27 outubro 2006

O tempo a meus pés

Foi uma segunda-feira dos ventos. Uma ventania desvairada de descabelar qualquer mentira cabeluda, despenteando até os mais carecas.

Com férias assim, ventando contentes, o que fazer com tanto tempo livre, arrepiado de frio? Dizem que, quando venta muito, é porque morreu um padre. Pois devem ter assassinado o clero inteiro naquela segunda-feira dos ventos.

Apelei então para a mais solidária das companhias, dessas que trazem eras dentro delas, com 45.578 histórias diferentes se entrelaçando em tranças intertextuais. E li, em voz alta, 327 páginas deliciosas, entonando emoções para minha irmã mais velha, de férias comigo na praia da ventania.

A Kelly é preguiçosa para ler. Por coincidência do destino, foi ter uma irmã movida a leitura. Passamos a segunda-feira dos ventos lendo Luna Clara&Apolo Onze, eu engolindo as palavras em sílabas docinhas, ela vidrada, querendo sempre que a história continuasse e que o vento parasse.

Por outra coincidência do destino, o livro começa justamente falando do vento, de tarde, de gelatina, esquilos, gerânios, pensamentos, vaga-lumes, chuva, novidade, inusitado, tempo, procura, desencontros, aventura, tudo vindo de lá de onde o vento vinha, lugar em que o tempo tira férias.

Conhecemos personagens incríveis que dialogavam mundos numa linguagem que, se não era onda, tinha aprendido a embalar sonhos com o mar: justo ele, ali, tão pertinho.

Fazia tempo que eu não devorava um livro inteiro assim, sem entrada nem antepasto, feito pudim de leite que escorrega pela garganta caramelada. Tive vontade de ter um cavalo só para chamá-lo de Equinócio, ou dois cachorros bem grandes com o nome do par que dá título ao livro. (Outra coincidência do destino: já tive um dog alemão lindo de morrer chamado Apolo, e meu irmão tem uma cadelinha labrador com o nome de Luna.)

Queria visitar Desatino do Sul e Desatino do Norte, me demorando em conversas com Seu Erudito ou invadindo a festa sem-fim que Dona Madrugada e Seu Apolo Dez, junto com as sete maravilhas do mundo, promovem há exatos treze anos, dezoito meses e quinze dias.

Percebi que tenho desejos de desejo e que, como Doravante, não desistiria de meus ideais ainda que com uma nuvem carregada de chuva bem em cima da minha cabeça, chovendo azar.

Até aquele momento, não sabia o que toda essa ventania da segunda-feira estava querendo trazer para mim: vontade de usar chapéu xadrez, de ler revista velha; tomar café-da-manhã demorado ouvindo o barulho do mar; andar feito cata-vento, só parando para ver o pôr-do-sol; encher o boné de conchas de todos os tamanhos e cores; colecionar caramujos; escalar pedras; comer bolo de chocolate com sorvete; visitar amigos distribuindo abraços; ver um monte de beija-flores dançando ao redor de orquídeas; olhar sonolentamente para o céu estrelado, só visível fora da poluição urbana, e pensar em todo mundo para quem a gente quer que as coisas dêem certo; tomar café recém-passado, em coador de pano, pela madrinha, acompanhado de biscoitos de goiabada; e me entregar preguiçosa ao Vale da Perdição, onde as palavras me seqüestram, encarcerando-me junto com um papagaio intelectual chamado Pilhério... Coisas simples que podemos fazer no dia-a-dia, mas que só dá para fazer tudo junto nas férias.

Que vente muito assim na minha vida, sempre e em todo lugar, para me fazer ler mais 2.876.457.382 livros em voz alta, para propagar aos quatro ventos tudo o que Luna Clara e Apolo Onze me ensinaram num pedacinho tímido do litoral paulista de um 23 de outubro ventoso, vendavando literatura e espalhando férias, num sopro contínuo de descanso inesquecível, que todos nós merecemos...


19 outubro 2006

Fado diverso

Basta.
Tirarei férias de mim
[mesma
para procurar ausência
e neutralizar atitudes
que nunca tive.

Há vontades que não
[esqueço
por se fazerem lembrar
[a todo momento.

Há desejos insones,
teimosos em manter-me
[acordada,
mais prováveis no mundo
[dos sonhos.

Não sossego.
Ando numa onda de inquietação irritante
em que todas as vontades formigam.

Cansei de esperar
o que não conheço ou quem nunca vi.
Não tenho mais fôlego
para acenar para o que não me enxerga
ou procurar o que nunca me encontrou.

Sufoquei de tédio,
paralisei princípios,
que agora se dispersam devagar
rastejando estorvo.

Não sei se contenho essa dispersão
— num gesto óbvio de quem valoriza resquícios —
ou se deixo tudo escorrer para esvair-me junto
num desaparecer consentido.

Por mais que me esforce,
eu persisto, resisto, não passo.
Tardo e permaneço
ao arrastar sobrevivência.

Murcho gradativamente
ainda que incapaz de esvaziar-me e diluir-me
em esperanças aguadas de horas inexistentes.

Sou sem existir,
porque inócua me transformo
em descrenças que não quero ser.

(Querer é verbo anômalo,
que para certas coisas
é preciso abolir do vocabulário)

Se sou desejos e vontades espalhafatosos;
se anseio, teimo e insisto,
querer é o que move meus instintos
dilacerados e roucos berrando para o nada.

Mais fácil ser nada,
sentir nada,
querer nada,
mesmo tendo quase tudo.

Desisto.
Abro mão desse tudo.
É o quase que me faz falta.



14 outubro 2006

Obrigado e vote sempre!

A seção eleitoral n.º 109 onde trabalho como mesária funciona num colégio de ensino fundamental na rua onde moro. Fica em uma classe da 3.ª série, cujas paredes estão repletas de flores de papel meio tortas, feitas pelas crianças em comemoração à chegada da primavera.

Nas mesmas paredes, colaborando para a poluição visual, ainda há um mapa do Brasil, um do Estado de São Paulo e um relógio brega com um fundo protagonizado por uma famosa dupla sertaneja.

Apesar de ser uma classe de terceira série, sobre a lousa ainda está o alfabeto, em letras de mão e de forma, como se as crianças daquela sala ainda estivessem aprendendo a ler. Talvez estejam.

Pois a seção 109 não poderia funcionar num lugar mais apropriado. A maioria dos eleitores que lá votam ainda estão aprendendo a ler e não conhecem o Brasil estampado no mapa. “Meu marido mandou eu votar nesses números aqui, ó”, diz uma senhora, estendendo o papel para mim. Faltavam os deputados. Quando foi informada disso, virou-se para nós, mesários, e, numa irritante ingenuidade, soltou: “Ah, escreve uns números pra mim que eu voto. Todo ano eu voto errado, me atrapalho”.

Havíamos deixado escrito na lousa, em letras garrafais, a ordem em que deveriam ser digitados os votos na urna eletrônica. Pela quantidade de números para cada cargo, era possível sabermos em qual voto o eleitor estava. Mas perdemos a conta de quantos eleitores digitaram um monte de números seguidamente (talvez achassem por bem colocar o RG ou o CPF na máquina!) na crença de que deveriam apertar a tecla “confirma” uma única vez. Inúmeras foram as vezes em que repetimos as mesmas instruções... infinitamente quase em vão.

Os eleitores da 109 não lêem: o famoso analfabetismo funcional. “Senhor, descreva a tela em que está para a gente, por favor. Qual o cargo que o senhor está elegendo agora? Está escrito bem grande na tela.” “Ah, é deputado estadual.” “Então, senhor, são 5 números ou, se o senhor quiser votar na legenda, são 2, o número do partido.” Ele digita um monte. Quando termina e aperta o verde, ouvimos o som da conclusão da votação. Aquele eleitor, como muitos outros, estava votando para presidente e não sabia. Votou errado. Saiu dizendo “tudo bem, isso nem é problema meu”.

Chega uma esbaforida à porta da seção: “Quero votar no Maluf, me ajuda?”. “A senhora tem certeza?”, perguntei. “Tenho, sim, mas não sei o número dele. Qual o número dele, me fala...” “Não posso. A senhora precisa ir até o pátio para procurar na lista.” Ela foi. Voltou com o número anotado num papel, amassado junto a outros numa mão trêmula. Tinha cara de quem não tinha a menor idéia do que estava fazendo ali. “São 5 votos, senhora, e a senhora começa votando nos deputados, tá?” Fez cara de interrogação e exclamação juntas, ao mesmo tempo que jogou todos aqueles papéis em cima da minha mesa. Pacientemente, coloquei todos ao papéis na ordem em que ela deveria votar, expliquei tudo de novo na esperança de que ela não desperdiçasse os votos. Aparentemente, votou certo. Na saída da seção, rasgou todos os papéis e jogou no lixo, aliviada: “ai, ainda bem que isso acabou, credo, nem quero mais saber!”.

Chega outra, empolgada: “Eu só vim pra votar no Eli Correa! Ele é maravilhoso! Mas não aparece a foto dele aqui, por quê?”. Ela estava votando no Eli Correia para o cargo ao qual ele não era candidato.

Um rapaz bocejante aparece para votar. “Cadê os números das pessoas?”, pergunta. “Que números?”, respondo. “O dos candidatos. Eu não escolhi ninguém ainda...”

80% dos eleitores da 109 se confundiram quando viram a tela de Senador. “Tem isso, é?!” “Nossa, em quem eu voto aqui?”, “Moça, moça, aqui tá escrito se-na-dor. O que é isso?” “Senador?! Mas eu nem escolhi um número pra isso!”. Realmente, Jó deveria ter sido promovido a santo.

Um outro, mais impaciente, esmurrava o botão verde como se amassasse batatas. “Isso aqui tá quebrado! Não funciona!”. Eu, impassível: “Estava funcionando até o senhor chegar. Por favor, não quebre o patrimônio público e preste atenção no que está fazendo”. Minha paciência já tinha ido para o ralo àquela altura. Ele queria votar na legenda para senador em um partido que não tinha candidato a senador. Ia morrer ali, apertando o verde sem sucesso. E não conseguimos convencê-lo de que ele estava errado. Quando já estava cansado de tentar sair daquela tela, esbravejou: “qual o número daquele senador lá?”. “Qual, senhor?”, respondemos. “Aquele lá que rouba, vou votar no que rouba mesmo!” Admirados, perguntamos: “Seja mais específico, senhor. Qual deles?”. “O famoso, que rouba. Voto e acabou, se ele rouba, isso não é problema meu!”

Fui almoçar já esgotada mentalmente por ver tanto descaso. Cheguei em casa, não havia almoço e eu não tinha tempo de fazer. Peguei o carro e fui ao shopping perto de casa. Lotado. Filas e filas para almoçar. Servi-me correndo; a moça do restaurante, vendo minha identificação de mesária na blusa, me passou na frente do restante da fila. Não encontrei lugar para sentar. Um casal estava saindo da mesa que ocupava. Eu, já com a bandeja na mão, esperava que eles saíssem. Quando eu estava prestes a me sentar, um japonês que agregava tudo o que de mais abominável um cidadão pode ter, começou a gritar que aquela mesa era dele, que ele estava esperando há mais tempo, que estava com criança, será que eu não via isso?! A criança corria pela praça de alimentação. Sinceramente, eu nem sabia qual era o filho dele. Argumentei que já havia me servido, que minha comida estava esfriando, que ele nem havia decidido o que comer ainda e que estava querendo guardar mesa, que não estava ali quando eu cheguei e que, ainda por cima, eu estava em horário de almoço porque estava trabalhando de graça na eleição e precisava voltar para a 109. “Isso não é problema meu”, ele disse.

Deixei ele com a mesa. Os fracos precisam sentar. Eu podia comer de pé. Meu desejo era fazer igual às novelas, despejando meu copo de suco na cara daquele infeliz. Mas sou muito civilizada para isso. Uma amiga minha que eu não via havia anos chamou-me para sentar com ela. Foi minha salvação, porque a raiva já estava me fazendo perder o apetite.

Ao voltar para a 109, continuei constatando descasos. Mas, como em tudo, há exceções. Dona Conceição Hernandez, de 81 anos, vem votar lúcida, arrumada, unhas feitas e cabelo caprichosamente tingido. Deixou cair o comprovante de votação na saída, que está comigo, para que eu entregue a ela no 2.º turno. Eu sei que ela volta.

O Sr. Celso, que nas duas últimas eleições incluindo o referendo não veio votar porque, segundo o filho homônimo que também vota lá, estava desiludido com a política, apareceu à tarde, andando devagar. Demorou a conseguir votar usando todos aqueles números. Quando comentei: “Puxa, senhor Celso, desta vez o senhor apareceu, que bom!”, ele limitou-se a responder: “Vamos desempoleirar essa gente”. E foi embora.

A seção 109, com as paredes azuis salpicadas de flores de papel, recebeu três bêbados patéticos recendendo cachaça. Na eleição a prefeito, quando impedi que um deles votasse por causa da Lei Seca, voltaram escoltados por policiais, que me repreenderam dizendo “ser direito deles votar”. Dessa vez, só faltou colocar tapete vermelho para que eles achassem a urna. Cambaleantes, saíram de trás da urna várias vezes sem ter concluído a votação. “Psiuuuuuuu! Psiuuuuuuuuuuu! Vem aqui, ó”. Não fui. O cara ia votar errado de qualquer forma, não havia nada que eu pudesse fazer.

É triste presenciar um país assim: quem tem instrução não tem educação. Embora mais humano, quem não teve educação não tem instrução para se fazer cidadão e exercer sua democracia. E eu estava em apenas um pedacinho daquele mapa colocado na parede junto à dupla sertaneja sorridente no relógio.

A seção 109 não podia funcionar em lugar mais propício: seus eleitores, como os de muitas e muitas outras seções espalhadas pelo País, parecem viver num mundo de faz-de-conta cheio de flores tortas de papel, encantado e irreal, onde nada é problema deles.

É por isso que cada país tem o governo que merece.


09 outubro 2006

Última chamada

Você deixa interrogações caírem dos bolsos
quando segue para a estação ziguezagueando sumiço.

Eu vou atrás para recolher a sombra
enquanto junto as dúvidas
remendando
conformação.

Você pára.
Eu continuo.

Você pega o trem.
Eu parto.

Em dois