03 novembro 2014

Enterro

“Viver é sempre dizer aos outros que eles são importantes. Que nós os amamos, porque um dia eles se vão 
e ficaremos com a impressão de que não os amamos o suficiente”
Chico Xavier


Quando ela chega a mudez toma conta. Fica tudo atônito, suspenso. Muito embaçado, confuso e triste. É só nessa hora que ela é mais forte que o amor, por ser capaz de reunir de verdade, em carne e osso, principalmente osso, as pessoas. 

Quando ela chega, é a essência que fica. De quem foi e de quem ainda está. Porque a sensação de última vez opera os milagres que o amor passa a vida tentando fazer.

Quando ser deixa de ser, o que permanece se torna mais importante do que tudo o que já foi. Emergem arrependimentos com os quais será preciso conviver, quando poderiam ter sido extintos no viver. Com viver é isso: carregar e pesar, relevar e guardar, esquecer e lembrar, constantemente lembrar, de um momento covarde, uma reação descabida, um silêncio coberto de pensamentos não ditos que poderiam ter feito toda a diferença.

Mulher vendendo lenços em um cemitério de Istambul (2013).
Há gente que passa a existência toda em um eterno velório, apenas admirando a essência alheia, remoendo remorsos, entristecendo-se com a falta de movimento, mas sem se levantar da cadeira. Sem se levantar.

Há também quem mate outros antes de eles morrerem de fato, quer por uma procrastinada chance à paciência, quer por fraqueza preguiçosa e lenta de dedicar-se. É melhor assistir à TV. Ou comer um chocolate para enganar o amargor. Enfrentar dói. O travesseiro é mais macio.

Uma vida inteira para amar, fazer-se presente, interessar-se. Mas o ultimato da despedida é sempre mais forte, porque ela não tem amanhã, daqui a pouco, depois eu vou, deixa pra lá, ligo mais tarde, deixo para a semana que vem. Ela não deixa. Leva embora. E acabou-se.

O fim é um alívio mais duradouro que o durante. Morrer é mais fácil que amar. Mais rápido também. E extremamente mais covarde. Quanta injustiça a morte, mais preguiçosa, conseguir a proeza de juntar, na mesma hora e local, pessoas que se amam e justamente por isso deveriam se juntar mais vezes. Talvez por ser uma constante busca, o amor insira nas pessoas a certeza de que amanhã tudo estará como hoje, de que é possível esperar, de que o tempo é dominado pelo caráter humano, quando é justamente o oposto: ele é a foice.

É na morte que as pessoas são mais hipócritas. E mais desesperadas. É quando enfrentam a si mesmas com a implacabilidade do inevitável. Por outro lado, é também na morte que elas são mais solidárias, às vezes mais por susto que por sentimento genuíno.

As pessoas são mais unidas na morte que na vida. E essa verdade mortifica.

20 julho 2014

Have you ever seen the rain?

Na casa ao lado, uma festa. Música boa desta vez, daquelas que sopram vontade de dançar com o vento. Algumas risadas. Taças tilintando. Fotos. O prazer. Ainda que momentâneo. I wanna know, have you ever seen the rain? Coming down on a sunny day? Em momentos assim, não há dúvidas umedecendo a alma nem mágoas que precisem ser afogadas.

Outro vizinho franze a testa à janela, quando se aproxima dela para averiguar a origem da alegria. Yesterday, and days before, sun is cold and rain is hard, I know, been that way for all my time. Mais do que o barulho, ela incomoda, sobretudo se manifestada por outrem da mesma espécie.

Era uma festa de casamento simples -- a festa, porque casamento nunca é simples. Nem no começo, nem no meio, nem no fim. E sempre tem fim, ainda que tenha sido infinito. When it’s over, so they say, it will rain a sunny day, I know, shining down like water.

O vestido daquela noiva farfalhava, acompanhando seu coração. O noivo cantava alto junto aos amigos and forever, on it goes, through the circle, fast and slow, I know, it can’t stop, I wonder, externando empolgação. Aqueles olhos tinham brilho. Ou podia ser o luar.

A vizinhança penetra, amargando a solidão dos sábados à noite, trovoava descompasso. O eco que a música fazia naquela rua tão oca retinha-lhe o sonho. Trancada em si mesma, só ouvia o incômodo, que desaguava em uma chuva de impropérios: ah, vá, tem graça celebrar uma união! Se eu fosse eles, morava junto antes. Eles se conheceram pela internet, não vai dar certo. Por enquanto é só na alegria, quero ver é na tristeza. Ô precipitação. Someone told me long ago there’s a calm before the storm, I know, it’s been coming for some time.

Tudo porque naquela casa era a felicidade que chovia. O importante, ali, naquela noite, era o amor que dançava.

Psiquê reanimada pelo beijo do Amor, escultura de Antonio Canova/Museu do Louvre.