17 abril 2008

Volta e meia

Para Cleu Sampaio, pela idéia e pelas folias de donzela

Pall Mall - Londres

É uma pessoa que só vai. Para cima e para baixo, como libélula que sempre procura água. Tem mesmo sede de conhecimento, porque carrega curiosidade em sacolas feitas de retalhos coloridos, como se a vida fosse assim, um punhado de remendos que se leva para lá e para cá. Para ela, as agulhas existem para costurar desafios, e as linhas dos mapas são todas imaginárias. Essa mulher vai sempre além.

Cheia de vida, é alguém de carimbos no passaporte, souvenirs na memória e passagens aéreas pelos lugares que visita, para quem "além" ultrapassa o mais para lá: significa o que os olhos não alcançam, a vastidão redonda que clama por ser conhecida. Por isso vai em frente, porque atrás vem mais, e sempre um mais que atropela. Não há tempo de sentir dor nem saudade; é preciso força para carregar a bagagem.

É uma mulher que não volta, porque não tem medo do que ainda não aconteceu. Vai sem data para retorno, sem planos, com sonhos e um espírito escancarado pronto para banhos diários de lavanda, cheirando a novidades que ainda virão no vento, enquanto o suor seca no varal.

Não carrega a casa nas costas nem peso no coração. Não arrasta culpa nem os pés, porque pisa firme e planta o apego na terra em vez de levá-lo nos bolsos do casaco florido.

Essa mulher vai longe, projetando coragem à frente, puxando a sombra atrás, sem chorar. Isso fazem os regadores. Porque ela, ela volta e meia pode ir sem voltar. Ela vive. O lugar.


09 abril 2008

Anjos

Ilha da Crôa - AL


Para um Querubim

Espíritos independentes não estão acostumados a receber ajuda. Às vezes porque foram habituados a ser assim; às vezes porque estão sempre ilhados em suas próprias convicções, ou, ainda, porque se cansaram de se decepcionar com as pessoas. Esperar dos outros nem sempre é um costume sadio.

Mas há comportamentos que desarmam. Eles vêm envoltos em tanta espontaneidade que o ineditismo espanta, cala as desconfianças, apazigua a resistência. (Você está vendo? Há estrelas no céu!)

E essas tímidas aberturas que a vida proporciona ensinam que poder contar com alguém é ter o travesseiro preferido sempre à mão, envolvendo-se naquela sensação morna de aconchego para respirar quieto um monte de tranqüilidade. É sentir-se em casa mesmo estando no Chile, no Amazonas ou perdido em alguma rua estranha de cidades grandes demais. É uma noite de sono profundo sem interrupções em um lençol limpinho e todo branco.

São promessas que sempre serão cumpridas, gritos que nunca serão dados, escolhas que não precisarão ser feitas. (Alívio.) É ficar à vontade para errar quantas vezes forem necessárias, sem culpa ou temor de repreensão, porque saber que há alguém com quem contar é ver um guarda-chuva em cada abraço, é sentir sossego com cheiro de camomila, santo remédio para tirar qualquer frio na barriga.

Confiar é terceirizar a razão, adoção sem perguntas. (Olhe para as estrelas. Elas estão lá ainda que não as veja.) É mesmo debruçar-se no desconhecido, deixando-se desequilibrar se preciso for, com um espírito aventureiro esparramado no que a gente não tem, mas que sabe que está lá, sempre, como chão firme sob os pés. (Não precisa mais olhar para baixo.)

Pessoas assim, sempre de braços abertos para amortecer passos em falso, que envolvem feito cobertor sem que seja preciso dizer que se está com frio, são alguens com quem contar. E pode ser tudo em silêncio, porque elas lêem a alma. São incondicionais, não têm relógio ou compromisso inadiável, melindres ou complexos, apenas uma compreensão almofadada disfarçada em um olhar que tudo diz.

E, para ter com quem contar, tudo o que é preciso fazer é olhar para cima (as estrelas existem) e parar de pensar sozinho.