porque me levava a todos os lugares públicos de São Paulo. Eu conhecia todos os parques, o do Ibirapuera, da Água Branca, do Carmo e do Piqueri; andava de metrô para cima e para baixo, e era amiguíssima da girafa do Zoológico, porque eu vivia lá, era praticamente de casa. Ao que parece, num dado momento lá ela nem agüentava mais olhar para a minha cara, por isso nossa amizade terminou, eu acho. Pescoçuda de uma figa!



Brincadeiras na casa da minha prima

Era muito legal ir para a casa da minha tia, a única irmã da minha mãe. Lá eu jogava Atari, apesar de sempre perder dos meus irmãos, brincava de pista (minha prima espalhava pistas em pedaços de papel remetendo a gente de um lugar para outro pela casa inteira até achar o tesouro, geralmente uma coisa bem besta...), de trenzinho, de casinha, de cabana no jardim, participava do batizado da Fifi, a coelha bege e fofa que minha prima tinha, escorregava pelo beiral da escada, dava comida para as tartarugas que me morderam o nariz quando eu era bem pequena, ouvia música, dançava e, o mais legal de tudo: me fantasiava. Não sei se minha prima me achava com cara de boneca para ficar me vestindo daquele jeito, mas eu achava divertido experimentar aquele monte de roupas engraçadas, usar colares, chapéus, bolsas, sapatos e maquiagem de gente grande. Minha prima tinha uma Polaroid e acho que se divertia mais do que eu fotografando aquela palhaçada toda!



Não posso reclamar porque tive uma infância especial e feliz, a base do que sou hoje, dos valores que carrego, do meu senso de família. Foi na infância que aprendi a ser verdadeira, a dar vazão à criatividade, a achar que todo mundo é bom, que tudo é açucarado e possível, numa ingenuidade típica de quem não tinha com o que se preocupar.

Então, apesar de ser uma pena crescer e perder um pouco disso, a saudade é bem boa. Dá um acalento todo especial à alma e faz brotar um sorriso suave nos lábios, desses que só quem foi criança de verdade consegue resgatar de vez em quando.