27 julho 2008

O dia em que perdi a fala

Do dia para a noite fiquei sem palavra.

Minha mudez espalhou-se na minha cama fria. Em pensamentos de paroxítona, pergunto-me para que servem agora os cobertores se nem suas franjas me fazem mais cócegas. Eu e tudo perdemos o sentido.

A água com que eu lavo meu rosto todas as manhãs não me diz mais nada. Não ouço conselhos nem gritos de socorro. Ficou tudo silencioso depois que as pessoas engoliram seus olhares de cobiça junto com o café. Um pingado insignificante que já não me alimenta mais.

Não posso mais decodificar as palavras que leio, o que me impede de escrever: uma dor muda nos olhos, capaz de arremessar a órbita para um mundo surdo, me impossibilita ser a voz de quem nunca sabe o que dizer. Uma pessoa muda não pode mais ser porta-voz dos outros, encarando expressões cínicas e fingindo ser delas palavras que lhes empresta em momentos de prostituição.

E as lágrimas que antes diziam tanto agora secaram de vez. Curioso como há partes da gente que só gritam de um jeito rouco quando o restante pára e torna o silêncio ensurdecedor.

O médico vai mandar pôr a língua para fora e dizer "aaaaaaa". E vou mostrar-lhe a língua até dizer chega, sem letra nem som, deixando-o intrigado a encontrar onde a minha voz ativa se perdeu. Deve ser o mesmo lugar onde deve estar a minha vontade de tirar a palavra da boca dos outros.

É que do dia para a noite fiquei sem palavra, como se tivesse desaprendido a ler, como se tivessem raptado minha fala. Só me restaram pensamentos sussurrados soprando o que não me diz mais respeito.

E durante um tempo vai ser assim: vou acordar na cama fria com cobertores inexpressivos, e lavar o rosto com água insalubre, e tomar café insosso olhando para um jornal em branco.

Os dicionários definem isso como desilusão. Taí a palavra.


Blenheim Palace - Woodstock, Inglaterra

17 julho 2008

Até que a morte nos separe

Detalhe do chão da Praça da Língua, no Museu da Língua Portuguesa, SP


Todos os dias eles saem para andar. É bonito ver o amor que ele tem por ela, pegando-a pela mão e acompanhando-a na caminhada. É triste ver a falta de amor que ela tem por si mesma, deixando-se levar sem vontade, colocando um pé à frente do outro em passos de obrigação.

Não é só o tênis dela que não combina com a disposição dele; o ritmo de um destoa do do outro: ele quer ir, ela daria tudo para ficar; ele vê esperança, ela quer voltar para a cama; ele levanta os braços buscando exercício, ela boceja enfado; ele bendiz o novo dia; ela amaldiçoa o médico que deu aquela ordem besta, porque ele não precisa e quer, ela não quer e precisa.

Não dá para saber qual a doença que ela tem, o que ela pensa, por que a falta de ânimo. Não dá para saber o quanto ele quer que ela se cure, o que ele sente, a origem da persistência em levá-la adiante. Dá para ver de onde vem a paciência dele e a condescendência dela, e imaginar que ele a carregaria no colo se isso não a prejudicasse e que ela morreria por ele, se isso não o entristecesse.

Tem dias em que o sol atrapalha; ela não usa óculos escuros. Tem dias em que o frio incomoda, ele tem de emprestar-lhe a jaqueta. Tem dias em que o vento despenteia, quando ele carinhosamente ajeita uma mecha atrás da orelha dela. E tem dias em que chove, e ele a guarda sob o guarda-chuva que carrega.

Ora andam de um lado da rua, ora andam do outro. Vezes há em que não voltam, mudam o trajeto. Outras, não chegam à metade; a teimosia dela os faz voltar para o começo. Ele sempre bem-disposto; ela já debilitada.

Raramente conversam, pois a ela parece penoso andar e falar; ele prefere não ser inconveniente proferindo otimismos que ela não enxerga. É a claridade da manhã... ou a falta dos tais óculos escuros.

Ela anda lentamente olhando para baixo, acompanhando a palidez da pele. Ele olha para frente, sorrindo moreno e puxando-a delicadamente.

As mãos continuam dadas. E é isso o que importa para eles.