28 agosto 2006

Axé, meu rei!

Para Pablo e Helen, que me mostraram a Bahia com o coração mineiro.


“Queria ter nascido baiana, nesta terra privilegiada e colorida, onde rir é mais natural que o coco que dá nas árvores”, eu pensava, enquanto visitava um dos pontos turísticos mais famosos de Salvador, onde Jesus vira Nosso Senhor do Bonfim, da boa morte, do bom final.

Marta queria ter voltado para Porto Alegre. Pensava nisso, sentada num dos bancos da Igreja, quando olhou para mim. “Você é gaúcha?”, ela perguntou, olhos brilhantes pela familiaridade com a brancura da minha pele num lugar onde isso não é tão comum. “Não, sou paulista.” “Pois faça três desejos nesta Igreja e depois reze ali, na Nossa Senhora da Boa Morte, que é pra ela te dá a graça de morrer sem sofrimento.” Rezei. Deveria ter rezado ainda mais, pedindo perdão por tudo o que foi feito com os escravos naquele pedaço de chão. Aquilo sim foi sofrimento... pude constatar depois por tudo o que visitei na primeira capital do Brasil.

O mesmo Nosso Senhor do Bonfim, para mostrar que a escravidão é relativa, colocou seu Odilson bem na minha frente, vendendo coco a um real. “Preciso reclamá com o fabricante desse carrinho, porque ele não gela o coco. Tenho que acordá mais cedo pra tirá os coco da geladera e pô aqui. Sabe, eu vô te dizê uma coisa: o povo aqui é pobre porque a televisão ilude muito, num sabe?”. (Pois eu não sei? Sempre achei que aquela escadaria do Bonfim fosse uma enormidade de grande e era aquilo?! Que decepção!) Seu Odilson falava escancarado ainda que sem a maior parte dos dentes na boca. Vestia roupa esfarrapada, mas estava coberto de razão. Ali, na frente da meia dúzia de degraus da Igreja do Bonfim, ele lavava era a alma, ao contrário de mim, que tomei banho de MPB na praia de Itapuã e na Baixa do Sapateiro.

Todo mundo ali sorri até quando reclama da vida. Eles se revestem de uma conformidade consoladora que espalha uma energia estranha no vento. A gente sente o aroma da vida, a fé derrubando tudo, porque lá as fronteiras entre as religiões não existem. Importa o que carregamos dentro da gente... “Vá com Deus”, eles dizem. “A senhora fique com ele”, respondi.

“Fitinha do Bonfim, presente da Bahia”, achegou-se um ambulante. “Não, obrigada... Ô moço, você sabe todos os orixás de cor?”, eu e minhas perguntas esquisitas! “São deiz. Te faço uma lista, qué?” Eu até queria, mas ele ia cobrar, aquela coisa da falta de emprego e da televisão que ilude todo mundo. (Confesso que não entendo de orixás e preciso de uma tabela de conversão para saber quem é quem, mais ou menos como aquela de equivalência entre os deuses gregos e romanos. Nomes diferentes para a mesma divindade; mais uma prova de que o substantivo próprio pouco importa.)

Eu estava com amigos: Leo, que viajou comigo, e Pablo e Helen, um casal mineiro que nos recebeu de coração aberto. “Queria ter nascido mineira, pra ser assim tão legal”, eu pensei num certo momento. Eles falam manso, mas numa mansidão diferente da baiana. Pablo já mistura os sotaques. Daqui a quinze dias, mudam-se para a Espanha, onde Helen vai fazer doutorado em Nutrição. Serão quatro anos longe do Brasil, de Minas, da Bahia...

“O importante é você conversá cum gente importante, purque assim você fica importante também”, disse seu Edvon, 71 anos, que nasceu com outro nome mas mesmo assim tornou-se artista. Deixou uma promissora carreira em Milão porque, ao contrário de Helen, tem medo de avião. Anda com seu portfólio debaixo do braço, fazendo graça para quem olha pra ele. Helen olhava a cidade lá de cima, talvez pensando na Espanha, talvez pensando na vida, no que vai deixar, no que vai ser... “Tá tão lonelí essa minina!”, seu Edvon tentou falar inglês. Lonely estamos nós em São Paulo, eu quase respondi. “E você, aí, tão grisonê, hein?”, virou-se pro Leo. Perspicaz daquele jeito, foi fácil notar nossa cara de interrogação. “Num estudô franceis, não, minina?”, perguntou pra mim. Eu bem que queria, até tentei, mas nunca cheguei nessa parte do grisonner.

Um homem de 71 anos tirando um sarro daqueles de nós quatro! Pudera! Tirou até foto com a Vanusa numa época aí de óculos enormes. Era bonitão o homem. “O senhor acha que a vida melhorou?”, arrisquei a pergunta. “Mais é claro! Antigamente as minina ficavam viúva e tinham que ficá com roupa preta pra sempre. Agora, não. Ninguém mais fala nada. Casa de novo e tá tudo certo!”. Esse ria com todos os dentes da boca, que o ajudavam a imitar madame falando ao telefone, mestre-de-cerimônias apresentando o prêmio que ele ganhou pelo melhor desenho. “Vô te contá um fenômeno: pois compre um cântaro na Grécia quando você for pra lá pra pudê chorá todas as lágrimas de arrependimento por não tê comprado uma gravura minha. Depois que eu morrê vou virar um Van Gogui, um Matisse...” e ria. Definitivamente, “cântaro” e “fenômeno” não são palavras que passeiam na boca do povo, pelo menos não na daqueles com poucos dentes nela.

Quando, já tendo chegado em São Paulo, encostei minha cabeça no travesseiro, rezei de novo, mesmo não estando mais no Bonfim. Agradeci tudo, o fim de semana, o fim do tipo mais cruel de escravidão, o relativo progresso da humanidade, o coco do seu Odilson, o talento do seu Edivon, a saudade da dona Marta, o Sol que substituiu a chuva, meus ombros vermelhos por causa da mudança de tempo, a boa vontade mineira em terra baiana, a amizade do Leo, meu trabalho que paga uma extravagância como uma viagem dessas...

Mas o mais importante de tudo eu deixei para quando a gente se emociona mais: agradeci veementemente meu privilégio em ter nascido... brasileira.



P.S.: "Axé" significa, segundo o Houaiss, "a força sagrada de cada orixá, que se revigora, no candomblé, com as oferendas dos fiéis e os sacrifícios rituais"; como interjeição é "saudação votiva de felicidade", "expressão equivalente a 'assim seja' ou 'tomara'", "expressão de concordância, aprovação; está bem".

Legenda da imagem: Vista da orla de Salvador da parte de cima do Elevador Lacerda.


20 agosto 2006

Contemplação

Era um senhor septuagenário. Àquela altura da vida, passava o dia sentado em um banco improvisado, em frente à sua casa, vasculhando com seus imensos olhos azuis tudo aquilo que por ele ousasse passar. Às vezes eram pessoas; às vezes, borboletas.

Chamava-se Luís. Usava óculos grossos, desses com lentes que deixam os olhos ainda maiores e, no caso dele, ainda mais deslumbrantes. Tinha bochechas vermelhas, não por causa do calor. Parecia que tinha nascido assim.

Fora marceneiro, um desses bem habilidosos, coisa que os calos das mãos denunciavam. Muitos calos, poucas palavras. Falava pelo olhar. Quando o ânimo deixava, no entanto, ele ousava acenar timidamente. Quando paravam, pessoas ou borboletas, ele cumprimentava com bom-dia ou boa-tarde, oferecendo um sorriso que diminuía o tamanho das bochechas.

Um dia apareceu alguém que de lá não era. Trouxe empolgação, novidade, o passado inteiro repaginado em forma de nova geração. Mas tudo o que os olhos azuis fizeram foi oferecer vinho e goiabada com queijo, perguntar como estava a vida — numa confissão óbvia de não saber lidar com o inesperado — e olhar, olhar e olhar, escaneando a visita para, quem sabe, conseguir desvendar a genética.

E sempre que a visita passava em frente à casa do senhor Luís, ele tirava o chapéu e inclinava levemente a cabeça. Tinha dias em que fazia tchau, batendo a bengala com a outra mão... Dizia que a cabeça era boa, mas as pernas, ruins. E a visita sempre achava que ele se despedia melhor do que cumprimentava.

Pode parecer poético alguém passar o dia assim, olhando tudo numa quietude providencial. Há até quem pense que era uma vida triste ou ociosa pela preguiça dos anos. Dizem que algo nele sabia o que o futuro lhe reservava e que justamente por isso ele ficava ali, paciente, só esperando...

A visita foi embora de vez. Dois meses depois, ele também.


15 agosto 2006

Cantoria mais besta, sô!


Dizem por aí que quem canta os males espanta. Mas aposto que muita gente canta sem sequer prestar atenção àquilo que está cantando: pronunciam as palavras assim, descompromissadamente, mais guiadas pela melodia que propriamente pelo significado da canção.

Pois eu, aquela que lia o mundo de um jeito pra lá de curioso, também lia o que eu cantava, ou o que cantavam para mim, com os mesmos olhos “isológicos” de sempre: arregalados de horror ou com cintilantes pontos de interrogação faiscando pra lá e pra cá.

Minha mãe, por exemplo, na melhor das intenções maternas, cantava uma música para a gente dormir. Segundo ela, uma música que minha avó cantava para ela. Mas eu, em vez de dormir, permanecia imóvel debaixo das cobertas, com um medo friorento que congelava meus movimentos e não me deixava sequer piscar.

A música dizia assim: “Ei vi Nossa Senhora / na beira do rio / lavando os paninhos / pro seu bento filho / Nossa Senhora lavava / São José estendia / e o menino chorava / do frio que fazia / Não chore, meu menino / não chore, meu amor / o frio é uma faca que corta / um talho sem dor”.

Pois era justamente esse talho sem dor e a tal da faca que corta que me deixavam horrorizada. Como eu ainda não era alfabetizada, pensava em imagens e, sendo a metáfora uma delas, pensava-a literalmente: imaginava um menino todo retalhado (“talho” < “retalho”) pela faca do frio... e eu é que ficava gelada.

A música do Cravo que briga com a Rosa era outra coisa pavorosa. Rosa mais burra, que, depois de apanhar do imbecil do Cravo, ainda vai visitá-lo por ele ter ficado doente! Inadmissível isso para mim. Eu via a cena na minha cabeça: os dois debaixo da sacada numa briga violenta. Um barraco nada divertido para uma criança, convenhamos. Música mais machista e, ainda por cima, de espancamento!

Aí vinham as cantigas de roda. Sabe-se lá de que tempo era isso, porque eram umas palavras muito estranhas para alguém que ainda estava aprendendo o som correto que elas têm. Duvido que alguma criança soubesse o que era “ladrilhar” na música: “Se essa rua / se essa rua / fosse minha / eu mandava / eu mandava / ladrilhar / com pedrinhas / com pedrinhas de brilhante / para o meu / para o meu amor passar”; ou o que era uma cutia que corria na casa da tia. Diga-se de passagem que essa música da cutia apressada era a coisa mais sem pé nem cabeça que eu já havia escutado na minha tão infantil vida. Um galo que chupa cana com um dente só?! Eles pensam o quê? Que criança é burra?! Para piorar, a bendita segunda pessoa... aqui em São Paulo, onde sempre vivi, essa coisa do te, ti, contigo, tu e afins não é usada. Então, pra mim, a música da Ciranda, Cirandinha continha umas palavronas: “tumitinhas”, “tumidestes” que eu nem fazia idéia do que eram. É, porque eu também achava que o “Abre-te, Sésamo” do filme era “Abre, Tesésamo”, assim, tudo grudado. Essa prática mania de juntar tudo eu também aplicava a uma música portuguesa que eu sempre ouvi: “Lá em cima está o tiro liro liro / lá embaixo está o tiro liro ló / juntaram-se os dois na esquina / tocaram concertina / dançaram sol e dó”. Pergunto-vos: como é que este ser que vos fala saberia, naquela idade, que concertina era um instrumento musical? Achava que era algo como “com certeza”. E o “sol e dó”, como era cantado “solidó”, só podia ser o nome da dança que aqueles loucos dançavam com certina.

Para terminar essa minha truculenta relação com as canções infantis, eu ficava arrasadíssima com a música do ribeirão que secou. Na parte do “as flores já não crescem mais / até o alecrim murchou / o sapo se mandou / o lambari morreu / porque o ribeirão secou”, eu com certina absoluta achava que o Lambari era uma pessoa que tinha morrido. Puxa, muito triste isso! Eu não chegava a chorar, mas me recusava terminantemente a cantar algo tão trágico. Mal sabia eu que a melodia da idade adulta traria imagens infinitamente mais trágicas do que as que minha mente criativa imaginava de maneira tão inocente. Porque, meus caros, quando a gente perde a inocência, passa a sofrer não mais apenas na imaginação.



Legenda da imagem: quadro de Almeida Júnior, chamado "O violeiro" (1899), fotografado na Pinacoteca do Estado, em São Paulo.

Curiosidade: segundo o Houaiss, "concertina: instrumento da família do acordeão, de forma hexagonal, dotado de dois teclados de botões com que se produzem acordes e melodias; gaita".

11 agosto 2006

Coisa de cinema

“Espera

Um mandarim estava apaixonado por uma cortesã.
‘Serei sua’, disse ela, ‘quando tiver passado cem noites a
me esperar sentado num banquinho, no meu jardim,
embaixo da minha janela.’ Mas, na nonagésima nona noite, o mandarim se levantou, pôs o banquinho embaixo do braço e se foi.”

(Roland Barthes, in Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.)


Cinema Paradiso é o nome da espera. É, estou atrasada, eu sei: o filme é da década de 1980. Espera aí, você já assistiu? Pois assista novamente. E de novo e de novo e quantas vezes forem necessárias até apreender os detalhes mais significativos. Não precisa chorar feito um doido como eu, que chorei de tristeza, de saudade, de felicidade, de pena, de emoção, de poesia. Resquícios literários, meu caro: chorar de poesia (tem gente que chora de rir, chora de dor, chora de medo, chora de nervoso... Eu choro de poesia. Simples como o filme que me faz assim).

Este tocou de um jeito que poucas obras cinematográficas conseguiram. E, apesar de ser de 1980 e poucos, é atual, porque fala de ser humano e do ser humano. Basicamente, conta a história de um menino italiano apaixonado por cinema, a única atração de um pequeno (e lindo) vilarejo europeu.

“Ai, mas que enredo mais sem graça!” Aí é que está! A maestria reside justamente em como tratar o simples e conseguir passar tudo o que de profundo existe nele. O filme não fala apenas do impacto do cinema na vida daquelas pessoas, não retrata o que fazer com os sonhos, não fala só de amizade, de família, de valores. Fala da espera, do cotidiano misturado à arte e das inúmeras formas que as pessoas têm de entendê-la. Mostra as várias traduções que cada pessoa, com sua exclusividade ótica, dá àquilo a que assiste; às formas de ter paciência e de como ela se esvai assim, como o vento que balança a cortina do começo do filme ou a pressa que desmancha as carreiras de tricô feitas com tanta dedicação para matar o tempo.

Muita gente nem vai ver nada de mais nessa película. Há quem vá dormir, achar chato ou monótono. Questão de gosto, sem dúvida, mas, no caso específico desse pequeno cinema no meio do nada, só vai conseguir entrar quem se enxergar ali, em quaisquer dos sonhos, em uma ou em muitas das personagens, na tela pequena, nos filmes em preto-e-branco, no sorriso espontâneo do garoto ou na censura falsa do padre. Só entra quem entender o dono da praça e simpatizar com ele, quem torcer pelos beijos cortados, colocar-se no lugar de quem foi para a guerra ou de quem ficou esperando.

Só vai gostar do filme aquele que já esperou. Por alguém ou alguma coisa. Com ou sem paciência. Sentindo ou não ansiedade. No sol ou na chuva, pensando ou sofrendo. Só vai se envolver quem sente esperança. Porque sucumbir é sempre mais fácil.



P.S.1: a palavra “esperança” vem do neutro plural (sperans, sperantis) do latim sperāre, que significa “esperar”.
P.S.2: sugiro reler este texto depois de assistir ao filme. A leitura será completamente diferente. Espere só para ver.

04 agosto 2006

Atraso de vida


Lá na rua onde fica a empresa pra qual trabalho há uma árvore muito bonita. Todas as vezes que, na hora do almoço, passo a pé por ela, olho para cima. Nas últimas vezes ela estava carregadinha de flores cor-de-rosa. Acho que aquilo é um ipê, mas, como só vejo a beleza, não atento para as especificações técnicas, como nome científico, família etc. Sei que, nessas últimas vezes, eu olhava para a árvore e recorrentemente pensava "preciso fotografar isso exatamente nesse ângulo". Mas eu nunca trago minha câmera para o trabalho, então, minha relação com a árvore ficou assim, platônica, sem se concretizar em imagem alguma.

Hoje, ao passar novamente por ela, vi que só havia umas duas ou três flores. Puxa, que frustrante! Eu perdi mesmo a oportunidade de fotografá-la quando estava carregada! Tudo bem, eu espero isso acontecer de novo. Pelo menos agora ela já está brotando; alguns galhos têm folhas verdinhas e novas, ainda assustadas com esse frio todo que tem feito por aqui, é verdade, mas firmes e fortes recompondo o cenário abalado pelo tempo.

Aí, pensei: "tem outra árvore no meu caminho diário na mesma situação. Só que é amarela". Tudo bem que essa ia me dar uma certa mão-de-obra, porque sempre passo por ela de manhã, indo para o trabalho de carro, e teria de parar o trânsito para poder tirar um retrato. Nessa cidade insensível, nem preciso dizer que seria xingada, vaiada, multada ou até agredida por tentar registrar o belo. Isso, nesta selva, ninguém entenderia. E, se eu insistisse em tentar explicar, acabaria sendo levada para um hospício, que é o lugar onde, segundo a definição mais comum, são colocados os loucos. Literária e curiosamente, entretanto, os loucos ou são poetas ou são santos, os únicos com capacidade de fazer o que ninguém faz quer por ignorância ou por covardia.

Mas hoje, quando passei por essa árvore (e, para variar, atrasada), nem observei se ela estava ainda em condições de ser fotografada ou não. Ironicamente, aquela rua é contramão; só vou poder saber isso amanhã.

Isso me fez pensar em como a gente deixa tudo para depois pretensiosamente crentes de que teremos o depois, em como estamos sempre atrasados em relação aos nossos desejos. Esquecemo-nos de que às vezes as ruas podem ser contramão ou de que o tempo é invariavelmente implacável.