27 março 2007

O céu de Sueli


A Sueli trabalha no mesmo lugar que eu. Quase nunca abre a boca, mas presta muita atenção na conversa alheia. De boba não tem nada. Nem de surda, só de calada.

Ela entra na sala das pessoas com passos silenciosos, porque a gente só se dá conta da presença dela quando ouve o barulhinho do saco de lixo, onde ela cuidadosamente coloca o papel reciclado que a gente junta. Dá uma olhadinha de lado, eu sempre falo oi e obrigada, mas a voz dela está ali tão presa na insignificância imaginária que eu mal ouço resposta.

Nos corredores o contato é mais amistoso. É só a Sueli começar a limpar o chão, que lá vou eu passar pra lá e pra cá. Cumprimento novamente, peço desculpas toda sem graça por atrapalhar, mas ela sorri. Não tem problema, pode passar. Pra ela, parece que nada nunca tem problema, tudo neutro feito o detergente que ela usa.

Na hora do almoço a Sueli sempre limpa o banheiro feminino. Eu entro lá assobiando, feliz da vida por poder escovar meus dentes na santa paz e... dou de cara com a Sueli lavando a pia. Oi, Sueli, volto depois. Nem é preciso esperar muito, pois a rapidez e a eficiência da Sueli são proporcionais ao silêncio que dela emana.

Tudo isso me faz pensar que a Sueli tem um céu só dela. Mas eu não tenho certeza de que cor ele deve ser. Penso nele sempre cinza, porque a Sueli é toda quieta, presa, contida feito nuvem guardando chuva. Mas ela nunca troveja. Nem ameaça. Ela passa dentro de um uniforme branco e azul, touca na cabeça e todo aquele material de limpeza. De certa forma, a Sueli chove naquela empresa, lavando tudo daquele jeito... neutro.

Um dia, porém, o céu da Sueli desabou em outro lugar. Justamente pela eficiência e rapidez proporcionais ao silêncio, foi convocada para cobrir as férias de uma colega em outra empresa, porque a Sueli trabalha para uma limpadora terceirizada. Para o lugar dela veio a Isabel, tão torta que devia ser com z.

E essa troveja de um jeito estrondoso. Pois não é que a dita fala pelos cotovelos e ri com as mãos? Sempre tagarelando e reclamando da vida. Tem três filhos, que ficam sozinhos à tarde porque, sabe, menina, eles não têm com quem ficar. A mais velha estragou a televisão porque achou que, pelo fato de ela ter esquentado, estava com sede. Derramou água no aparelho. A mais nova puxou à mãe: ri o tempo todo. A Isabel faltou no trabalho quatro dias seguidos. O bilhete-único dela quebrou. Fiquei em casa, sabe?

Ela adora forró. Numa sexta-feira, enquanto todo mundo ia embora dizendo animados tchaus, ela ria mais ainda e dizia, num sorriso desabotoado, que não via a hora de ir para o forró, mas só com o dinheiro da condução que ela não é besta; lá ela havia de achar alguém que pagasse a consumação dela. De boba não tem nada. Nem de surda, só de calejada.

Nesse período, eu senti saudade da Sueli, apesar de a Isabel ser divertida. Mas minha mesa vivia cheia de resquício de borracha, meu lixo demorava pra ser esvaziado, minha sala não era varrida todos os dias, e a Isabel se arrastando na má vontade... tudo isso me incomodava de um jeito todo meu. Cheguei a preferir um céu cinza a toda aquela alegria isabeliana azul cintilante. Será que na outra empresa o céu da Sueli continuava nebuloso?

Um outro dia, porém, indo almoçar na minha caminhada diária, encontro a Sueli na rua indo para o trabalho. Ela voltou, ela voltou! Mas, calma. A Sueli estava mudada, ensolarada, radiante. Sem aquele uniforme branco e azul, sem a touca e todos os produtos de limpeza, com os cabelos longos soltos e vestindo roupa colorida, a Sueli mudou de céu. Ficou atá mais nova, sorriso menos tímido e oi sonoro.

Foi aí que entendi que o céu da Sueli é todo dela, multicolorido e sujeito a variações. Meu olhar é que vivia nublado.


21 março 2007

Água na boca — os melhores beijos que eu não dei

Um dos visitantes até então silenciosos deste blog, o Ian, convidou-me (o certo seria desafiou-me) a escrever sobre o tema. Quem não me conhece o suficiente pode ser levado a crer que as oportunidades de beijos tórridos, carinhosos, intensos, sinceros, impetuosos et cetera e tal inundam a minha vida. Mas as coisas geralmente não são o que parecem.

Foram tantos os beijos que eu não dei, as vontades sufocadas, paralisias covardes ou tímidas, minhas ou dos outros, congelando momentos enquanto oportunidades escorregavam... muitos que poderiam ter sido e não foram, quer por eu ser seletiva, por não ter uma horta em que costuma chover muito ou por ser dispensada ou ignorada antes de acontecerem naturalmente. O fato é que — vejam só o desperdício — coleciono mais beijos que não dei do que beijos que dei. Mas tenho plena consciência de que mereço realizá-los todos, porque viver também é isso.

Ainda não experimentei, por exemplo, um beijo aflito, daqueles que causam uma montanha-russa dentro da gente, com direito a nó na garganta e lágrima contida por uma despedida inevitável, um fora previsível ou algum tipo de incompreensão imóvel.

Não dei beijo aquático ou litorâneo, com o mar inteiro ali, à disposição, olhando barulhento um beijo longo e intenso numa arrebentação de desejos, maré de impetuosidade banhada por ondas intermitentes de calor, lábios se encostando ávidos, num ir-e-vir provocante de corpos totalmente fora de seus centros.

E, até agora, não sei o que é um beijo roubado, desses de repente, inesperados e imprevistos... pelos dois — o que beija e o beijado. Escuso, arriscado, ousado, que começa com um — rápido como teste de reflexo — e se desdobra em vários — empolgados como confirmação, sempre com aquele gosto de “por que demorou tanto pra tomar essa atitude?!”, paladar preso ao pensamento, porque simplesmente não dá tempo de falar...

Nunca fui beijada no tradicional três-dois-um-feliz-ano-novo, em que os casais bem-resolvidos ou bêbados do mundo inteiro celebram empolgação e trocam olhares cúmplices, independentemente da minha predisposição em tornar-me cúmplice... não só não contava com o fato de não encontrar quem me aceitasse assim, como também pela minha incompetência em ficar bêbada.

Desejo experimentar, também, um daqueles beijos de cinema, menos na posição dos amantes e mais no contexto em que acontecem. Não fui beijada depois de uma declaração de amor, porque até hoje ninguém teve coragem de se declarar. Tudo muito avulso, descartável, reciclado, medroso, como se um beijo assim fosse um pedido oficial de casamento trancafiando comportamentos.

Tenho certeza de que nunca fui beijada por alguém que me amasse de verdade, que sentisse minha falta ou mesmo um tiquinho de saudade. E se tem coisa que eu abomino é ser tratada como contabilidade.

Quanta água na boca, volúpia deixando as idéias arrepiadas e ensurdecendo a razão. E como é melancólico lembrar o que poderia ter sido e não foi, tentar contentar-se com a vontade não realizada ou esforçar-se em compreender frustrações.

É por essas e outras que, desta vez, o post vai ficar sem foto. Eu simplesmente não consigo ilustrar ausência.


14 março 2007

Simplesmente arteira


Sempre fui arteira: quando pequena, trocava facilmente mau comportamento por uma caixa de lápis de cor qualquer, pois as cores e texturas sempre me fascinaram. Eu também tinha um monte de hidrográficas coloridas, que dispunha em cima da mesa obedecendo à ordem do arco-íris. Por isso as aulas de Educação Artística, pra mim, eram o céu, onde tudo pode, ilimitado e vasto, papel gigante esperando tinta.

Por outro lado, não sou boa em desenhar à mão livre, embora tenha me aventurado em Edificações no ensino médio, o que me deu ótima noção de desenho, que trouxe de bônus uma caligrafia técnica cujos resquícios deixam charmosa a minha letra de mão. Mas, depois de terminar meu curso de caligrafia artística ano passado — porque não tem nada mais poético do que ser convidado para alguma coisa com uma caligrafia dessas —, minha letra ficou ainda mais múltipla.

É isso o que me encanta ao fazer arte: multiplicar-me em cores, formas, curvas, expressão. Para tanto, apesar do céu inteiro e gigante sempre ali, disposto a ser rabiscado, sempre busco novos horizontes, aprendendo outras técnicas, misturando materiais, mexendo aqui e ali no que de mais artístico há em mim.

Nessa procura plástica, elegi preferências que lembram a infância: giz-de-cera, lápis de cor e papel, muito papel — para escrever e para dobrar, cortar, colar, transformar, de qualquer estampa, tipo, tamanho, espessura. Posso montar um mundo com tirinhas coloridas ou um meigo ursinho panda em origami sorrindo pra tudo.


Então, além de escrever e fotografar (nessa arte eu ainda engatinho...), eu me multiplico em outros talentos artísticos, porque a arte é assim, multifacetada, deixando que passeemos nela de várias maneiras, seja por meio do cinema, da pintura, da música ou, como no meu caso, da literatura, de cartões, ilustrações, álbuns decorados com todo tipo de técnica em papel, quilling, alfabetos diversos em convites de casamento, os próprios convites de casamento com papel trançado, tecido ou seja lá o que for.


Uma de minhas professoras da faculdade costumava dizer que meus textos são plásticos, ou seja, que eu utilizo as palavras de um jeito tal que o leitor é levado a visualizar uma série de imagens, ainda que eu não me tenha valido de sentidos figurados. Esse talvez seja o motivo de eu conseguir transitar tão livremente entre a escrita e a imagem, traduzindo uma com a outra, fundindo as duas em uma arte tão própria, que delineia minha personalidade.

O exercício da arte é isso: saudável para a mente, é o que cultiva nossa criatividade e nos incita a ser mais originais, treinando diariamente não só o olhar para o belo como o poder de concentração, fazendo-nos mais otimistas, detalhistas, precisos e diversos, verdadeiros paradoxos ambulantes, amenizando, assim, o impacto que é viver num planeta de uma cor só, onde imensa parte das pessoas, embora sabiamente coloridas, ainda pensam em preto-e-branco.