30 junho 2007

Volúpia


À vista ou a prazo, comercial ou doméstico, balas coloridas ou somente as vermelhas, impresso ou digital, mp3 ou wma, com ou sem juros, pré ou pós-pago, novo ou reciclado, colorido ou preto-e-branco, no sol ou à sombra, cara ou coroa, original ou pirata, arrumado ou fora do lugar, nacional ou importado, ele ou ela, aquele ou aquela, vai logo ou espera aí, convite ou decepção, com ou sem gelo, garfo ou colher, prato raso ou prato fundo, massa fina ou massa grossa, com ou sem colarinho, limão ou laranjada, integral ou desnatado, casca branca ou queimadinha, chá gelado ou bem quentinho, açúcar ou adoçante, eu ou nós, dança ou reflexão, tempestade ou céu aberto, escarcéu ou mudez, drama ou comédia, maquiagem ou transparência, curto ou comprido, convívio ou saudade, cremoso ou cintilante, neutro ou com perfume, amanhã ou depois, cotidiano ou absurdo, uniforme ou desigual, par ou ímpar, alma ou matéria, verdade ou ficção, particular ou coleção, cano curto ou cano longo, movimento ou introspecção, ar ou chão, realidade ou imaginação, ponte ou abismo, já ou mais tarde, razão ou coração, hesitação ou entrega, no meu apartamento ou no seu, branco ou tinto, com ou sem couvert, tradição ou novidade, lábios ou silêncio, renda ou algodão, no escuro ou no claro, com gosto de morango ou sem sabor, convencional ou inusitado, aqui ou mais pra lá, língua ou quadril, dentro ou fora, rápido ou impulsivo, espasmo ou gemido, falta de ar ou palpitação, reto ou atalho, tudo ou nada, agora ou nunca, dois.


24 junho 2007

Ignorância

Praia da areia preta - Guarapari - ES


Eu achava que existia. Até ontem. Não, não, eu não morri; apenas nunca existi. Dei-me conta da minha transparência e senti toda a importância que eu achava que tinha escorrer violentamente pelo ralo do descaso.

QUEM VOCÊ PENSA QUE É?

Não sou ninguém. Ignorada quer pela falta de reciprocidade, quer pelo desinteresse de notícias e telefonemas não recebidos, quer pela ausência total de criatividade forjada em plágios descarados. Aniquilaram minha originalidade retirando-me a vontade de escrever e de criar, apagaram as lembranças que tinham de mim dissolvendo-me a naturalidade de confiar.

Ser neutralizada pela descrença é como acordar cinza e vazia por terem-me arrancado a presença. Virei fantasma de valores insossos, inexistência de sentimentos.

QUEM SE IMPORTA COM O QUE VOCÊ SENTE?

Se eu não existo, não há por que se importarem. Se não me enxergam, não há por que me fazer notar. Se querem que eu apenas passe, por que insisto em ficar?

Infelizmente, a individualidade e o egoísmo alheios têm sobrepujado meus esforços de não ser generalização.

No entanto, apesar de saber que eu não existo, não me roubaram a identidade. Imitaram-na, ignoraram-na, calaram-na. Mas ela ainda é minha. E é ela que me faz perguntar:

QUANTAS VEZES É PRECISO RENASCER?




14 junho 2007

A vela, o pão e a procissão

Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa


Todos os anos eu vou à missa de Santo Antonio numa tímida igrejinha aqui perto de casa. Depois da missa sempre tem uma procissão. É, na metrópole mais desenvolvida do país, ainda existem bairros de vizinhança amigável, de crianças brincando na rua com traves improvisadas com pares de chinelos, de igrejinhas pequenas com procissão seguindo o santo.

Eu vou à missa porque simpatizo com Santo Antonio, que prefiro chamar de Santo Antonio de Lisboa — minha parte portuguesa falando mais alto. Mas não é só por isso que sigo a procissão com uma vela simples acesa iluminando o caminho. Não sou movida pela esperança de que o santo me ajude a casar, embora esse seja o motivo principal de a maioria das mulheres lá irem. Eu simplesmente gosto desse santo, porque ele me ajuda a achar as coisas perdidas, me ouve com uma paciência de Jó apesar de ser Antonio, tem aquele olhar complacente difícil de encontrar hoje em dia. Além disso, eu sou afeita a tradições e confesso adorar o caráter cultural que as procissões têm. Elas mostram mesmo a alma das pessoas.

Quando estive em Portugal, por exemplo, terra desse santo Antonio, pude visitar Fátima, onde há a Procissão das Velas. À noite, com tudo escuro, aquele mar de gente reza junto o terço, cada dez ave-marias em uma língua diferente, que é para agregar todos os povos que por lá passam. E todo mundo anda com uma vela na mão. A mistura cultural e a união de pessoas provenientes de cantos tão longínquos uns dos outros é tão emocionante quanto o visual de tudo aquilo: luzinhas cintilantes mostrando corações tão acesos.

Pois eu lá, comovida com tudo, obviamente quis participar da procissão. Mas eu não tinha vela. Estava com cinco euros no bolso, o que dá para comprar um monte delas. Minha ingenuidade brasileira fez-me crer ser possível adquirir a vela, receber o troco e ainda dar um sorriso amigável a alguma portuguesa simpática que as estivesse vendendo. Mas lá em Fátima as velas ficam em caixas de acrílico abertas, ao lado das quais há um vão, como a abertura de um cofrinho, onde são colocadas as moedas para pagá-las. O valor de uma era algo como trinta centavos de euro, o que significava que a nota que eu tinha no bolso era muito. No lugar onde as velas ficavam à venda não havia qualquer tipo de fiscalização, câmera, pessoas vigiando ou conferindo se o valor depositado correspondia mesmo à quantidade de velas tiradas das caixas. Santa honestidade!

Fiquei maravilhada com aquilo: só faltou cair de joelhos para agradecer o contato com a civilização. Entretanto, fiquei mesmo sem vela diante da impossibilidade de obter troco. Não que a lindíssima procissão não valesse uma vela superfaturada, mas é que a conversão para reais travou minha fé.

Pude me redimir de ter ido a uma procissão de velas sem uma vela em outra procissão, desta vez na cidade natal do meu pai, onde fiquei uma semana. O patrono da cidade, São Sebastião, estava sendo festejado justamente quando de minha passagem pela aldeia. A festa é linda. A procissão é de verdade. Nunca andei tanto na minha "imaculada" vida. Lá, as pessoas se comprometem com o propósito da procissão, levam a sério de um jeito que emociona estrangeiros, dedicam-se a tornar tudo bonito, organizado e inesquecível.

No entanto, todo santo ano eu me decepciono quando, aqui em São Paulo, vou à missa de Santo Antonio. Não com o santo nem com a procissão em si, mas com as pessoas. A maioria é de um egoísmo de irritar qualquer cristão, até os não praticantes. Talvez por isso precisem freqüentar a missa, ir à igreja, pedir perdão ou o que for. Mas já era para terem aprendido, não?

A impressão que me dá é que as pessoas só seguem a procissão porque é apenas depois dela que são distribuídos os famosos pães bentos de Santo Antonio, comumente tidos como fonte inesgotável de abundância até o próximo 13 de junho. A tradição diz que se deve deixar um pedaço daquele pão onde se guardam os mantimentos, para que nunca falte comida. Reza a história — e o padre — que o pão de Santo Antonio simboliza o pão que Jesus dividiu com os apóstolos na Última Ceia, isto é, representa a partilha.

Dividir é tudo o que aquelas pessoas não fazem. Terminada uma procissão onde só meia dúzia acompanha a reza enquanto o restante da centena fala da novela, reclama do trajeto, presta atenção no carro da CET interditando as ruas, reclama da fome, olha para as placas de vende-se dependuradas em qualquer portão, brinca de colocar fogo no copo de plástico que protege a vela, faz-se um tumulto ao redor do que era para ser um andor — os tempos modernos demandam que o santo ande de carro, coitado.

Pois aquela bendita gente depena o pobre do santo. Não sobra uma flor para contar a história. Arrancam tudo como se aquilo fosse prover milagres, suprir necessidades, arranjar casamentos hollywoodianos com homens estonteantemente belos, bons, honestos e românticos. É, faz mesmo bem acreditar em milagres.

E a partilha, a comunhão, o olhar o próximo e dividir com ele, tudo isso fica na promessa. As pessoas se engalfinham com saquinhos plásticos nas mãos pegando quantos pães o desespero e a falta de educação permitirem. Não olham para trás, não levam em consideração a existência de outras pessoas, não têm sequer vergonha daquela insanidade toda. Os mais pacientes, que ficaram esperando sua vez com uma civilidade d'além-mar e atitude cristã, acabam sem pão. Justo eles, que saberiam, como ninguém, multiplicá-lo em tantos pedaços quantos fossem necessários para satisfazer a todos.

Não sei se é ignorância ou egoísmo demais abraçando a alma desses pobres de espírito. Sei que é preciso ser santo para continuar perseverante na crença de que elas um dia serão de fato catequizadas, introjetando, independentemente da religião que escolherem, a máxima que salvaria o mundo de todo tipo de infortúnio: "ama o próximo como a ti mesmo".


04 junho 2007

Passagem

A mulher baixinha que passava foi atropelada por um carro que também passava. E foi assim que tudo se passou:

O motoqueiro que voava pelo local só teve tempo de levantar a viseira, porque a velocidade limitava seu campo visual.

O homem gripado assoou o nariz, preocupado com a ocorrência: era sua aflição que escorria.

Os passageiros do ônibus parado amontoaram seus olhares interrogativos na mesma janela.

O menino que empinava despreocupação numa pipa deixou-a misturar-se ao céu e arregalou o azul que tinha dentro dele, querendo entender descontrole.

O guarda apitava numa tentativa surda de conter a curiosidade e abrir passagem para o socorro, tão aflito quanto o homem gripado.

A senhora da casa em frente fechou a janela com uma incompreensão abrupta, girando seu trinco todo estrangeiro.

O homem que saía da padaria trazendo pãozinho quente perdeu toda a fome ao abrir a boca, horrorizado.

A moça que passeava com dois cachorros ficou louca de raiva, tamanha sua indignação com o acontecimento.

O ciclista colorido perdeu a cor de tanto susto.

Os moradores do edifício vizinho à janela estrangeira salpicaram nas sacadas derramando uma cascata de perguntas.

O trânsito parou para olhar. O resgate parou para socorrer. A mulher baixinha parou de respirar.

O carro havia passado em cima dela. Ela passou desta para melhor.