16 janeiro 2011

Prato do dia

Um belo dia você se senta para fazer uma refeição e, quando a termina, percebe que sua vida mudou. Você experimentou algum alimento inédito ao seu paladar, ou recebeu uma ligação reveladora no celular, não tendo resistido à tentação de atendê-la mastigando. Ou, ainda, ao saborear um gosto preferido, teve um estalo acompanhado de uma ideia milionária. Pode ter se lembrado de um desejo de anteontem de mandar flores para uma senhora doente (o que amanhã será retribuído com uma receita divina de bolinhos de chuva) ou decidido mudar de profissão.

A vida pode mudar durante uma refeição aparentemente insignificante, feita num dia normal, com o tempo parcialmente nublado sujeito a pancadas de chuva, mas com um solzinho no final da tarde. Pode mudar logo após você ter escolhido uma salada ou preferido evitar a sobremesa -- ou a indigestão.

Apesar de saber disso, lá no fundinho da consciência a gente pensa que a vida só muda por causa da loteria, de formatura, de um acidente gravíssimo, de uma gravidez descuidada, um tapa na cara, desemprego, morte. Só configura mudança o que é grande, para caber em caminhão ou não caber mais na gente.

Mas o minúsculo muda tanto quanto o gigante. Aqui, ali, hoje, daqui a pouco, de novo, amanhã. A soma do microscópico pode ser uma mudança e tanto. Uma palavrinha mal colocada muda um diálogo. Um instantinho atrasado esfria o prato. Um beijinho inócuo, o namoro. Um buraquinho na blusa muda os planos. Um descontinho, a conta bancária. Um tiquinho de miopia requer novos óculos. Uma moto caída na avenida, novos caminhos. Um megapixel altera toda uma resolução. Uma notinha fora do lugar desafina uma canção. Um centimetrozinho altera o número da calça. Um pouquinho mais de sal estraga a refeição.

É no pequeno que o grande muda: a recorrência de pequenas gentilezas pode reconfigurar toda uma cultura, e a repetição de pequenos deslizes pode destruir toda uma relação.

É no mínimo que tudo muda todos os dias. A gente é que não percebe, porque mastigamos demais, remoendo a falta de gosto, ou engolimos de qualquer jeito, sem saborear a pressa.

Até que, um belo dia, ao sentar-se para fazer uma refeição, a gente tem algum tipo de estalo: sai da catatonia por causa de um amargo na boca ou fica vermelho devido a um sabor apimentado demais, e, finalmente, se permite mudar o cardápio.

O lombo de bacalhau a Santo Ofício, da cervejaria Trindade de Lisboa, mudou meu paladar e virou uma das minhas melhores memórias gastronômicas. Só a descrição do cardápio já dá água na boca: "lombo de bacalhau assado na brasa deitado sobre uma grossa fatia de pão cozido feito pelos nossos irmãos alentejanos, acompanha-o uma comitiva de batatinha miúda cozida com casca e grelos de nossa horta salteados com azeite virgem e alho".