28 fevereiro 2007

Trinta dias contados


O último dia do mês geralmente é o último dia de tudo.

Em um mês, a gente muda de casa, de rumo, de estado civil, de emprego, de país ou de plano, inclusive espiritual. A gente passa dessa pra melhor ou se enrosca de um jeito na vida que acaba pior do que o mês anterior.

A gente termina de pagar conta em prestações, abre novo crediário, torna-se mensalista, recebe mesada, juros de poupança, salário defasado e mais contas para pagar. A gente faz balanço, malabarismo, milagre, contabilidade, previsão. Espera o mês seguinte pra ver como vai ser.

Em um mês a gente se vira, vira a página, a mesa, a folha do calendário, o jogo. A gente termina ou começa uma dieta, fecha a boca, tira férias, a barriga da miséria, engole sapo e fica digerindo situações mal explicadas até o mês seguinte. A gente dá um tempo, se aperta, se aflige, se emociona, se encanta e se decepciona. Experimenta todas as épocas do ano para decidir qual a de que mais gostamos.

A gente pega chuva, gripe, pega mal, cura ferida e paga o plano de saúde torcendo para não ter de usá-lo.

A gente termina um projeto, um curso, um relacionamento, uma aposta. A gente pode até nascer de novo, morrer, ser desenganado, preso, solto, corrompido, absolvido, deportado, assaltado ou levado a tomar atitudes extremas. Deste mês não passa.

Em um mês a gente vê, com um pouco de sorte, um feriado, vê quatro luas, uma menstruação, quatro ou cinco semanas, duas ou três baladas, um escândalo, uma polêmica, um punhado de aniversários, trezentas medidas provisórias, uma inflação mais alta, muita violência, nenhuma mudança política num governo que é um zero à esquerda.

A gente leva adiante, leva calote, susto, soco no estômago, leva a mal, vai levando... levanta. Completa uma gravidez, um contrato, a idade, um raciocínio, um ciclo, um sonho, um período de experiência. Ou deixa para completar tudo isso daqui a um mês.

A gente fala quinhentas vezes "no mês que vem", pergunta outras mil em que dia do mês estamos, quantos meses faltam para a Páscoa, o Natal, as férias, o Carnaval. Pergunta, pergunta, se pergunta trinta, trinta e uma ou vinte e oito vezes a mesma coisa.

Mas em um mês a gente também pode achar respostas, graça, fazer uma descoberta, entrar para uma terapia, receber alta, herança, parar de tomar tanto tombo, tanto remédio e tomar mais sorvete, providência, atitude, ar.

Tomara.


22 fevereiro 2007

Dama de folhas

"A ventania misteriosa
passou na árvore cor-de-rosa
e sacudiu-a como um véu
um largo véu na sua mão.
Foram-se os pássaros para o céu
mas as flores ficaram no chão."
Cecília Meireles

A ventania vive passando misteriosamente na vida da gente. Mas existe também o que foi concebido pássaro, que tem em si um bônus celeste para poder escolher a árvore em que vai ficar. Isso para não falar das flores, que caem desiludidas ao chão depois de já terem embelezado alguma árvore. Não têm culpa de terem nascido poesia.

De todos, ultimamente ando árvore: sinto e resisto à ventania apesar de pender; acolho pássaros consciente de que um dia eles se vão; produzo flores sabendo que cairão, embora me esforce numa companhia silenciosa enquanto ainda estão no chão, esperando que um infortúnio as venha varrer dali.

Entretanto, não é fácil estar árvore. As raízes não deixam voar ou cair. É preciso ser impávido e agüentar tudo, porque acontecimentos alados ou pessoas passarinhentas, livres e muito avulsos, sempre se vão para o céu, e, inevitavelmente, as flores-lembrança acabam ficando no chão.

Talvez essa seja a razão de as folhas caírem: jeito desvairadamente elegante que as árvores têm de chorar. Umas, mais desesperadas, despem-se de vez. Outras, de espécie mais comedida, demoram mais para se recuperar da angústia e vão desfolhando aos poucos, até a mais completa nudez. Mais dia, menos dia, recompõem-se com a ajuda do tempo, faça chuva ou faça sol, pouco importa.

Será essa a minha sina? Como árvore que se preze, esperar, impassível, outras ventanias passarem? Não. Creio que, antes disso, é aprender a conviver com as intempéries imprevistas pela minha ingênua meteorologia.

Para tanto, posso contar com uma única certeza: ser forte por natureza.




04 fevereiro 2007

Por quem os sinos dobram


Para Luciana, por quem os sinos dobram


Quando estudei Luís de Camões na faculdade, tive umas das aulas mais inesquecíveis da minha vida. Em parte, porque a professora de Literatura Portuguesa era muito boa; em parte porque ter lições de amor é privilégio de poucos hoje em dia.

Para analisarmos o famoso Soneto de Camões, tivemos uma breve introdução sobre a história do amor. E foi nesse dia que aprendi, ainda que na teoria, o que é o amor verdadeiro, segundo os neoplatônicos, teóricos do amor.

Primeiro, ele tem de ser voluntário, pois quem o sente tem de consentir (isto é, sentir com consciência) em amar, precisa aceitá-lo. Também deve ser desinteressado, sobretudo da reciprocidade, o mais difícil a meu ver, uma vez que passa a ser um sentimento único, pertencente apenas àquele que ama, pois a parte amada está nele contida. Nesse sentido, torna-se uma afirmação de liberdade: é tão puro, intenso, real que dispensa a reciprocidade, por se bastar a si próprio (mas, se for correspondido, melhor ainda!). Por último, deve ser espontâneo, nascer espontaneamente, sem ter sido programado... Aquela velha história de não escolhermos quem amamos.

Essas três características precisam ocorrer simultaneamente. E quando isso acontece é que se ouvem sinos badalando estrondosamente em algum lugar imaginário.

No entanto, muita gente por aí diz ouvir esses tais sinos com uma certa freqüência. Nesses casos, geralmente o badalo vem acompanhado de fogos de artifício, estrelinhas cintilantes e uma explosão nuclear digna de acordar qualquer célula morta. Mas o badalo da paixão é infinitamente diferente do badalo do amor verdadeiro.

Essa euforia, o coração disparado quase saindo pela boca, a perna bamba, as mãos trêmulas, isso é paixão ou tesão, daqueles barulhentos mesmo, e precisa ser recíproco, sob pena de murcharem todas as estrelas, calarem-se os sinos e sumirem os fogos de artifício assim, de repente. O amor verdadeiro, por sua vez, é quieto, resignado, pleno. E só toca no imaginário, fazendo um estrondo muito particular, num fogo que arde sem se ver, causando ferida que dói e não se sente, um contentamento descontente, uma dor que desatina sem doer.

Quem ama de verdade anda solitário entre a gente, numa solidão acompanhada, porque se sente só mesmo estando rodeado de gente — a companhia desejada é só a da pessoa amada; quem ama de verdade cuida de ganhar em se perder, porque, ao identificar-se com o ser amado, se perde e pode abdicar de suas próprias características e razões em favor do outro, pode ceder sem ressentimentos; quem ama de verdade quer estar preso por vontade: sabe não haver saída e mesmo assim quer entrar.


Por isso amar de verdade é complexo. Por isso dá medo. Por isso gera insegurança. Mas quem ama de verdade é leal ao amor que mata, não um matar físico, parada cardíaca, falência múltipla dos órgãos. É leal à exacerbação do amor, à grandeza do sentimento.

É por pessoas assim, que amam de verdade desinteressadamente, que os sinos dobram. E só elas são capazes de experimentar a plenitude e toda a contradição que Luís de Camões tão sabiamente traduziu em versos (como o favor do amor pode causar amizade nos corações humanos, unindo-os, se é tão contrário a si mesmo?). Só elas escutam os sinos verdadeiros, aqueles que a humanidade inteira sempre quis ter certeza de existirem e que muitos já desistiram de ouvir, impregnando-se na mudez.

O amor é sempre uma guerra, conflito de sentimentos. Mas, se tivermos a sorte de sermos alguém por quem os sinos dobram, é porque vencemos, sentimos o amor verdadeiro, embora consentindo em servi-lo enquanto dure infinitamente, posto que é chama mortal. Mas isso já é outro poema...













Túmulo de Luís de Camões,
no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa.
Foto tirada em agosto de 2005.