27 dezembro 2006

O caso das prateleiras


Esperança está pensando no que deve encostar e o que deve deixar à mão. Quer deixar de lado o excesso de peso, de preguiça, de seriedade, de procrastinação ou de vontade, dando lugar à ânsia de satisfazer ideais de ano-novo. Faz lista, promessa, anotação, simpatia, reza, mantra e meditação. Faz faxina na índole, varre da mente as idéias negativas, tira o pó dos velhos desejos e respira fundo, como se o primeiro de ano fosse algum tipo miraculoso de tira-manchas.

Se não bastasse a pressão que essa época pré-ano-novo geralmente causa nas pessoas, tal elucubração de Esperança fora motivada pela Dúvida, a irmã caçula e fiel, quase sempre estraga-prazeres: “O que você vai colocar nas prateleiras que ganhou, Esperança?”. Três prateleiras vazias no quarto, ultimamente tão bagunçado de aindas espalhados por todos os cantos, caixas amassadas amontoando quaisquer-dias, muitos pedaços de daqui-a-poucos pendurados em cabides desordenados.

Diante da Dúvida, Esperança resolveu colocar a ordem antes do progresso daquela bagunça toda. Mas olhava para as prateleiras e, com o indicador esticado sobre os lábios, pensava sem parar: “o que é que vou colocar aqui?”. Eram tantas as coisas das quais queria se desfazer. E outras tantas deveriam ficar organizadas, para que pudesse alcançá-las sempre, sabendo exatamente onde era o lugar delas. Puxa vida, eram apenas três prateleiras para aquela vastidão de vai-chegar, espera-aís, futuros e serás que Esperança decidiu ser democrática. Para não magoar seus pertences — porque há muito de sentimentos nas coisas que guardamos —, ela achou por bem usar as prateleiras para coisas novas, porque o ano seria novo, e tudo, então, deveria sê-lo também.

Sentou-se em sua cama fofa coberta por uma colcha de retalhos, que isso combinava com ela, e ficou matutando que novas deveria adquirir para colocar ali. Boas-novas, só podia ser. E o resto seria organizado ali mesmo, no chão, nas caixas, nos armários e cabides espalhados onde a Esperança dormia. O que não servisse ela poderia até passar para a Dúvida, que se encarregaria de dar um fim, se assim conseguisse.

Começou colocando amores. Achou melhor mais de um, porque há muitos tipos e são todos tão coloridos que ficariam bonitos ali, na prateleira mais alta. Para tanto, resolveu jogar fora os muitos ele-não-dá-continuidade-ao-relacionamento-mas-é-legal, sins-ele-vai-me-ligar e afins. Esse tipo de artigo não combinava mais com ela. Era uma Esperança renovada e queria amor de verdade, desses de tirar o fôlego, disparar o coração e trazer todos os oceanos do mundo aos olhos emocionados. Os suspiros tristonhos com pitadas de decepção que ficassem com a Dúvida. Esperança queria em sua prateleira algo mais concreto, que ela soubesse estar de fato ali quando ela precisasse, em que pudesse tocar.

Depois, escolheu saúde e disposição, que deixou lado a lado, em pé, amparadas por pesos de mármore em forma de estrela, que isso ficava lindo e impedia que saíssem dali. Também arrumou diversão, que não sabia por que cargas d’água escorregava da prateleira toda santa hora. Descobriu que ficava melhor na do meio, pois exigia um certo equilíbrio. Trocou os velhos minha-promoção-vai-chegar por trabalho-bem-feito-e-prazeroso. Jogou fora um monte de quero-ir, colocando no lugar uma dose generosa de viagens inesquecíveis. Desfez-se dos sorrisos amarelos e colocou na prateleira de baixo muita gargalhada sincera, com abraços de verdade e olhares profundos, daqueles que tudo dizem sem soltar palavra.

Mas ainda havia espaço. Esperança, então, resolveu deixá-lo lá, para muitos o-que-vieres. Desses há diversos modelos: novas amizades, aprendizado, experiência, desconhecido. Quando chegassem, precisariam de um lugarzinho.

Nem a Dúvida poderia achar defeito naquela arrumação porque, pela primeira vez na vida, Esperança tinha sentido determinação. Teria, finalmente, um ano novíssimo em folha, brilhando de limpo, cheiroso e diferente, livre das insistências tolas que em nada dão.

Estava resolvido. Era, agora, uma Esperança otimista, respirando limpo para um tempo novo, ali, ao alcance da mão e dos olhos, mais palpável, mais possível, menos ideal.

Pensando bem, aquelas prateleiras não tinham sido feitas sob medida, mas combinavam perfeitamente com Esperança. E isso bastava para um ano feliz.




P.S.: esta idéia na janela tem uma origem curiosa. Fui ao cinema ontem assistir a O amor não tira férias, filme água-com-açúcar que mostra duas protagonistas se livrando de valores que não lhes fazem bem, superando medos e realizando esperanças. Curiosamente, a expressão “colocar algo na prateleira”, que também existe em inglês (to put something on the shelf), no sentido figurado significa “livrar-se de algo pouco importante”, “deixar de lado o que não se quer mais”. Ganhei no Natal três prateleiras novas para o meu quarto e até agora penso no que colocar nelas, já postas na parede, num lugar em evidência. Por último, estamos prestes a entrar em um novo ano. Juntei tudo e deu nisso. Como sou subversiva, inverti a semântica da expressão, porque, nas minhas prateleiras em evidência, só cabe o que é importante e precisa estar ao alcance da mão.



22 dezembro 2006

Desejo — verbo ou substantivo, como queira

Museu da Língua Portuguesa, São Paulo.


Essa é a época de querer tudo: as crianças querem os brinquedos mais legais e, não raro, os mais caros; os doentes querem saúde; os vestibulandos, uma faculdade; os que estão longe uns dos outros, uma ponte; os solitários, um amor; os endividados, dinheiro; os descrentes, fé; os platônicos, correspondência; as empresas, resultados; os políticos, aumento; os famintos, comida; os cientistas, descobertas; a seca, chuva; o infindável, fim.

E a gente acaba querendo tanto que não olha para o que já tem. É quando pede mais e mais e mais, num alimentado inconformismo que fica sussurrando a toda hora “você merece”.

Mas merecer não é ter. Falo isso com toda a convicção do planeta, porque sei que mereço muita coisa que ainda não tive. Mereço, por exemplo, um cara muito legal, que não suma, não minta, não me use, não me traia, que me enxergue sem precisar me olhar (ops, existe um assim?); mereço um carro melhor que me leve ao trabalho sem me fazer passar calor; mereço mais visitas dos amigos, um seguro mais barato, menos imposto; mereço mais tempo de férias, mais álbuns de fotografias guardando momentos bons; mereço um ar mais puro, mais contato com a natureza, mais sinceridade. E, no entanto, não tenho nada disso.

Por outro lado, tenho tanta coisa! Tenho criatividade, uma mala expansível com rodinhas, habilidades artísticas e literárias, família, comprometimento com a verdade, autenticidade, uma tevê e um aparelho de DVD, mil papéis coloridos, originalidade, olhos bonitos, palavras soltas que sempre escorregam no céu da boca sem que eu perceba, amigos maravilhosos, integridade, um sofá vermelho, bom gosto, um ventilador de teto, sapatos, personalidade, eras e eras convertidas em livros, auto-estima, um iPod, solidariedade, devoção, um abajur, um trabalho que me realiza, viagens na memória, amor próprio, um pingüim de pelúcia, voz boa para cantar, filmes prediletos, um carro sem ar-condicionado que me leva pra onde eu quero, inspiração, senso de ridículo e idéias na janela...

Tenho, também, pés no chão e cabeça feita. Fitas de vídeo, slides da infância, lembranças registradas, gosto de baunilha em lábios que sempre dizem pensamentos verdadeiramente pensados. Eu tenho coragem e tenho medo; inteligência e ignorância; perspicácia e lentidão. Tenho uma série de antônimos que me fazem meu sinônimo.

Abrigo uma imensidão dentro de mim, que vira e mexe é sufocada por um turbilhão de desejos, porque o muito que eu tenho sempre parece pouco, e o querer mais, ao mesmo tempo que me impulsiona a ser melhor e a aprender, a realizar e a trabalhar para isso, me melancoliza.

Então, nessa época, eu sempre me pergunto a mesma redundância: será que estou querendo certo?



P.S.: A todos os meus leitores, conhecidos ou desconhecidos, identificados ou anônimos, meu desejo a vocês vai além de um Feliz Natal; desejo que vocês desejem, pois é o querer que nos impulsiona a progredir e a buscar o que nos falta, ainda que seja ilusão, ainda que seja sonho. O caminho dessa busca é que sempre nos ensina o que precisamos aprender. Obrigada por passarem por aqui. Boas Festas!


16 dezembro 2006

Que presepada!

Depois das cartas ao Papai Noel, outra tradição natalina com a qual sempre convivi foi o presépio. Minha mãe capricha todos os anos, colocando a criatividade a serviço da fé.

Então, assim como os vários natais maravilhosos que tive, também tenho algumas presepadas para contar, pois, como minha mãe, sempre fui deveras criativa.

Uma vez, não sei qual era a minha idade, minha mãe conta que eu coloquei todas as peças do presépio para dormir. Decerto eu devia achar aquilo estático demais; cansativo todo mundo ali de pé daquele jeito, por dias e dias a fio. Coitados! Na dúvida, deitei todas as peças: pessoas, porcos, perus, ovelhas, vaquinhas... acho que só poupei as árvores.

Minha irmã mais velha já foi mais prática, como é até hoje: enquanto eu queria dar descanso à humanidade ali representada, a Kelly achou por bem fazer uma fila, porque já estava mais do que na hora de aquele povo se mexer para ir visitar Jesus. Como o presépio tinha dois ou três níveis ligados por rampas de madeira cuidadosamente cobertos de papel-pedra, formou-se uma enorme fila de pessoas, porcos, perus, ovelhas e vaquinhas, um atrás do outro, numa romaria digna de Aparecida.



Não bastasse todo o exposto (que fazia minha mãe ficar de cabelo em pé por ter de arrumar tudo de novo, cada peça em seu devido lugar), numa bela quinta-feira — me lembro bem do dia da semana porque era dia de feira na minha rua, o que só ocorria às quintas — eu e minha honorável e sábia irmã mais velha decidimos pôr em prática nossos ensinamentos cristãos. Havíamos ganhado uma vela cada uma, presente de nossa mais-sábia-ainda-avó. A minha era de estrelinha; a da Kelly, de coração. Então, na calada do dia, fomos acender a vela para Jesus, feito aquelas crianças meigas e gorduchas (a Kelly, não eu) estampadas nos cartões natalinos.

O único porém foi justamente a ingenuidade da infância. A gente só ganhou as velas e nada mais. Então, foram apenas as velas e nada mais que pusemos, acesas, sobre aquele pasto verde lindo feito de serragem, onde ficavam aquelas ovelhas branquinhas.

Um tempinho depois, a chama da fé, sempre tão poderosa, desprendeu-se de vez de nossos corações e manifestou-se, imponente, na sala silenciosa.

Estávamos almoçando quando alguém irrompeu a cozinha gritando “fogo! fogo!”, num desespero pra lá de aflito. A fé tem mesmo dessas coisas; as pessoas se comovem entregando-se de alma e tudo.

Eu e a Kelly tínhamos colocado fogo no mundo. Aquilo ali estava parado demais...


08 dezembro 2006

Papai Noel e eu: cartas

(Clique na carta para lê-la)


Todo escritor, artista, filósofo, músico ou ser humano que se preze já escreveu cartas a alguém. Woody Allen escreveu para Platão; Rilke, a um jovem poeta; Kafka, ao pai dele; Pero Vaz de Caminha, ao Rei D. Manuel; Van Gogh, a Théo; Mario de Andrade, a Câmara Cascudo; Mariana Alcoforado, ao léu; Scott e Zelda Fitzgerald, um ao outro; eu, ao Papai Noel...

Eu acreditava em Papai Noel, aquele mesmo, de roupa vermelha, barba branquinha e sininho na mão. Meus pais contratavam um senhor, o mesmo todos os anos, que vinha com um saco cheio de presentes devidamente etiquetados, pois éramos cinco: eu, meus irmãos e minha prima — esta última entrava na dança por diversão e para dar verossimilhança à cena, porque já não acreditava mais fazia tempo...

Mas não quero falar desse dia da visita do velhinho de barba de verdade (eu puxei uma vez para me certificar), o ápice natalino. Antes desse acontecimento anual, havia toda uma preparação fantasiosa que me ensinou muitos dos valores que tenho hoje.

Eu escrevia cartas ao Papai Noel. Minha mãe dava a mim e aos meus irmãos moedas para comprarmos selos na banca de jornal, de modo a poder postá-las. Bom, se eu mesma, com as minhas perninhas, ia comprar o selo, colocava na carta, endereçava ao céu — porque era lá que eu acreditava ser a moradia do velhinho — e enfiava a carta na caixa do correio, era para acreditar nele quando eu recebia as respostas. Tudo porque, como minha mãe tinha nos ensinado a colocar remetente nas cartas, pedia ao carteiro para devolvê-las pessoalmente a ela, de modo que ela pudesse lê-las e respondê-las devidamente. E era tudo tão bem-feito, e não tinha a internet para atrapalhar, que não dava para desconfiar...

Minha mãe tem letra de mão, mas escrevia com letra de forma os cartões-postais, cartas e cartões de Natal que recebíamos do Papai Noel. E como ele sempre respondia o que eu escrevia, era sinal de que me lia. A mesma letra das cartas eu encontrava nas etiquetas dos presentes que ele trazia na noite de Natal. Mais verossímil, impossível.

Por essas e outras, eu me sentia especial. Na escola, ninguém acreditava, diziam que era meu tio, meu avô, meu pai... Mas eu sabia que não era, porque eles estavam todos lá, vendo o Papai Noel junto comigo. E o cara ainda tinha barba de verdade, têm noção?! Isso porque eles nem sabiam das cartas... Ah, se eu contasse! Convenci-me de que as outras crianças não recebiam a visita natalina justamente porque não acreditavam nela. E essa aura de magia é que começa a formar dentro da gente um sentimento importantíssimo que muita gente perde quando cresce: a esperança.

Minha mãe nos ensinava que o Papai Noel tinha de dar muitos presentes para muitas crianças e que, por isso, nem sempre tinha dinheiro para dar o que pedíamos (psicologia pura de mãe que tem quatro filhos pedindo bicicletas individuais!). Se o problema era esse, estava resolvido: eu juntei o meu dinheiro, umas parcas moedas que ganhava da minha avó quando ela me visitava, e separei, como diz a minha carta, em duas partes: uma para comprar o aparelho dentário de que a Kelly precisava; outra para enviar ao Papai Noel como ajuda de custo. Uma menina de 9 anos já consciente quanto às finanças pessoais! Mandei um anexo na carta: “Já que eu não posso mandar o dinheiro pela carta, o senhor pode vir buscar. Mas não agora, só em novembro!”.

Eu trocava correspondências com o Papai Noel durante uns dois meses. Eu escrevia, ele respondia, e assim era até o Natal. Eu tentando convencê-lo de que havia me comportado bem, e, portanto, era merecedora do presente; ele às vezes bem-humorado dizendo bondades, outras mais sério, coisa de mãe brava ou sonolenta escrevendo respostas para quatro filhos tagarelas altas horas da manhã talvez. Tenho cartões em que Papai Noel me dá broncas homéricas — “fale menos e ajude mais” ou “se continuar chorona assim vai ficar enrugadinha como eu”, ou ainda “tente chorar menos e ser mais amiga dos seus irmãos” — PSs que me ajudavam a aprender a lidar com decepções e a constatar que eu era uma chata.

O mais impressionante da história é que Papai Noel gostava mais de cartas do que eu. Ele as mandava para mim antes mesmo de eu ser alfabetizada. Tenho várias como essas guardadas, com elogios breves, é verdade, por eu ter passado para o pré, por eu ter dançado bem no balé, me comportado bem... tudo permeado por alguma lição básica de cidadania, como repartir as coisas com o próximo, ajudar os pobres, fazer caridade, entender que há pessoas mais tristes e mais necessitadas do que eu e que, perto disso, meu presente não era assim tão importante.

Por essas e outras é que eu respeitava pra caramba o Papai Noel. Era Deus no céu e ele também. Além de símbolo mor da bondade sobre todas as coisas, ele ainda achava tempo para me escrever, dividia os sentimentos dele comigo, me ajudava a ser uma pessoa melhor e era amigo de verdade, porque só os amigos de verdade dão bronca na gente quando o que a gente mais quer receber é mão na cabeça em sinal de aprovação. Para mim, o que ele dizia era lei.

Mas, como toda correspondência que se preze, um dia o contato acaba por razões que só o Universo conhece. Embora a carta que abre este texto tenha sido escrita em 1984, quando eu tinha 9 anos, nossa correspondência só cessou em 1986, quando descobri que Papai Noel não existia, pelo menos não assim, de carne e osso, com barba que não sai, roupa vermelha e saco cheio de presentes padronizados. A última palavra, lógico, tinha de ser dele, porque foi ele que começou tudo aquilo:

Menina Kandy,
Desejo que todas as canções de Natal tragam paz, amor e felicidade! Lembre-se de que o verdadeiro espírito de Natal é o amor, a fé e a caridade repartidos com o próximo. Se em seu coração sempre houver a meiguice, a sinceridade e a ingenuidade de criança, então eu estarei com você em todos os Natais que virão! Beijos do “Papai Noel”

Nesse ano, eu passei o Natal com menos magia, mas nem por isso menos contente. Tinha feito uma descoberta interessantíssima com aquelas aspas: Papai Noel morava mesmo no céu, de onde vem tudo o que é bom que a gente vai guardando dentro da gente, como parcas moedas sendo depositadas em cofrinhos da alma. Ele não tinha forma, barba, roupa, letra de forma, sino ou saco de presentes. Ele tinha espírito natalino. E é nisso que eu acredito até hoje.



P.S.1: Nem sei o que foi feito desse dinheiro, porque a Kelly só foi usar aparelho dentário na idade adulta, bancado pelo próprio bolso.

P.S.2: Minha estilística já denunciava minha vocação... que criança de 9 anos escreve "mande-me a resposta"?!!! Para compensar, avacalhei na colocação pronominal da oração que veio depois. Paciência... e olha que isso eu tinha, estava disposta a esperar a bicicleta no ano seguinte ou no outro ou no outro... ;-)


04 dezembro 2006

Janeleiro de plantão

Para quem você olha quando anda na rua? Quantos mesmos você , achando que sabe tudo da vida deles, por vê-los todos os dias fazendo as mesmas coisas nos mesmos horários? O quanto você afia o seu poder de observação perscrutando os outros com doses generosas de curiosidade?

Observar é de fato uma arte. É através dos olhos, a janela da alma, que entramos nas janelas dos outros, raramente de modo consentido. Somos, na maior parte do tempo, invasores de janelas alheias. E, se preciso for, arrombamos tudo com conclusões precipitadas.

O rapaz que passeia com o cachorro todos os dias e que atravessa na faixa, na minha frente, enquanto o semáforo está vermelho, é exemplo disso. Detesta passear com aquele cachorro, porque usa a coleira da impaciência. O pobre coitado — o cachorro, não o rapaz — continua subserviente, embora procure solidariedade em olhares desconhecidos. É da janela do meu carro que observo os dois. Vou entrando sem cerimônia em vidas que não me conhecem, que, por sua vez, atravessam aquela rua avassalando outras, as quais, igualmente, não têm consciência de estarem sendo escaneadas.

muita gente em inúmeras janelas espalhadas por , olhando tudo, quietas, praticando observação. Quantos, por exemplo, lêem as idéias da minha janela sem sequer me conhecer? Quantos permanecem fiéis e anônimos leitores-observadores acessando esta janela com regularidade para dar uma olhadela no que meus verdes olhos vêem?

Freqüentemente observo a mim mesma e me pergunto se meu olhar é que é interessante ou se o fato de manter esta janela aberta é que é convite mais que suficiente para me espiarem enquanto me troco em palavras. Posso ser aquele rapaz com o cachorro andando na rua de alguém.

Não tem problema. Observar é dolorido por devassar ambientes e interiores, nossos ou dos outros, numa constante espionagem que revira valores, desesconde receios e traz à tona o que foi esquecido, mas, ao mesmo tempo, revela muito do que somos, nós e os outros, escancarando pensamentos expostos na vitrine do olhar.

Pois continuem entrando aqui, pela porta ou pela janela, tanto faz, e vasculhem tudo. Usem lente de aumento, óculos, se preciso for, mas nunca deixem de observar. Porque é assim que a gente se conhece.


29 novembro 2006

Até logo!


Para Angélica, com carinho de ontem, hoje e amanhã


Eu e Angélica estudamos juntas até a oitava série. Até festa de aniversário surpresa ela fez para mim um ano, com direito a venda nos olhos e tudo. Depois, cada uma seguiu a vida, numa dessas rotas cheias de bifurcações e não tão bem sinalizadas que fazem as pessoas se perderem umas das outras. Mas o destino nunca me deixa na mão. Certo dia, eu e Angélica nos encontramos casualmente em um vagão do metrô. Descobrimos que ambas tínhamos escolhido o mesmo curso de graduação; o mundo das letras é mesmo seletivo. Nessa época, Angélica trabalhava numa companhia aérea e estava estudando francês.

Tínhamos a mesma idade, a mesma infância, a mesma formação. Tínhamos passado em comum, um segundo lugar num festival de música da escola, muitas brincadeiras escondidas no quarto dela, onde brincávamos em tardes esticadas pela vontade de não crescer, que acabavam com bolo feito pela mãe dela; mimo doce para preparar o paladar para o às vezes amargo futuro.

“Vamos nos encontrar para tomar um café?”, ela me escreveu dia desses.

Não tomamos aquele café.

O destino, no entanto, sempre tão condescendente comigo, providenciou outro encontro casual. No dia do primeiro turno da eleição, quando trabalhei como mesária e fui almoçar no shopping, Angélica me viu comendo em pé e, gentilmente, como sempre, foi até mim para me chamar para almoçar na mesa onde ela estava com a família. Fazia anos que não nos víamos, embora nos falássemos via tecnologias disponíveis.

Por que não tomamos aquele café? Não foi por falta de tempo, porque isso não é desculpa. Não foi por má vontade, porque Angélica e eu seríamos incapazes disso. Não foi desencontro. Eu não sei o que foi. E esse não saber é que angustia, embrulhando todas essas maravilhosas lembranças em papel feio sem laço de fita, como coisa sem importância amontoada em qualquer gaveta.

É o velho e bom depois, um dia, vamos combinar, indefinição. É a velha e traiçoeira confiança no amanhã, no virar a folha do calendário como dois e dois são quatro, com o respaldo da tola juventude. É a velha e falsa imortalidade que vai juntando cafés aqui e ali, numa coleção infindável de até logos imbecis e estéreis, que nunca vão chegar.

Foi a última vez que vi Angélica. Hoje, ironicamente por meio das mesmas tecnologias disponíveis que tornaram possível restabelecermos nossa comunicação, eu soube que ela morreu. (Ainda se morre de meningite no século 21.) Fiquei sem chão, momentaneamente sem infância, sem mundo de letras, sem palavras, chorosa por dentro e por fora, mais até que essa chuvarada toda que embolora as idéias. Eu transbordei foi de saudade ao começar a embalar nossas lembranças em papéis maravilhosos, com fitas coloridas. (Nunca fui boa em despedidas.) Irrompi em lágrimas escandalosas de decepção comigo mesma por não entender o porquê de não termos tomado aquele bendito café.

Talvez porque simplesmente não haja razão para tudo. Nós é que somos nada.


26 novembro 2006

Por que detesto estatísticas

— Alô? Oi, aqui é da corretora, é sobre a renovação do seguro do seu carro.
— Ah, sim! Oi, tudo bem? Eu ia mesmo ligar pra você... Você já tem algumas cotações pra me passar?
— Tenho, sim, claro. Mas já vou te avisando que o valor subiu um pouco, não se assuste. E olha que tentei pechinchar. Consegui diminuir em quinhentos reais, mas ainda ficou bem mais caro que no ano passado...
— O curioso é que o carro é o mesmo e não houve sinistro, então, eu deveria ter bônus...
— É, mas você teve bônus e mais descontos por ter vacina antifurto no carro, alarme, por ter mais de 25 anos, ser mulher, deixar o carro em garagem de dia e de noite e...
— Fala logo qual vai ser a facada...
— Dois mil. Chorados, hein?
— Você tá louco?! O meu carro é popular!
— Justamente! E é o popular mais visado!
— Claro que é o mais visado! Pois foi o mais vendido! Se foi o mais vendido, há mais dele na rua, portanto, é mais roubado. Isso é lógica, eu não tenho culpa de ser pobre e só ter dinheiro pra comprar um carro popular, que, se foi o mais vendido, é porque, na época, era o melhor negócio...
— Calma. Olha, eu vou te explicar: há vários fatores que encareceram o seguro do seu carro.
— Por exemplo?
— As autopeças originais aumentaram em 300%, você não mora em apartamento e...
— Quê? O fato de eu não morar em apartamento encarece o meu seguro? Que absurdo!
— É que, estatisticamente, as pessoas que moram em apartamentos têm menos probabilidade de serem roubadas quando chegam em casa, porque é mais seguro...
— Ah, então eu não posso mais morar em casa?
— Pode, só se for em condomínio fechado... aí você tem o desconto.
— Mesmo não concordando com essa insensatez, quais os outros fatores que influenciaram no preço?
— Então, o modelo do seu carro não é mais fabricado e você mora na zona leste da cidade, onde, de acordo com as estatísticas, há mais incidência de roubo...
— E eu tenho culpa de morar em reduto de ladrão? Analise comigo: se os ladrões moram aqui ou se vêm roubar mais aqui é porque aqui é mais barato pra morar e tem mais carro popular e menos segurança; logo, é onde as pessoas mais simples, as que não têm dinheiro pra comprar casas e carros caros, moram. Se elas não têm como pagar por casas e carros melhores, por que têm de pagar mais por morarem onde moram? Não faz sentido!
— Pule essa parte do sentido. E eu ainda não terminei. O outro fator é, bem, eu tenho de falar, né, você perguntou... é porque você é solteira...
— Ã?! Eu tenho de pagar mais caro porque eu sou solteira?! Ah, era o que me faltava!
— É que, estatisticamente, as pessoas casadas saem menos de casa de carro, então, as solteiras são mais roubadas, e as companhias de seguro levam isso em consideração.
— Isso deve ser uma pesquisa manipulada, pra variar. Tem muito casado que sai mais do que muito solteiro. E, se isso não bastasse, além de não haver no mercado homem livre, desimpedido e bem-resolvido, eu ainda tenho de pagar por isso?! Eu é que sou a vítima dessa escassez! Eu deveria receber uma indenização em vez de pagar!
— Olha, se serve de consolo, você é uma mulher bonita, inteligente, logo, logo acha alguém e...
— Não é o que a Veja diz. De acordo com ela, as mulheres de 30 anos têm apenas 27,6% de chance de se casar! Aos 35 isso vai para apenas 19,2%! Então, estatisticamente, como você enfatiza, eu tenho mais probabilidade de continuar pagando meu seguro cada vez mais caro!
— Pensando por esse lado, é verdade. Sinto muito...
— Obrigada pela solidariedade. Mas tá errado! Tudo errado! Além de eu discordar da Veja por ela propagar esse tipo de estatística inútil que só reforça determinados preconceitos, os ricos têm grana pra pagar seguro, os bem pobres não têm carro, então, pessoas como eu, que não têm dinheiro pra ter carro bom, têm de pagar por tudo. Se eu ainda tivesse um carro com ar e direção, vá lá...
— Coitada! Bem, mas olha a boa notícia: você paga em quatro vezes sem juros! Fechado? É débito em conta como no ano passado, né? Dia 30 tá bom? Te mando a apólice amanhã!
— Isso é mesmo deprimente, não? Ainda ter de dividir em quatro vezes a minha indignação...



21 novembro 2006

Lunática sonhadora

Desde pequena eu sonho muito. Dos sonhos dormindo sempre me lembro acordada. Já os que tenho acordada acabam adormecidos na memória mesmo. Uns, mais insistentes, vingam e viram objetivos; outros são arquivados na seção do sono eterno e ponto final.

Dia desses sonhei com a Lua. Talvez Freud explique, não sei. Mas, antes de adentrarmos no sonho propriamente dito, querido leitor, preciso explicar que, também desde pequena, eu tenho uma certa rixa com a Lua (minha infância foi mesmo fascinante!): quando eu andava de carro e olhava para o céu, achava uma tremenda petulância desse satélite me seguir até em casa, naquela observação irritante. Com a caravan dourada que tinha, meu pai podia entrar em qualquer viela escondida dessa cidade enorme que não adiantava: a Lua lá, gloriosa, sempre me olhando. Não tinha sequer espírito esportivo para brincar de esconde-esconde. Bancava mesmo a mãe da rua, dona da bola, cheia ou minguante, tanto faz.

Cresci com essa mania de perseguição, que hoje amenizou-se, é verdade, porque para alguma coisa aquelas aulas chatas de Geografia tinham de servir. Mas, sobretudo em noites quando a Lua está grande no céu, volta em mim aquela sensação de infância: a Lua me olhando, soberana, como se fosse a única capaz de me enxergar por dentro, ainda que eu não tenha o que esconder.

Pois meu sonho foi, modéstia à parte, criativo pra chuchu. Primeiro, a Lua desmoronava sobre a Terra, e o céu, visto daqui, desaparecia. Ao olharmos para cima, tudo era solo lunar. Foi ficando frio e escuro. Tudo bem, eu sei que a Lua é muitas vezes menor que a Terra e tal, piriri, pororó, mas uso a licença poética até em sonhos. No meu, ela era maior e caía, assim, no planeta inteiro, sem aviso prévio mesmo.

Com humor de fim-de-mundo, as pessoas saíam de suas casas olhando para o céu-Lua, meio apavoradas, meio intrigadas. Saí também, mas, curiosamente, em vez de pânico por finalmente pensar que a Lua me descobriu e veio me buscar de vez — como o homem do saco que as mães sempre utilizam como ameaça em horas de impaciente desespero —, eu fiquei extasiada porque, diferentemente de todo mundo, eu via beleza.

Nesse momento, a Lua choveu. Ela chovia pedaços, que pareciam espuma de colchão. E aí veio uma tempestade de Lua. Todo mundo saiu correndo, feito fogos de artifício, só eu fiquei debaixo daquela Lua se desintegrando. Quando a chuva parou, as pessoas, ainda curiosas, tentavam pegar os pedaços lunares do chão, mas queimavam as mãos e logo os soltavam, de tão gelados.

Por motivos que a razão desconhece, até por estar ausente num momento como esse, eu continuei exceção e saí catando todos aqueles pedaços de Lua de espuma de colchão. Quando já estava com os braços lotados, como quem carrega lenha, caminhei até uma jardineira e os plantei, meio que esperando uma resposta. Se a Lua tinha despencado na Terra era porque queria entrar nela, pensei.

Acordada, eu não planto nem bananeira, quem dirá flor. Mas no sonho eu plantava Lua, que deu botão e fez crescer bem rápido um sonho de planta, linda e cintilantemente branca, com perfume de gardênia que se espalhava por aí. Mas a flor, que não existe na Terra, só durava um dia, para o meu desconsolo.

Acordei com essa sensação de e agora e fiquei um tempão pensando naquilo tudo. Será que é porque eu leio muito livro infantil, onde até avião bota ovo? Ou porque tenho tanto os pés no chão que fazer um intercâmbio com a Lua seria uma espécie de mestrado para aprender o diferente? Talvez seja influência do Pequeno Príncipe. Bom, pode ser também a minha criatividade ultimamente pouco utilizada transbordando no sono.

Que seja. O negócio, meus caros, é sonhar, em todos os sentidos, sem procurar lógica, motivo ou explicação. Porque, no mundo da lua, onde os sonhos acontecem, essas coisas definitivamente não importam.



Observação interessante: a foto da Lua sobre a qual fiz arte foi tirada pelo meu amigo Leo, aquele que foi para a Bahia comigo e que cisma em me levar para conhecer as nuvens, desta vez em uma viagem de balão. Para minha sorte, ele é psicólogo.


19 novembro 2006

A mulher e a carta


A mulher lia a carta.
A carta desconfiava da mulher.
A rua olhava as duas.
Na sombra.

A carta chegava mais perto da vista da mulher.
A mulher decifrava a caligrafia da carta.
A rua acolhia as duas.
Na subida.

A mulher não entendia o que lia na carta.
A carta tentava explicar-se para a mulher.
A rua ajudava as duas.
Na largura.

A carta emocionava a mulher.
A mulher chorava na carta.
A rua amparava as duas.
No chão.

A mulher sentou-se para dar mais tempo à carta.
A carta encompridou-se para auxiliar a mulher.
A rua esperava as duas.
No comprimento.

A carta fez suspirar a mulher.
A mulher dobrou a carta.
A rua assistia às duas.
No silêncio.

A mulher entrou em casa para guardar a carta.
A carta guardou as emoções da mulher.
A rua guardou as duas.
No anonimato.



História da foto: Em um dos passeios que fiz quando viajei para Portugal, em 2005, visitei um vilarejo com as casas todas branquinhas. Não havia ninguém na rua, exceto eu. De repente, a mulher da foto sai da casa dela, verifica a caixa de correspondência e pega uma carta. Ansiosa, senta-se ali mesmo e começa a ler. Eu não sei quem era aquela mulher nem o que havia na carta. Mas nunca presenciei uma manifestação de emoção confusa, solitária e espontânea como foi a daquela mulher, que não pude deixar de fotografar.

15 novembro 2006

Como começa o amor

"Kan querida,
Recebi o recado cedo, mas estou respondendo só agora porque já fizemos o TESTE....

Kandy pega uma coleção (infantil viu) para seu futuro afilhado(a) rsrssrrs temos 90% de chance de estarmos corretos, nós não vamos na balada.

Vamos comer pizza aqui em casa, se vc não for na balada aparece para comemorar, ok.

Fiquei com vergonha de te ligar, a gente ficou meio esquisito... não sabe se fica feliz, ou preocupado ou apavorado...rsrsrs

Liga pra mim tá. bjs.

Fê, Eri e bebê!" (e-mail de 9/fev./2006)




“Querida Amanda,

Você fez um mês dia 12, mas já observa tudo de um jeito que conquistou esta sua madrinha aqui. Ter um olhar inquisidor, desses de varrer tudo motivado por curiosidade, é bem a minha praia. Nesse quesito, você teve a quem puxar, apesar de não termos vínculos sangüíneos — um detalhe insignificante, a meu ver.

Eu nunca havia presenciado um nascimento até você vir ao mundo. E confesso que foi uma expectativa interessante. Você já emocionava as pessoas antes mesmo de sua mãe concretizar a torcida para você nascer no dia do aniversário dela e de Nossa Senhora Aparecida. Só por isso, você já é iluminada. E vai se divertir pra caramba, porque nasceu no Dia das Crianças (eu te dou dois presentes, combinado?).

Mas olhar você ali, enfrentando o mundo pela primeira vez com um monte de gente que até então você nunca tinha visto, fez as emoções transbordarem. E, junto com seu choro, todos choramos também, numa alegria que finalmente podia se despir de qualquer preocupação.

Sua mãe, minha melhor amiga, já dizia que eu seria a sua madrinha nos tempos em que eu e ela estudávamos juntas. Acredita? Eu ainda não sei como é ser madrinha de alguém, mas posso seguir o exemplo da minha, que é mesmo minha segunda mãe. Então, queridinha dos olhos azuis, fique tranqüila, porque eu sempre estarei aqui, participando ativamente da sua vida, festejando seus aniversários, suas conquistas, apoiando suas decisões, assistindo às suas apresentações na escola, te ensinando análise sintática, ajudando você a entender o mundo de um jeito poético, que isso ajuda bastante, e torcendo para que você tenha na vida uma amizade como a que eu e a sua mãe (e agora seu pai também) temos, que isso é extremamente importante.

Provavelmente você não se lembra, mas, quando peguei você no colo, ainda na maternidade, te falei quantas coisas legais você poderia conhecer: cata-vento, parque de diversões, algodão-doce, corrida de São Silvestre (com a sua família inteira correndo nela!), música, escorregador, risada espalhafatosa (que espero você tenha herdado da sua mãe), cores, tintas, giz-de-cera, orquestra, passeio no parque, vento no rosto, lençol cheiroso, pão quente, mimo de avô e avó, bicicleta, pastel de feira, jogo de vôlei, areia de praia, mar de informação e tantos outros aparatos eletrônicos que sabe Deus o que serão na sua adolescência...

Olhando para você, é inevitável a pergunta: o que será que você vai ser? O sonho da sua mãe (porque todas têm os seus) é viajar com você nos Jogos Olímpicos. É, porque você vai ser atleta de seleção, daquelas altas e bonitas, que vai literalmente “botar pra quebrar”. Mas você pode ser médica, cientista, estilista, comerciante, astronauta, professora, apresentadora da MTV, produtora de moda, jornalista, designer ou o que quiser ser, porque tem uma família que te ama que vai te ajudar a ser você.

Particularmente, meu desafio vai ser familiarizar você com os livros. No que depender de mim, eles vão fazer parte da sua vida naturalmente. Tudo bem, vai, eu forcei um pouco a barra lotando a estante do seu quarto de obras coloridas que você ainda nem sabe ler. Mas eu vou ler para você e vou te ensinar a folheá-los e a entrar neles de um jeito divertido. Isso talvez intensifique seu modo de olhar e deixe seus olhinhos ainda mais brilhantes, e talvez nós duas consigamos seqüestrar o resto da sua família para fazerem a mesma coisa. Certamente a leitura vai torná-la uma pessoa criativa... e, pensando bem, você vai poder até ser artista, porque a arte é indissociável da literatura...

Por enquanto, continue aconchegada no cobertor laranja de franjas que foi do seu pai, alegrando a vida dos seus tios babões (fala sério, Amanda, ser a única sobrinha de três tios homens é privilégio de poucas, hein?!), ouvindo calmamente a musiquinha do móbile que você ganhou de um deles, aproveitando a delicadeza do seu quartinho branco e lilás, e crescendo forte e saudável numa família que está se esforçando para ser perfeita para você.

Amanhã eu vou visitar você e te levar os cds que comprei para você dormir feliz. Longe de mim influenciar seu gosto musical, mas dormir ouvindo Pachelbel, Bach, Beethoven e até o estressado do Mozart (foi um pessoal diferente, um dia eu te explico se você quiser), todos com arranjos especiais para ninar bebês, não é para qualquer um — e, definitivamente, você não é qualquer um. Ah, se você não gostar, também tem um cd de MPB para bebês, e você vai poder conhecer a Mônica Salmaso e a Na Ozetti cantando músicas de pingo de chuva, que confortam qualquer alma pouco ou muito sonolenta.

Você vai ser feliz, porque é querida e amada, a começar pelo belíssimo nome que te deram (deixa eu te contar, vai, uma hora você ia ter de ficar sabendo mesmo: ele vem do latim amandus, a, tendo o primeiro registro identificado no século XVII, e quer dizer “digna de ser amada”). E vai poder ler esta carta sempre que quiser, porque ela vai estar dobradinha e escrita a mão no álbum colorido que vou montar para imortalizar seus primeiros anos de vida, contando o início da sua história.

Beijos estalados na sua bochecha fofinha, desta madrinha que te ama desde 9 de fevereiro,

Kandy”

Legenda da imagem: Erison na maternidade, olhando para a filha recém-nascida.

05 novembro 2006

A hora do aperto

Por alguns dias tive o tempo a meus pés, algo só possível quando se tem férias ou quando ocorre algum evento geralmente de natureza catastrófica que nos obrigue a ficar trancafiados em algum lugar sem nada para fazer, num exercício entediante e aflitivo de perder tempo.

Curiosamente, hoje entrou o horário de verão, quando os relógios tiveram de ser adiantados em uma hora. Mas minha sensação de tempo perdido é gigantescamente maior que isso, sobretudo agora, a menos de uma semana de retomar aquele ritmo alucinante de luta contra os ponteiros mais ágeis que eu.

Eu só tenho 31 anos, embora às vezes me sinta com 40. 9 anos perdidos. Mas também há dias em que me sinto mais nova, no auge dos 20, devido a um daqueles banhos imaginários em alguma lendária fonte da juventude. 11 anos perdidos. Os mais racionais dirão, como naquela metáfora do copo mais cheio ou mais vazio quando a água nele está exatamente na metade, que 31 são 31, nem mais um nem menos um. Mas eu estou perdendo tempo, e isso é um fato que nem a Matemática explica.

Estou perdendo os sonhos que não consigo realizar por motivos que independem de mim. Estou perdendo as viagens que poderia fazer não fosse a obrigação de comparecer diariamente ao trabalho (o mesmo trabalho que paradoxalmente pagá-las-ia). Estou perdendo horas fantásticas ao lado de amigos mais fantásticos ainda que só consigo ver nas férias. Estou perdendo céus coloridos que as janelas do escritório não me deixam ver e estrelas sempre cobertas quer pela poluição, quer pela minha falta de tempo para contemplá-las.

E, nessa perda de tempo, não sou mais capaz de visualizar as palavras de amor que ainda quero ouvir, os olhares cúmplices teóricos que nunca tiveram tempo de serem praticados, as tortas de morango que não tive tempo de aprender a fazer, os solos de violão que a falta de tempo trancou no armário, os filhos que não tive, as orações que não fiz, os momentos de liberdade covardemente sufocados por estar sempre atrasada, numa luta insana contra o que sempre passa mais rápido do que eu, as pessoas que não conheci por nunca ter chegado a hora, as conversas que poderiam acontecer não fosse eu ter de fazer mil coisas ao mesmo tempo, os beijos que não recebi de alguens que não tiveram tempo a me dedicar ou que têm predileção ao depois, o que deixei de fazer enquanto esperava o trânsito andar, o dentista me atender, o médico chegar, a fila acabar...

Não adianta: quanto mais o calendário anda, mais tempo eu perco. (O ideal seria não dormir, como agora, mas numa insônia voluntária e compensadora, multiplicadora de horas extras, diferente desta, motivada pela sensação de impotência diante de horas contadas.) Eu trocaria, de olhos fechados, muitas das minhas horas solitárias por poucos minutos de companhia sincera e espontânea.

Pode ser a cidade em que vivo a maior culpada por essa sensação de relógio acelerado. Pode ser minha ansiedade ou minha expectativa pelo diferente, que teima em acontecer sempre igual na minha vida, ou, ainda, a constatação infeliz de que tudo está mudando exceto eu. Essas coisas atropelam tudo sem piedade, fazendo das vinte e quatro horas um piscar de olhos.

Então, hoje, quando adiantei o relógio em uma hora, não doeu. Foram apenas cócegas nesse imenso desperdício.


27 outubro 2006

O tempo a meus pés

Foi uma segunda-feira dos ventos. Uma ventania desvairada de descabelar qualquer mentira cabeluda, despenteando até os mais carecas.

Com férias assim, ventando contentes, o que fazer com tanto tempo livre, arrepiado de frio? Dizem que, quando venta muito, é porque morreu um padre. Pois devem ter assassinado o clero inteiro naquela segunda-feira dos ventos.

Apelei então para a mais solidária das companhias, dessas que trazem eras dentro delas, com 45.578 histórias diferentes se entrelaçando em tranças intertextuais. E li, em voz alta, 327 páginas deliciosas, entonando emoções para minha irmã mais velha, de férias comigo na praia da ventania.

A Kelly é preguiçosa para ler. Por coincidência do destino, foi ter uma irmã movida a leitura. Passamos a segunda-feira dos ventos lendo Luna Clara&Apolo Onze, eu engolindo as palavras em sílabas docinhas, ela vidrada, querendo sempre que a história continuasse e que o vento parasse.

Por outra coincidência do destino, o livro começa justamente falando do vento, de tarde, de gelatina, esquilos, gerânios, pensamentos, vaga-lumes, chuva, novidade, inusitado, tempo, procura, desencontros, aventura, tudo vindo de lá de onde o vento vinha, lugar em que o tempo tira férias.

Conhecemos personagens incríveis que dialogavam mundos numa linguagem que, se não era onda, tinha aprendido a embalar sonhos com o mar: justo ele, ali, tão pertinho.

Fazia tempo que eu não devorava um livro inteiro assim, sem entrada nem antepasto, feito pudim de leite que escorrega pela garganta caramelada. Tive vontade de ter um cavalo só para chamá-lo de Equinócio, ou dois cachorros bem grandes com o nome do par que dá título ao livro. (Outra coincidência do destino: já tive um dog alemão lindo de morrer chamado Apolo, e meu irmão tem uma cadelinha labrador com o nome de Luna.)

Queria visitar Desatino do Sul e Desatino do Norte, me demorando em conversas com Seu Erudito ou invadindo a festa sem-fim que Dona Madrugada e Seu Apolo Dez, junto com as sete maravilhas do mundo, promovem há exatos treze anos, dezoito meses e quinze dias.

Percebi que tenho desejos de desejo e que, como Doravante, não desistiria de meus ideais ainda que com uma nuvem carregada de chuva bem em cima da minha cabeça, chovendo azar.

Até aquele momento, não sabia o que toda essa ventania da segunda-feira estava querendo trazer para mim: vontade de usar chapéu xadrez, de ler revista velha; tomar café-da-manhã demorado ouvindo o barulho do mar; andar feito cata-vento, só parando para ver o pôr-do-sol; encher o boné de conchas de todos os tamanhos e cores; colecionar caramujos; escalar pedras; comer bolo de chocolate com sorvete; visitar amigos distribuindo abraços; ver um monte de beija-flores dançando ao redor de orquídeas; olhar sonolentamente para o céu estrelado, só visível fora da poluição urbana, e pensar em todo mundo para quem a gente quer que as coisas dêem certo; tomar café recém-passado, em coador de pano, pela madrinha, acompanhado de biscoitos de goiabada; e me entregar preguiçosa ao Vale da Perdição, onde as palavras me seqüestram, encarcerando-me junto com um papagaio intelectual chamado Pilhério... Coisas simples que podemos fazer no dia-a-dia, mas que só dá para fazer tudo junto nas férias.

Que vente muito assim na minha vida, sempre e em todo lugar, para me fazer ler mais 2.876.457.382 livros em voz alta, para propagar aos quatro ventos tudo o que Luna Clara e Apolo Onze me ensinaram num pedacinho tímido do litoral paulista de um 23 de outubro ventoso, vendavando literatura e espalhando férias, num sopro contínuo de descanso inesquecível, que todos nós merecemos...


19 outubro 2006

Fado diverso

Basta.
Tirarei férias de mim
[mesma
para procurar ausência
e neutralizar atitudes
que nunca tive.

Há vontades que não
[esqueço
por se fazerem lembrar
[a todo momento.

Há desejos insones,
teimosos em manter-me
[acordada,
mais prováveis no mundo
[dos sonhos.

Não sossego.
Ando numa onda de inquietação irritante
em que todas as vontades formigam.

Cansei de esperar
o que não conheço ou quem nunca vi.
Não tenho mais fôlego
para acenar para o que não me enxerga
ou procurar o que nunca me encontrou.

Sufoquei de tédio,
paralisei princípios,
que agora se dispersam devagar
rastejando estorvo.

Não sei se contenho essa dispersão
— num gesto óbvio de quem valoriza resquícios —
ou se deixo tudo escorrer para esvair-me junto
num desaparecer consentido.

Por mais que me esforce,
eu persisto, resisto, não passo.
Tardo e permaneço
ao arrastar sobrevivência.

Murcho gradativamente
ainda que incapaz de esvaziar-me e diluir-me
em esperanças aguadas de horas inexistentes.

Sou sem existir,
porque inócua me transformo
em descrenças que não quero ser.

(Querer é verbo anômalo,
que para certas coisas
é preciso abolir do vocabulário)

Se sou desejos e vontades espalhafatosos;
se anseio, teimo e insisto,
querer é o que move meus instintos
dilacerados e roucos berrando para o nada.

Mais fácil ser nada,
sentir nada,
querer nada,
mesmo tendo quase tudo.

Desisto.
Abro mão desse tudo.
É o quase que me faz falta.



14 outubro 2006

Obrigado e vote sempre!

A seção eleitoral n.º 109 onde trabalho como mesária funciona num colégio de ensino fundamental na rua onde moro. Fica em uma classe da 3.ª série, cujas paredes estão repletas de flores de papel meio tortas, feitas pelas crianças em comemoração à chegada da primavera.

Nas mesmas paredes, colaborando para a poluição visual, ainda há um mapa do Brasil, um do Estado de São Paulo e um relógio brega com um fundo protagonizado por uma famosa dupla sertaneja.

Apesar de ser uma classe de terceira série, sobre a lousa ainda está o alfabeto, em letras de mão e de forma, como se as crianças daquela sala ainda estivessem aprendendo a ler. Talvez estejam.

Pois a seção 109 não poderia funcionar num lugar mais apropriado. A maioria dos eleitores que lá votam ainda estão aprendendo a ler e não conhecem o Brasil estampado no mapa. “Meu marido mandou eu votar nesses números aqui, ó”, diz uma senhora, estendendo o papel para mim. Faltavam os deputados. Quando foi informada disso, virou-se para nós, mesários, e, numa irritante ingenuidade, soltou: “Ah, escreve uns números pra mim que eu voto. Todo ano eu voto errado, me atrapalho”.

Havíamos deixado escrito na lousa, em letras garrafais, a ordem em que deveriam ser digitados os votos na urna eletrônica. Pela quantidade de números para cada cargo, era possível sabermos em qual voto o eleitor estava. Mas perdemos a conta de quantos eleitores digitaram um monte de números seguidamente (talvez achassem por bem colocar o RG ou o CPF na máquina!) na crença de que deveriam apertar a tecla “confirma” uma única vez. Inúmeras foram as vezes em que repetimos as mesmas instruções... infinitamente quase em vão.

Os eleitores da 109 não lêem: o famoso analfabetismo funcional. “Senhor, descreva a tela em que está para a gente, por favor. Qual o cargo que o senhor está elegendo agora? Está escrito bem grande na tela.” “Ah, é deputado estadual.” “Então, senhor, são 5 números ou, se o senhor quiser votar na legenda, são 2, o número do partido.” Ele digita um monte. Quando termina e aperta o verde, ouvimos o som da conclusão da votação. Aquele eleitor, como muitos outros, estava votando para presidente e não sabia. Votou errado. Saiu dizendo “tudo bem, isso nem é problema meu”.

Chega uma esbaforida à porta da seção: “Quero votar no Maluf, me ajuda?”. “A senhora tem certeza?”, perguntei. “Tenho, sim, mas não sei o número dele. Qual o número dele, me fala...” “Não posso. A senhora precisa ir até o pátio para procurar na lista.” Ela foi. Voltou com o número anotado num papel, amassado junto a outros numa mão trêmula. Tinha cara de quem não tinha a menor idéia do que estava fazendo ali. “São 5 votos, senhora, e a senhora começa votando nos deputados, tá?” Fez cara de interrogação e exclamação juntas, ao mesmo tempo que jogou todos aqueles papéis em cima da minha mesa. Pacientemente, coloquei todos ao papéis na ordem em que ela deveria votar, expliquei tudo de novo na esperança de que ela não desperdiçasse os votos. Aparentemente, votou certo. Na saída da seção, rasgou todos os papéis e jogou no lixo, aliviada: “ai, ainda bem que isso acabou, credo, nem quero mais saber!”.

Chega outra, empolgada: “Eu só vim pra votar no Eli Correa! Ele é maravilhoso! Mas não aparece a foto dele aqui, por quê?”. Ela estava votando no Eli Correia para o cargo ao qual ele não era candidato.

Um rapaz bocejante aparece para votar. “Cadê os números das pessoas?”, pergunta. “Que números?”, respondo. “O dos candidatos. Eu não escolhi ninguém ainda...”

80% dos eleitores da 109 se confundiram quando viram a tela de Senador. “Tem isso, é?!” “Nossa, em quem eu voto aqui?”, “Moça, moça, aqui tá escrito se-na-dor. O que é isso?” “Senador?! Mas eu nem escolhi um número pra isso!”. Realmente, Jó deveria ter sido promovido a santo.

Um outro, mais impaciente, esmurrava o botão verde como se amassasse batatas. “Isso aqui tá quebrado! Não funciona!”. Eu, impassível: “Estava funcionando até o senhor chegar. Por favor, não quebre o patrimônio público e preste atenção no que está fazendo”. Minha paciência já tinha ido para o ralo àquela altura. Ele queria votar na legenda para senador em um partido que não tinha candidato a senador. Ia morrer ali, apertando o verde sem sucesso. E não conseguimos convencê-lo de que ele estava errado. Quando já estava cansado de tentar sair daquela tela, esbravejou: “qual o número daquele senador lá?”. “Qual, senhor?”, respondemos. “Aquele lá que rouba, vou votar no que rouba mesmo!” Admirados, perguntamos: “Seja mais específico, senhor. Qual deles?”. “O famoso, que rouba. Voto e acabou, se ele rouba, isso não é problema meu!”

Fui almoçar já esgotada mentalmente por ver tanto descaso. Cheguei em casa, não havia almoço e eu não tinha tempo de fazer. Peguei o carro e fui ao shopping perto de casa. Lotado. Filas e filas para almoçar. Servi-me correndo; a moça do restaurante, vendo minha identificação de mesária na blusa, me passou na frente do restante da fila. Não encontrei lugar para sentar. Um casal estava saindo da mesa que ocupava. Eu, já com a bandeja na mão, esperava que eles saíssem. Quando eu estava prestes a me sentar, um japonês que agregava tudo o que de mais abominável um cidadão pode ter, começou a gritar que aquela mesa era dele, que ele estava esperando há mais tempo, que estava com criança, será que eu não via isso?! A criança corria pela praça de alimentação. Sinceramente, eu nem sabia qual era o filho dele. Argumentei que já havia me servido, que minha comida estava esfriando, que ele nem havia decidido o que comer ainda e que estava querendo guardar mesa, que não estava ali quando eu cheguei e que, ainda por cima, eu estava em horário de almoço porque estava trabalhando de graça na eleição e precisava voltar para a 109. “Isso não é problema meu”, ele disse.

Deixei ele com a mesa. Os fracos precisam sentar. Eu podia comer de pé. Meu desejo era fazer igual às novelas, despejando meu copo de suco na cara daquele infeliz. Mas sou muito civilizada para isso. Uma amiga minha que eu não via havia anos chamou-me para sentar com ela. Foi minha salvação, porque a raiva já estava me fazendo perder o apetite.

Ao voltar para a 109, continuei constatando descasos. Mas, como em tudo, há exceções. Dona Conceição Hernandez, de 81 anos, vem votar lúcida, arrumada, unhas feitas e cabelo caprichosamente tingido. Deixou cair o comprovante de votação na saída, que está comigo, para que eu entregue a ela no 2.º turno. Eu sei que ela volta.

O Sr. Celso, que nas duas últimas eleições incluindo o referendo não veio votar porque, segundo o filho homônimo que também vota lá, estava desiludido com a política, apareceu à tarde, andando devagar. Demorou a conseguir votar usando todos aqueles números. Quando comentei: “Puxa, senhor Celso, desta vez o senhor apareceu, que bom!”, ele limitou-se a responder: “Vamos desempoleirar essa gente”. E foi embora.

A seção 109, com as paredes azuis salpicadas de flores de papel, recebeu três bêbados patéticos recendendo cachaça. Na eleição a prefeito, quando impedi que um deles votasse por causa da Lei Seca, voltaram escoltados por policiais, que me repreenderam dizendo “ser direito deles votar”. Dessa vez, só faltou colocar tapete vermelho para que eles achassem a urna. Cambaleantes, saíram de trás da urna várias vezes sem ter concluído a votação. “Psiuuuuuuu! Psiuuuuuuuuuuu! Vem aqui, ó”. Não fui. O cara ia votar errado de qualquer forma, não havia nada que eu pudesse fazer.

É triste presenciar um país assim: quem tem instrução não tem educação. Embora mais humano, quem não teve educação não tem instrução para se fazer cidadão e exercer sua democracia. E eu estava em apenas um pedacinho daquele mapa colocado na parede junto à dupla sertaneja sorridente no relógio.

A seção 109 não podia funcionar em lugar mais propício: seus eleitores, como os de muitas e muitas outras seções espalhadas pelo País, parecem viver num mundo de faz-de-conta cheio de flores tortas de papel, encantado e irreal, onde nada é problema deles.

É por isso que cada país tem o governo que merece.


09 outubro 2006

Última chamada

Você deixa interrogações caírem dos bolsos
quando segue para a estação ziguezagueando sumiço.

Eu vou atrás para recolher a sombra
enquanto junto as dúvidas
remendando
conformação.

Você pára.
Eu continuo.

Você pega o trem.
Eu parto.

Em dois

29 setembro 2006

Coisa de pele...


Os dois estavam naquela fúria de hormônios. Resolveram juntá-los numa boa transa. Era roupa voando pra todo lado, os dois tropeçando nos móveis, derrubando objetos, rindo e beijando ao mesmo tempo. Mas, quando ela tirou a camisa dele, tudo parou.
— Pára, pára, pára tudo!
— Que é que foi? Fiz alguma coisa errada?
— Quem é ela?
— Quê?!
— Vai falando agora, seu sem-vergonha, salafrário, galinha!
Ele olha para os lados pra se certificar de que a conversa é com ele mesmo.
— Me explica o que tá acontecendo porque não tô entendendo nada!
— Muito conveniente, né, Paulo?!
— Ai, mulher tem cada coisa! Me explica, que ela é essa aí?
— Eu é que pergunto quem é essa piranha aí...
Ele olha para baixo e acaricia o lado esquerdo do peito.
— É a minha mãe...
— Ah, tá de sacanagem comigo, né?
— Bom, eu tava tentando, né, mas você mandou parar tudo e...
— Fala a verdade!
— Olha, Lucilene, eu sou muito tolerante, sabia? Você chamou a minha mãe de piranha, o que já é motivo de sobra pra eu te deixar falando sozinha, mas tô aqui, na maior boa vontade, e põe vontade nisso — suspira, olhando pra cima —, pra tentar fazer você entender que essa é a minha mãe...
— Assim bonitona, por acaso? Ah, conta outra!
— É, assim bonitona sim, senhora. Achava o quê? Que eu ia tatuar o rosto da minha mãe no peito com ela cheia de ruga e acabada?
— Mas tatuar a mãe?! Não dá para acreditar! Homem que é homem tatua uma coisa mais máscula, tipo um dragão, um tribal, cavalo, vulcão, uma águia, sei lá... ou um negócio mais pra natureza, sabe, como um tubarão, golfinhos ou uma anaconda se fosse o caso... até um beija-flor ficaria melhor que a sua mãe!
— Beija-flor, não, peralá! Beija-flor é coisa de viado, porque é tatuagem de mulher. Tatuei minha mãe porque ela me criou sozinha, tá sabendo, sozinha! Mora aqui, ó, no meu coração — vai batendo a mão no peito enquanto fala — e ninguém nesta terra vai conseguir tirá-la daqui!
— É, só cirurgião plástico, né, meu bem? Tudo certo, sua primeira justificativa foi péssima. Qual é o plano B?
— Que plano B? É a minha mãe, sim! Você tá achando o quê? Que eu tatuei o rosto de alguma ex minha? Tá louca? Acha que eu ia colocar uma qualquer aqui no meu peito, é?
— Ah, isso quer dizer que você me considera uma qualquer? Não me tatuaria, então?
— Lá vem você torcendo tudo! A gente nem tá falando disso!
— Homem é assim, ou é galinha ou tem complexo de Édipo!
— Quem é esse cara, Lucilene?! Hein? Te peguei, né? Você tá saindo com esse tal de Édipo há quanto tempo?
— Cala a boca, Paulo! Que ignorância! Édipo é — ia explicar o mito mas viu a oportunidade de se vingar daquela afronta — é o seu vizinho do décimo primeiro, é isso!
— Lucile-nê..., escuta, você não sabe mentir, a cobertura tá vaga faz tempo, ó... — começa a estalar os dedos. — sinal de que nem conhece Édipo nenhum, boba...
— Ah, Paulo, vá se catar, vai!
— Com Édipo ou sem Édipo, eu já disse que essa aqui no meu peito, linda e maravilhosa, é a minha mãe...
— E você acha que dá pra gente transar com essa, quero dizer, com a sua mãe assim, aí parada... Eu não curto relação a três, você sabe... Eu não consigo, Paulo!
— Ai, Lucilene, esquece isso. Olha, eu apago a luz, que tal, hein? — começa as preliminares novamente...
Não demora muito pra ser interrompido por um...
— Pára, pára, pára tudo!
— Haja saco, viu?! Que foi agora?!
— Não dá, Paulo. Mesmo no escuro eu sinto que ela fica me encarando... literalmente, né, porque você tatuou uma cara enorme bem em cima do seu coração. Isso me dá mil grilos na cabeça, sabe como é...
— É, sei. Isso aí nem mais é grilo, é um bando de gafanhotos mesmo... já deve estar pensando no dia em que casar comigo e minha mãe vier morar com a gente e...
— Ela vai vir?! — arregala o olho, nervosa e espantada.
— Eu tô dando exemplo, Lucilene, exemplo! Caramba, meu! Nem tô falando em casamento!
— Não tá?! — o olho fica ainda mais arregalado e ela, mais espantada.
Silêncio. Ele não sabe o que responder. Ela fica esperando ele se habilitar. A mãe ali, olhando tudo, com ar reprovador como quem cruza os braços e bate um dos pezinhos no chão repetidamente.
— Olha, Paulo, quer saber? Vai resolver o problema da sua carência materna com um psicólogo, viu? E, conselho de amiga, tá legal, apesar de você não merecer. Vou salvar seu futuro amoroso: na próxima transa que você conseguir, mesmo com a sua cantada incompetente, não tira a camisa nem por decreto, tá sabendo, nem por decreto! E passe bem!

Ele fica sem entender nada. Demora a tomar uma atitude. Se enrola no lençol e sai correndo pelo corredor, mas não consegue alcançá-la. A porta do elevador já havia fechado. Corre para a escada, prende o lençol na porta, continua correndo mesmo assim, a Lucilene é importante, é legal, ela vai entender uma hora. Lucilene, volta aqui, você também tem mãe! Desce os lances apressado e, ofegante, chega ao térreo. Sai pelado atrás da Lucilene, que a essa altura já vai longe na calçada pisando duro de birra. O portão do edifício trancou. Ainda no saguão, Paulo esbarra num morador que vem vindo carregando uns pacotes de supermercado. Fica novamente sem ação e, agora, também sem roupa. Precisa salvar a pele.
— É, oi, você é novo aqui? Não estranha, não, é que eu sou calorento, sabe... e tô.. tava... numa emergência. Ah, muito prazer — tira a mão que cobria a bunda e estende para cumprimentar. O outro declina o cumprimento; providencialmente, está com as mãos ocupadas. — Sou o Paulo, do nono.
— Ah, prazer, Paulo. Meu nome é Édipo, do décimo primeiro.



Saiba mais: Édipo, em grego, significa “pés inchados”, nome dado, na Mitologia Grega, ao filho de Laio, rei de Tebas, que, tendo sido advertido pelo Oráculo de Delfos de que um de seus filhos o mataria, abandonou a criança. Por ter sido encontrado, com os pés inchados, por pastores, Édipo recebeu esse nome. Como estava predestinado a matar o pai, fê-lo sem saber do parentesco. Édipo foi o único a conseguir decifrar o enigma da Esfinge e, por esse feito, recebeu o trono de Tebas e a mão de Jocasta, sua própria mãe, por quem se apaixonou sem saber que cometia incesto. Dessa união nasceram quatro filhos: Etéocles, Polinice, Antígona e Ismena, todos com destinos trágicos. Quando Édipo soube que havia matado o rei de Tebas e que se tratava de seu próprio pai, vazou os próprios olhos e foi expulso da cidade. Jocasta, envergonhada, enforcou-se. Depois de uma vida errante e de recusar-se a voltar a Tebas a pedido dos filhos, Édipo morreu em Colona, povoado de Atenas. Um oráculo previra que a cidade que tivesse o túmulo de Édipo seria eternamente protegida pelos deuses. Por isso é que os atenienses sempre venceram os tebanos. A Psicanálise baseia-se em vários mitos para explicar comportamentos humanos. O complexo de Édipo é um deles, tendo sido desenvolvido por Freud, segundo o qual trata-se do “conjunto mais ou menos organizado de reações afetivas, tanto amorosas quanto hostis, que uma criança sente em relação aos pais; desejo de relações sexuais que o filho sente pela mãe”. Popularmente, é a “disposição mental e comportamental inconsciente tida como procedente de uma ligação excessiva à mãe e por sentimentos de ciúme com relação ao pai”.


Fontes de consulta:
Houaiss eletrônico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. versão 1.05a
Dicionário de mitologia greco-romana. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1976.

23 setembro 2006

Sol das almas

Eu adoro o Sol, não só por eu ter um signo solar e ser regida por essa estrela, mas também pelo fato de ele exercer um certo fascínio em mim.

Os dias nublados, para mim, além de me cegarem por causa dos meus olhos claros, banham-me de uma melancolia arrastante. Aquele branco todo dominando o céu, como se todo o azul tivesse entrado atrás de alguma nuvem numa brincadeira insensata de esconde-esconde, denota ausência. De energia, de alegria, de vida, numa monocromia nada original.

Com Sol, não. Ele muda o humor, a disposição, e monta cenários dignos de serem imortalizados pela fotografia: está sempre lá, marcando ponto nos cartões-postais. Ele é tão fantástico que, apesar de evidente no céu ofuscando o mundo, discretamente vai colorindo tudo em tons difíceis de serem copiados.

Mas, durante a semana, só posso contemplá-lo ou na minha hora do almoço, quando caminho, ou da minha sala, onde trabalho, que tem duas janelas. Uma eu tive de tampar com papel branco para filtrar um pouco a incidência da claridade, que me atrapalha muito, mesmo com a persiana fechada, pois meu computador fica bem na frente dela e eu preciso ler muito nele diariamente. A outra, não. Todos os dias, quando chego pela manhã, a primeira coisa que faço é abrir a cortina dessa. Há dias em que paro para admirar o céu cor-de-rosa, meio lilás e alaranjado, numa aquarela divina típica de final de tarde. É esse o que chamam de “sol das almas”: um sol que não aquece, geralmente tímido, depois de um pouco de chuva.

Isso sempre me lembra que, como dependemos da luz solar para viver, é natural que alguns de nós tenhamos dias de sol das almas, quando ressurgimos timidamente brilhantes depois de termos chovido intensos, quer por não sermos contemplados ou sermos apenas admirados tão-somente como cartões-postais, quer por não conseguirmos ser de fato o sol de alguém apesar de esforços interplanetários, num desconforto incômodo e enclausurado que não aquece o coração, mas que, mesmo assim, espalha tons únicos de um não-sei-quê de beleza.

Chego à conclusão de que somos iluminados, de fato, porque poucos são os que têm coragem de olhar para o Sol e deixar-se chover. A maioria fecha os olhos.



Trilha sonora para este texto: Palavras de um futuro bom, de JotaQuest.
Legenda da imagem: pôr-do-sol visto do Forte de São Marcelo, em Salvador.


15 setembro 2006

Ou oito ou oitenta!

Quebrando um pouco o estilo dos textos que tenho postado aqui, e embora muitos deles reflitam a minha personalidade e dêem indícios da minha natureza, fui desafiada a colocar aqui oito coisas sobre mim. Oito, apesar de curiosamente representar o infinito na numerologia (o formato do número 8 não tem começo nem fim), é bastante limitado para essa tarefa. Preferia que fosse oitenta. Mas trata-se de uma corrente entre blogueiros. Quem me intimou foi meu mentor de blog, o Jedi Tuca, no Fiapo de Jaca, o blog dele. Como sou uma discípula esforçada (e também para dar uma descontraída em meio a tanto texto literário), fiz a lição de casa:

1 - eu livro tudo

Tenho uma relação atávica com os livros. Vício, consumismo, fascinação, não sei. O fato é que sou louca por eles. Pena não serem comestíveis, apesar de eu os devorar. Tenho exemplares que ainda não li, mas, se eu for a uma livraria, compro mais. Passo horas em uma, num sebo ou em bibliotecas. Meus olhos brilham e minha boca saliva só de pensar em tudo que tenho pela frente para ler. Adoro ganhar livros de presente: novo, velho, amarelo, não importa. E, quando os leio, tenho mania de grifar algumas partes a lápis, como se amarrasse as palavras à página, para que elas não fujam.

2 - abre o olho!

Meu relógio biológico cisma em brigar com o despertador toda santa manhã. Enquanto eles duelam, eu sonho. Não nasci para acordar cedo, sou lenta demais de manhã, meu raciocínio não funciona com o cantar do galo (eta bicho mais inconveniente, não?), sou pouco producente até as 9 da manhã e dou meu reino pelo meu travesseiro, meu edredom fofo e a oportunidade de dormir como se deve. Tudo porque nasci num domingo, às vinte para as dez da manhã.

3 - ritual matinal

Nunca saio de casa sem comer, ainda que esteja atrasada. De estômago vazio eu não raciocino mesmo. E me recuso a comer correndo. Aos domingos o ritual demora mais, porque leio o jornal inteiro enquanto como. Todos os dias, tomo café-da-manhã de pijama; uso xícara com pires, embora não tenha nada contra copo ou caneca; como pão puro, que corto em rodelinhas sob o olhar interrogativo do meu pai, e invariavelmente abraço um dos joelhos em cima do assento da cadeira enquanto penso na vida e tomo café. Com leite. “Isso é jeito de sentar?”, meu pai diz para mim, com freqüência, há 31 anos. Ele não aprende... nem eu.

4 - assobio

Falando no meu pai, isso é mania que herdei dele. Minha mãe vive pedindo pra eu parar, porque acha irritante. Mas eu assobio sem perceber, em qualquer lugar. Vira e mexe me pego assobiando pela editora, quando preciso ir a algum outro departamento. E quase sempre esbarro em olhares arregalados, como se eu tivesse tocando trombeta em praça pública para anunciar algum enforcamento. Mas sou frustradíssima por não saber dar aqueles assobios superaltos, com a língua dobrada ou dois dedos nos lábios, para chamar alguém que está do outro lado do mundo...

5 - pingüins na Terra como no céu

Tanto bicho na face da Terra e eu fui escolher justamente esse: o pingüim. Gosto do animal vivo mesmo, queria até ter um em casa, mas nasci num país tropical, fazer o quê? Um dos meus sonhos é ficar no meio de uma colônia de pingüins, de preferência imperadores. Nessa foto aí em cima, no aniversário do meu irmão, eu segurava um balão em forma de pato, mas me lembro perfeitamente: pra mim, aquele dia, aquilo era um pingüim. Quando eu tinha 6 anos, fui dormir na casa da minha avó e pedi para voltar para casa às 6 da manhã porque cismei que havia um pingüim gigante na janela. Isso talvez explique um pouco da minha loucura...

6 - derivados de leite, substantivo comum e concreto

Não é questão de gosto; eu não suporto nada que seja derivado de leite consumido puro. Descobriram o segredo da minha magreza? Não como queijo, leite condensado, ricota, requeijão, margarina, manteiga, leite, iogurte, yakult, creme de leite... É sentir o gosto dessas coisas que meu estômago vira um globo da morte. E com dez motocicletas dentro.

7 - vai caçar palavras, vai!

Sou boa em palavras cruzadas, mas caça-palavras me irrita, e não é porque eu não encontre as benditas. Eu encontro, mas acho um passatempo muito do chato, talvez porque não me faça pensar. E eu adoro pensar, mas em letras. Aquele sudoku é outra coisa que me tira do sério, porque eu sou uma negação com números!

8 - fazendo média...

Deve ser algum resquício de outra encarnação, sei lá, mas eu adoro tudo o que se refere à Idade Média: escrevo com pena, tenho lacre de cera para fechar minhas cartas, gosto de roupas dessa época, de histórias de cavalaria, sou fã de carteirinha do Rei Artur, adoro castelos, luz de velas, ponte levadiça (não faltou “e”, não, é “levadiça” mesmo...), cavalos, pergaminho, reis e rainhas. E se esse período se passar na França ou na Inglaterra, melhor ainda.

E você, o que tem de infinito para numerar até 8?

Pessoas que já fizeram a lição de casa: Gláucia, Ricardo



Tiro e queda

Ele estava desiludido. Razão e sentimento estavam em guerra, mas isso não era motivo bastante para abalar o coração da amada.

Naquela tarde especificamente, houve um cessar-fogo: o mundo daquele rapaz despencou e saiu rolando universo afora. E tudo ficou morto, sem graça, preto-e-branco, mudo e raso, desfocado, embaçado, sem rumo e espalhado, à-toa, chato. Lutara tanto para que aquela paixão fosse correspondida! Ele estivera em uma guerra! Será que ela não via isso?

Poderia acionar um canhão, armar catapultas de desespero, reunir um exército de emoções e muita munição cardíaca. Mas a razão prevalecera. Mais forte, bem equipada, contando com soldados de argumentos repletos de escudos nem sequer arranhados pelas flechas do Cupido.

Chegara à conclusão de que era melhor dar uma trégua. Aquele rebuliço todo não levava mais a nada. Enquanto pensamentos e palpitações guerreavam, outra nação tomou-lhe a amada. E, por um momento eterno, ele ficou ali, aos farrapos, vendo tremular, desolado, a bandeira silenciosa da decepção.

É preciso ser bravo. É preciso ser forte para resistir à dor que a chaga que toda essa guerra causa. É preciso ser destemido para ver todo o sangue fervendo de raiva.

Ele não sabe se haverá salvação, se o socorro chegará a tempo ou se todas as ataduras do mundo poderão cobrir aquela vastidão de tristeza. Mas, lá no fundo, sabe que vai resistir, porque se reconhece bravo e forte, teimoso e convicto, corajoso e capaz de ouvir o brado de toda uma cavalaria de esperança que galopa dentro de si.

É quando decide entrar de vez para a carreira militar e enfrentar muitas outras guerras. Vida digna de um herói romântico.


09 setembro 2006

Gritaria


Os cabelos encaracolados dela caindo suavemente sobre os ombros não foram suficientes para fazê-lo se apaixonar. Nem o olhar que ela lançava carregado de significados, o perfume que vinha naturalmente dos pensamentos que se dispersavam ou as palavras acolhidas com boa vontade.

Ela suspirava violoncelos, mas pisava manso para não assustá-lo. Se ela soubesse que, por dentro, mais tarde, ouviria um estardalhaço confuso de sensações inexplicáveis, teria feito mais barulho.

Mas também não adiantou falar baixo, olhar quieto ou sussurrar sinceridades. Ele não queria ouvir esse tipo de coisa; decerto preferia algo mais clichê, para que não fosse constantemente surpreendido com dizeres originais que o deixassem sem fala ou exausto de raciocínio. É tão mais fácil lidar com o convencional; ela se esquecera desse detalhe.

Isso deve tê-lo intimidado mais do que qualquer ruído repentino e sem querer. Talvez fosse melhor uma farsa, um padrão, o óbvio; um sorriso dissimulado, gestos premeditados, o comum. Desvendar leva tempo, algo que, aparentemente, ele não estava habituado a ter.

A ela restava acostumar-se ao surpreendente, mas isso ela não sabia, embora fosse diariamente tomada por constantes surpresas: pensamentos que até então não tinha, sensações com as quais ainda não sabia lidar.

Mesmo assim, convicta, continuou pisando manso e saiu. Lá no fundo, porém, queria, sim, acordá-lo. Pena ele não ouvir o barulho intenso e ensurdecedor que tudo dentro dela fazia.

Foi embora resignada, esperançosa de que um dia ele ouvisse, ainda que por um momento, toda aquela gritaria.

Legenda da imagem: Excerto de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Exposto no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.



03 setembro 2006

Para acabar com a sua raça...

O barulho ensurdecedor e contínuo do helicóptero negro daquele famoso plano de saúde era freqüente àquela hora para os pacientes do oitavo andar. Todos os intermináveis dias registravam aquele som. Porém, naquele específico, o som seria diferente: a máquina voadora viria buscar um rim especial, doado por um empresário que se propusera a ajudar o próximo. Estava ali porque fora se submeter a uma pequena intervenção cirúrgica para a retirada de um cinturão de gordura proveniente de anos de ócio, praticados ao assistir aos outros trabalharem por e para ele, num negócio escuso que herdara do pai.

Ali, naquele edifício gelado e transparente, resolvera ser útil à humanidade e, em meio a uma grave crise existencial, decidira doar um de seus rins, pois, segundo seu médico, não lhe faria falta. No entanto, contaminado por valores distorcidos, permitiu-se fazer uma única exigência, afinal, seria uma separação dolorosa: vivera cinqüenta e sete anos em companhia de seu rim, um dos poucos que o aturava, além de seu cachorro e de sua empregada, pois sua ex-esposa já vivia a anos-luz de distância, junto com os filhos, os quadros, as jóias e outras tantas boas companhias proporcionadas por gordas contas bancárias.

— Meu rim só irá para um branco.
— Óbvio que vai para um banco, senhor. Há milhares de pessoas esperando na fila — retrucou a enfermeira, mediante uma compreensão equivocada.
— Eu disse branco, mocinha. Só doarei meu rim se tiver a certeza de que o receptor é branco.

Diante de tais fatos e da insuficiência de órgãos destinados a transplantes, a vontade do paciente foi acatada.
No entanto, quando o médico fez o corte para a retirada do órgão, ficou espantado! Nunca vira nada parecido: o rim era verde, um musgo viscoso, feijão imaturo.
Foi retirado, encaminhado, carimbado, analisado, embalado e transportado pela burocracia a seu destinatário: o receptor alvo agonizava na hemodiálise havia anos.

— O senhor terá o privilégio de receber um rim especial, verde, doado por um dos maiores empresários do país — informou o médico.
— O senhor quer dizer espacial, né, doutor? Verde?! Negativo! Vai saber o que o sujeito comia! Acha que vou receber um rim embolorado?! Pois fico na hemodiálise!

As tentativas para que fosse achado a tempo um receptor para aquele filtro verde foram muitas. Nenhum branco que se prezasse queria receber um rim verde. Todos desconfiavam; hoje em dia, qualidade é requisito básico para qualquer transação.

Quando finalmente a questão parecia resolvida, o paciente apresentou rejeição: seu corpo branco, já pálido, desejava expelir aquele intruso colorido.

o-o-o-o-o

No pós-operatório, o médico achou por bem dar uma satisfação ao burocrata renal:
— Senhor, sinto informar que seu rim foi rejeitado.
— Como assim, rejeitado?! Era um rim de classe, da realeza, coisa importante!
— Se fosse real, seria azul, mas era verde e, por isso, quase ninguém o quis.
— Arrá, você disse “quase”. Isso quer dizer que algum branco foi salvo com ele...
— Eu diria que quase morreu por causa dele, pois, como lhe disse, houve rejeição.
— E?
— E agora seu rim está na última prateleira do laboratório de uma escola pública da periferia, dentro de um vidro de formol, o que provocou uma ligeira alteração de cor...
— Ficou branco!
— Não, preto.


28 agosto 2006

Axé, meu rei!

Para Pablo e Helen, que me mostraram a Bahia com o coração mineiro.


“Queria ter nascido baiana, nesta terra privilegiada e colorida, onde rir é mais natural que o coco que dá nas árvores”, eu pensava, enquanto visitava um dos pontos turísticos mais famosos de Salvador, onde Jesus vira Nosso Senhor do Bonfim, da boa morte, do bom final.

Marta queria ter voltado para Porto Alegre. Pensava nisso, sentada num dos bancos da Igreja, quando olhou para mim. “Você é gaúcha?”, ela perguntou, olhos brilhantes pela familiaridade com a brancura da minha pele num lugar onde isso não é tão comum. “Não, sou paulista.” “Pois faça três desejos nesta Igreja e depois reze ali, na Nossa Senhora da Boa Morte, que é pra ela te dá a graça de morrer sem sofrimento.” Rezei. Deveria ter rezado ainda mais, pedindo perdão por tudo o que foi feito com os escravos naquele pedaço de chão. Aquilo sim foi sofrimento... pude constatar depois por tudo o que visitei na primeira capital do Brasil.

O mesmo Nosso Senhor do Bonfim, para mostrar que a escravidão é relativa, colocou seu Odilson bem na minha frente, vendendo coco a um real. “Preciso reclamá com o fabricante desse carrinho, porque ele não gela o coco. Tenho que acordá mais cedo pra tirá os coco da geladera e pô aqui. Sabe, eu vô te dizê uma coisa: o povo aqui é pobre porque a televisão ilude muito, num sabe?”. (Pois eu não sei? Sempre achei que aquela escadaria do Bonfim fosse uma enormidade de grande e era aquilo?! Que decepção!) Seu Odilson falava escancarado ainda que sem a maior parte dos dentes na boca. Vestia roupa esfarrapada, mas estava coberto de razão. Ali, na frente da meia dúzia de degraus da Igreja do Bonfim, ele lavava era a alma, ao contrário de mim, que tomei banho de MPB na praia de Itapuã e na Baixa do Sapateiro.

Todo mundo ali sorri até quando reclama da vida. Eles se revestem de uma conformidade consoladora que espalha uma energia estranha no vento. A gente sente o aroma da vida, a fé derrubando tudo, porque lá as fronteiras entre as religiões não existem. Importa o que carregamos dentro da gente... “Vá com Deus”, eles dizem. “A senhora fique com ele”, respondi.

“Fitinha do Bonfim, presente da Bahia”, achegou-se um ambulante. “Não, obrigada... Ô moço, você sabe todos os orixás de cor?”, eu e minhas perguntas esquisitas! “São deiz. Te faço uma lista, qué?” Eu até queria, mas ele ia cobrar, aquela coisa da falta de emprego e da televisão que ilude todo mundo. (Confesso que não entendo de orixás e preciso de uma tabela de conversão para saber quem é quem, mais ou menos como aquela de equivalência entre os deuses gregos e romanos. Nomes diferentes para a mesma divindade; mais uma prova de que o substantivo próprio pouco importa.)

Eu estava com amigos: Leo, que viajou comigo, e Pablo e Helen, um casal mineiro que nos recebeu de coração aberto. “Queria ter nascido mineira, pra ser assim tão legal”, eu pensei num certo momento. Eles falam manso, mas numa mansidão diferente da baiana. Pablo já mistura os sotaques. Daqui a quinze dias, mudam-se para a Espanha, onde Helen vai fazer doutorado em Nutrição. Serão quatro anos longe do Brasil, de Minas, da Bahia...

“O importante é você conversá cum gente importante, purque assim você fica importante também”, disse seu Edvon, 71 anos, que nasceu com outro nome mas mesmo assim tornou-se artista. Deixou uma promissora carreira em Milão porque, ao contrário de Helen, tem medo de avião. Anda com seu portfólio debaixo do braço, fazendo graça para quem olha pra ele. Helen olhava a cidade lá de cima, talvez pensando na Espanha, talvez pensando na vida, no que vai deixar, no que vai ser... “Tá tão lonelí essa minina!”, seu Edvon tentou falar inglês. Lonely estamos nós em São Paulo, eu quase respondi. “E você, aí, tão grisonê, hein?”, virou-se pro Leo. Perspicaz daquele jeito, foi fácil notar nossa cara de interrogação. “Num estudô franceis, não, minina?”, perguntou pra mim. Eu bem que queria, até tentei, mas nunca cheguei nessa parte do grisonner.

Um homem de 71 anos tirando um sarro daqueles de nós quatro! Pudera! Tirou até foto com a Vanusa numa época aí de óculos enormes. Era bonitão o homem. “O senhor acha que a vida melhorou?”, arrisquei a pergunta. “Mais é claro! Antigamente as minina ficavam viúva e tinham que ficá com roupa preta pra sempre. Agora, não. Ninguém mais fala nada. Casa de novo e tá tudo certo!”. Esse ria com todos os dentes da boca, que o ajudavam a imitar madame falando ao telefone, mestre-de-cerimônias apresentando o prêmio que ele ganhou pelo melhor desenho. “Vô te contá um fenômeno: pois compre um cântaro na Grécia quando você for pra lá pra pudê chorá todas as lágrimas de arrependimento por não tê comprado uma gravura minha. Depois que eu morrê vou virar um Van Gogui, um Matisse...” e ria. Definitivamente, “cântaro” e “fenômeno” não são palavras que passeiam na boca do povo, pelo menos não na daqueles com poucos dentes nela.

Quando, já tendo chegado em São Paulo, encostei minha cabeça no travesseiro, rezei de novo, mesmo não estando mais no Bonfim. Agradeci tudo, o fim de semana, o fim do tipo mais cruel de escravidão, o relativo progresso da humanidade, o coco do seu Odilson, o talento do seu Edivon, a saudade da dona Marta, o Sol que substituiu a chuva, meus ombros vermelhos por causa da mudança de tempo, a boa vontade mineira em terra baiana, a amizade do Leo, meu trabalho que paga uma extravagância como uma viagem dessas...

Mas o mais importante de tudo eu deixei para quando a gente se emociona mais: agradeci veementemente meu privilégio em ter nascido... brasileira.



P.S.: "Axé" significa, segundo o Houaiss, "a força sagrada de cada orixá, que se revigora, no candomblé, com as oferendas dos fiéis e os sacrifícios rituais"; como interjeição é "saudação votiva de felicidade", "expressão equivalente a 'assim seja' ou 'tomara'", "expressão de concordância, aprovação; está bem".

Legenda da imagem: Vista da orla de Salvador da parte de cima do Elevador Lacerda.