17 julho 2008

Até que a morte nos separe

Detalhe do chão da Praça da Língua, no Museu da Língua Portuguesa, SP


Todos os dias eles saem para andar. É bonito ver o amor que ele tem por ela, pegando-a pela mão e acompanhando-a na caminhada. É triste ver a falta de amor que ela tem por si mesma, deixando-se levar sem vontade, colocando um pé à frente do outro em passos de obrigação.

Não é só o tênis dela que não combina com a disposição dele; o ritmo de um destoa do do outro: ele quer ir, ela daria tudo para ficar; ele vê esperança, ela quer voltar para a cama; ele levanta os braços buscando exercício, ela boceja enfado; ele bendiz o novo dia; ela amaldiçoa o médico que deu aquela ordem besta, porque ele não precisa e quer, ela não quer e precisa.

Não dá para saber qual a doença que ela tem, o que ela pensa, por que a falta de ânimo. Não dá para saber o quanto ele quer que ela se cure, o que ele sente, a origem da persistência em levá-la adiante. Dá para ver de onde vem a paciência dele e a condescendência dela, e imaginar que ele a carregaria no colo se isso não a prejudicasse e que ela morreria por ele, se isso não o entristecesse.

Tem dias em que o sol atrapalha; ela não usa óculos escuros. Tem dias em que o frio incomoda, ele tem de emprestar-lhe a jaqueta. Tem dias em que o vento despenteia, quando ele carinhosamente ajeita uma mecha atrás da orelha dela. E tem dias em que chove, e ele a guarda sob o guarda-chuva que carrega.

Ora andam de um lado da rua, ora andam do outro. Vezes há em que não voltam, mudam o trajeto. Outras, não chegam à metade; a teimosia dela os faz voltar para o começo. Ele sempre bem-disposto; ela já debilitada.

Raramente conversam, pois a ela parece penoso andar e falar; ele prefere não ser inconveniente proferindo otimismos que ela não enxerga. É a claridade da manhã... ou a falta dos tais óculos escuros.

Ela anda lentamente olhando para baixo, acompanhando a palidez da pele. Ele olha para frente, sorrindo moreno e puxando-a delicadamente.

As mãos continuam dadas. E é isso o que importa para eles.

6 comentários:

Ricardo disse...

Ora viva que deste o ar da graça!

O ser humano é mesmo algo complexo, principalmente quando se nos defrontam opostos como esses que descreves.

Anônimo disse...

Lindo texto, bela percepção, e nossa "fome" por novos textos saciada momentaneamente.
Gosto dos seus textos: forma, conteúdo, mensagem transmitida... são como colírio para os meus olhos que vêem tantos erros de português e incoerências, especialmente na internet.
Parabéns para nós, por podermos colher essas idéias na sua janela!

Anônimo disse...

Teu blog é bom demais. Adorei.
taniaperuch@gmail.com

Bruno Peres disse...

Amor é realmente uma coisa inexplicável.

Lindo o texto!

Vinícius Rennó disse...

Do meio da narrativa em diante, imaginei que seriam as duas personagens mãe e filho: uma senhora encurvada, de passos vagarosos, e um rapaz alto com a barba por fazer. Então chorei. Creio que foi pelo medo de, um dia, não poder mais segurar a mão de minha mãe.

Sweet! disse...

:-)