12 outubro 2008

Vivência

Um homem que não conheço olhou para mim e me deu boa-noite de um jeito gratuito, mas sincero. Eu respondi sorrindo, porque hoje em dia raros são aqueles que nos dão boa-noite, ainda mais se não nos conhecem. É que ficou tudo impessoal de uns tempos para cá, sobretudo nas grandes cidades, onde ser anônimo é tão comum.

Num primeiro momento, achei que talvez a educação daquele homem tivesse aflorado da solidariedade: eu estava sozinha, num banco duro de cimento, tomando um café amargo, em um velório, numa noite fria e chuvosa — a natureza sabe mesmo combinar com a morte.

Mal sabia o homem que eu estava totalmente deslocada da cena, sem vínculo emocional nenhum com aquelas pessoas, apenas simpática à dor da perda. O morto era um amigo da minha mãe, a qual fui levar ao tal velório. Na verdade, era irmão de um amigo de escola da minha mãe, dos idos de nem sei quando. Depois fiquei sabendo que, ironicamente, um dia antes de perder o irmão, esse amigo de escola da minha mãe havia ganhado um neto.

O morto era um homem que dizia boa-noite. Mandava à minha mãe mensagens bonitas via e-mail, com um jeito invejável de acreditar na vida, mesmo submetendo-se à hemodiálise três vezes por semana. No dia seguinte ao velório, teria completado 60 anos. Por ironia do destino, porém, resolvera dar uma festa dois dias antes, para reunir a família, rever os amigos do trabalho, da faculdade, da infância, e fazer uma retrospectiva para guardar na mente os momentos bons, como se já não fossem suficientemente inesquecíveis.

Depois de agradecer a cada pessoa presente, expressando também o amor que sentia pela família, deu boa-noite a todos e foi para casa morrer. Pareceu saber a hora em que o coração ia parar. Entretanto, mesmo com essa noção, quando alguém morre sempre tira os vivos do contexto.

Então, quando, parada ali, totalmente fora do contexto, ouvi aquele cumprimento do homem desconhecido, sendo eu uma desconhecida para ele e o morto um desconhecido para mim, senti intensamente a ironia que é viver e me dei conta de que, na hora da morte, somos todos iguais inertes. O que nos torna memoráveis é saber dizer boa-noite, sinceramente e sem distinção de destinatário.

Praia de Boiçucanga - litoral norte de SP