26 junho 2006

Memória fotográfica


Quando eu era pequena, meu avô materno me levava, junto com minhas irmãs e meu irmão, para passear de metrô. Era uma farra. Íamos e vínhamos na mesma linha várias vezes sem cansar. E ele lá, paciente, ouvindo os mesmos comentários a cada vez que víamos as mesmas coisas. Para ele, nada nunca era a mesma coisa.

Essa é uma das lembranças que tenho da infância. Durante os anos de faculdade, em que tinha de pegar o metrô lotado todo santo dia, freqüentemente me apanhava com essa memória invadindo a mente. Quem diria que aquele gostoso passeio de criança seria uma obrigação chata na minha idade adulta...

Meu avô era fotógrafo. Não desses chiques, com cartão com logotipo, placa na porta do estúdio e tudo. Meu avô não tinha estúdio nem ambição suficiente para chegar a ter um. Era mecânico de motos também. Mas, diferentemente do estúdio, moto ele tinha. Uma grande, de tanque vermelho, em cima da qual quantas e quantas vezes ia me buscar na escola. A mim e a meus irmãos. Todos de uma vez.

Brasílio Sgarbi era o nome dele. Eu sempre escrevi com s; ele, sempre com z. Dizia que o Brasil com s era com z quando ele nasceu e que, por isso, ele era com z também. Nunca averigüei isso, talvez por não aceitar sequer a possibilidade de tirar-lhe a razão... aquela coisa de neto que respeita demais os mais velhos. Teve pouco estudo, o suficiente para aprender sozinho a fotografar e a consertar motocicletas. Adorava comer banana, tinha umas manias engraçadas, retratava a família inteira em slides, filmava minha infância em rolos de filme que projetava na parede, atrás da porta do quarto, em algumas tarde de domingo, tinha uma garagem que cheirava a gasolina e uma Variant vermelho-cereja impecável, de pouco uso. Nos últimos anos de vida, com óculos emprestados, passava o dia assistindo à televisão, numa poltrona comum.

Morreu há 15 anos, tempo bastante para transformar a tristeza de sua ausência em suave saudade, em lembranças como as que conto aqui. Ultimamente, tenho me lembrado muito do meu avô.

Embora nunca tenha conversado com ele sobre fotografia, sei que ele nem imaginava que um dia as máquinas seriam digitais, que haveria Internet, msn, telefone celular, conversa em tempo real com o outro lado do mundo — e com imagem! Essas coisas certamente o fascinariam, ainda que tivéssemos de levar algum tempo para explicar-lhe como funcionam.

Então, cada vez que me deparo com o avanço tecnológico, principalmente no que se refere à imagem, lembro-me do meu avô, antigo, velhinho, com toda aquela parafernália que ele guardava em uma parede inteira cheia de prateleiras. Sinto-me a conexão dele com a tecnologia, e é uma sensação curiosa sentir-se ponte entre passado e futuro.

Qual não foi minha surpresa quando, tendo voltado de uma viagem à terra do meu pai, em visita aos meus ancestrais, algo que sempre tive vontade de fazer desde pequena sei lá por quê, vi que minha máquina digital recém-comprada e cujo manual fui lendo durante a viagem era capaz de tirar fotos belíssimas.

Não era a máquina. Era meu avô me ensinando que nada nunca é a mesma coisa e que precisamos mostrar aos outros o nosso modo de olhar...

Não estudei fotografia e ainda não sei consertar motocicletas. Não tenho cartão com logotipo nem ambição suficiente para ter um estúdio. Mas gosto de retratar a vida, embora tenha óculos próprios. Por isso, antes de ser Saraiva, eu sou Sgarbi.


20 junho 2006

Cobras e lagartos


Uma jaracaca se encontra com uma cascavel no vestiário da academia e abrem a matraca:
— Ana Maria do céu, você sabia que a perua da Cida, que foi operada do estômago, fica comendo biscoito de polvilho a tarde inteira? Não tenho nada a ver com o peixe, mas vê se pode?!
— Também, né, Rosiane, queria o quê? Uma vez baleia, para sempre hipopótamo, uai! A fome de leão não passa assim, de uma hora pra outra... Pega leve, né? Tudo bem que ela tem estômago de avestruz, mas ainda precisa aprender a comer como passarinho...
— Pombas! Que absurdo! Gastar tanto dinheiro com essa operação! 35 mil reais, ela te falou? Podia dar esse dinheiro era pra mim!
— Agora fiquei com a pulga atrás da orelha, Rosi, porque ela tinha me dito que gastou só 20 mil...
— Aninha, longe de mim colocar minhoca na sua cabeça, mas você não acha que a Cida mentiu, não? Vai ver nem lavou a égua quando se separou do marido como contou pra gente, aquele cachorro, sem-vergonha!
— Um galinha, isso sim! Onde já se viu trair a Cida arrastando a asa praquela piranha da Vanda?!
— Ai, como homem é besta, né? Olha só que burro! Agora a Cida taí, toda gatona, e o cavalo do ex dela, é, porque ele sempre foi um grosso, né, afogando o ganso com umazinha que logo, logo cansa dele... até porque, segundo a Cida, ele não dá no couro, né?!
— Macacos me mordam se for mentira, Rosi, mas a Cida se livrou foi de um belo de um elefante branco, isso sim! Aquele ex dela é um imprestável. Quando ela conheceu ele, ele era um bicho-do-mato, superanti-social. Depois, colocou as asinhas de fora... Onde ela foi amarrar o burrinho, né? Empacou na vida com aquele ser! Deus me livre! Ela é que trabalhava feito camelo naquela casa, cantava de galo e tudo, e ele lá, naquele passo de tartaruga, aquele bicho-preguiça com olhar de peixe morto, ou dormindo feito urso ou borboletando pra lá e pra cá feito barata tonta...
— Pera lá! Borboletando, não! O cara é cabra macho, Ana, pode falar o que quiser dele, mas borboletando é demais! É praticamente um garanhão pra ter conseguido a Vanda!
— Ihhhh, tá defendendo muito aquele espírito de porco! A Vanda fica com qualquer um, Rosi! Fora que ela levou gato por lebre, porque tá achando que ele é um tigrão! Você tá me saindo uma amiga-da-onça, isso sim!
— Ai, relaxa, Ana, foi só um comentário... Ele é gatão, vai? Forte como um touro...
— Quem diria, hein, Rosi? Uma loba na pele de um cordeirinho...
— Ah! O outro é que trai e eu é que pago o pato, é? Pode ir tirando o cavalinho da chuva, minha amiga, não precisa dar patada, não! Tudo bem, a Cida teve razão de sobra pra ficar uma fera com ele e mandar aquela topeira ir pentear macaco!
— Também não exagera, né, Rosi? O cara pode ser qualquer coisa, menos topeira... Tá mais pra raposa... Raposa velha, mas raposa... Aquilo é cobra criada, meu bem!
— Isso, acertou na mosca, falou certo! A Cida virou um bicho quando soube da Vanda... Também, pagou aquele mico no supermercado quando encontrou a Vera, que fala feito um papagaio e que contou que tinha visto o Paulo com a Vanda... A Cida, coitadinha, ouviu o galo cantar sem saber onde... aí, botou detetive e tudo atrás do traidor! Abelhuda essa Vera, né? O que ela tem a ver com o pato?
— É verdade... Puxa, a Cida virou uma onça! Mandou aquele animal ir caçar sapo! Eles já viviam como cão e gato mesmo! Primeiro, o infeliz disse que era tudo intriga. Tava era mentindo pra burro! A Cida ficou uma arara! Perguntou se ele era um homem ou um rato, porque, se fosse homem, tinha de assumir o que faz! Foi um barraco, nem quero lembrar! Aquela lá dá um boi pra não entrar numa briga mas uma boiada pra não sair! Pegou o touro pelos chifres!
— Você quer dizer, à unha, né? Porque chifre tinha ela! Mas ele acabou confessando, aquela zebra! Depois, chegou a dar escândalo na porta, bêbado feito um gambá, pedindo pra voltar... Até chorar de arrependimento ele chorou, acredita?
— Lágrimas de crocodilo, isso sim! Falso! Bem feito! Caiu do cavalo!
— Tudo bem que a Cida ficou de bode um tempão, você lembra?
— É, ficou, mas deu a volta por cima, minha filha, e olha só no que deu, matou dois coelhos com uma cajadada só: se livrou da anta do marido e ainda vai ficar magra! Tá sozinha mas uma pantera! É, quem não tem cão caça com gato mesmo... Agora a gente vai ter de engolir esse sapo: a perua-ex-hipopótamo já confessou que vai fazer mais não sei quantas plásticas pra dar um tapa geral...
— Comendo biscoito de polvilho daquele jeito?! Nem que a vaca tussa!


15 junho 2006

Ponto de vista



— Amor, amo-or — ela sacode o coitado como um terremoto asiático.
— Ai, que foi, coração? Me deixa dormir... — ele continua de olhos fechados.
— Adalbertôôô, me escuta!
— É barata? Pisa nela que passa...
— Não, engraçadinho, é outra coisa...
— Pulga? Mosquito?... Dengue? — ele continua imóvel.
— Adalberto... Tem alguém me olhando... dali de fora, ó...
— Faz tchauzinho, Gi, e dorme pelamordedeus!
— Tá louco? Cê não me leva a sério mesmo, né? Tô aqui sendo observada por sabe-se lá o quê e você nem aí? Ah, faça-me o favor, viu!
— Não vi nada e tô aqui, sim, no quinto andar... não tem ninguém te olhando lá de fora...
— Tá me chamando de mentirosa, é?
— Nããããão... ó, faz assim... fala aí pro Homem Aranha que ele é legal e tudo, mas que já é tarde e que ele devia ter vindo me visitar quando eu era criança. Cara mais atrasado!
— Muito engraçado, Sr. Bom Humor. Ai, que mal eu fiz pra ter um Adalberto na minha vida?!
— Casou comigo, fofa. Foi você que quis...
— Fofa é a senhora sua mãe! E, se você não se lembra, foi você que me pediu em casamento e ficou me atormentando pra casar, porque eu tava começando a me interessar pelo lindo do Kaká! Mas olha a burrada que eu fiz! O cara tá lá, jogando na Alemanha, na seleção, ma-ra-vi-lho-so, e eu aqui, casada com quem, com quem? Com o Adalberto!
— Ué, eu tava parado lá no altar, na minha, você é que foi até lá...
— Você tá querendo apanhar, né?
— Violência doméstica é crime, Gislaine. Eu te denuncio, tá pensando o quê? — e se ajeita ainda mais no travesseiro.
Ela olha para ele, incrédula. Furiosa com o descaso, descruza os braços e sacode ele novamente, agora como um tsunami, e quase joga o coitado pra fora da cama:
— Eu tô falando com você-ê-ê-ê, seu advogado de meia-tigela!
—Fala aí... pro ET... te levar pra dar uma volta no disco voador dele, fala! Vai lá, Gi, dá umas voltas com o camarada... mas me deixa dormir!
— Você tá fazendo piadinha?! Escuta aqui: você é meu marido, tem obrigação de me ajudar nas horas de necessidade, você prometeu isso lá no altar, lembra? Então, eu não consigo dormir com aquela coisa me olhando, me ajudaaaaaaaa....
— Hã? Falou comigo?
— E ainda por cima não me ouve! Isso é provocação, né? Só pode!
— É que... frase grande... eu perco... o raciocínio...
— Vai perder é o rumo já, já se não me escutar e olhe lá! Olha que eu grito, hein, Adalberto!
Mediante a terrível ameaça, ele abre o olho direito.
— Cadê?
— Cadê o quê?
— O que eu tenho que olhar...
— Ali, ó — e aponta para a janela com a persiana aberta.
— Não tô vendo nada...
— Abre o olho, infeliz! Você tá de olho fechado e ainda por cima é míope... sem óculos não vai ver nada mesmo! Tudo porque você não mandou arrumar a persiana emperrada, né, Adalberto?
— Ah, tá... Róóóóóónc
— ADALBERTO!
— Hã? O quê? Cadê o telefone? Atende logo!
— Que telefone o quê? Pirou, foi? Você tava roncando e me deixou falando sozinha. Aí eu berrei.
— Hã? Cê... não tá.... sozinha... bem...
— Não tô mesmo. A coisa continua me olhando!
— Róóóóóóóóóóóóóóóóónc
— ACOOOOOOOOOORDA! — O grito abriu os dois olhos do coitado.
— Tá bom, tá bom... Uááááááááááá... cadê a barata?
— Olha ali, ó, na janela...
— Não tô vendo nada... A barata tá na janela?
— Põe os óculos, Adalberto! Caramba, eu tenho de te falar tudo!
— Pronto... o que é aquilo? Você tá bêbada, Gislaine? Aquilo ali não é barata é nunca!
— Eu é que te pergunto! Quem falou de barata? O bêbado aqui é você!
— Olha aqui, minha filha, não ofende...
— A próxima vez que você me chamar de “minha filha” eu te jogo pela janela com coisa e tudo!
— Gi, você precisa se tratar, anda muito estressada, que horror! Cadê a sua qualidade de vida? Só comer sucrilhos de manhã não adianta, não, sabia? É tão nova pra ficar assim, parece aquelas velhas ranzinzas. Desse jeito sua pele vai ficar toda cheia de bolinha e...
— Não muda de assunto, Adalberto! E velha é a sua avó! Tá vendo? Não dá pra dormir com esses olhos em cima da gente desse jeito. Me incomoda... Parece até que tô no Big Brother, não tem condição!
— “Ai, não dá pra dormir com esses olhos em cima da gente desse jeito”, nhenhenhém, bã... — ele arremeda. — Tá bom, vai. Vou fazer essa caridade pra você. Xô, xô, sai daí, coisa! Olha só, você tá vendo, né, Gislaine? Eu tô fazendo a minha parte... a coisa é que não tá nem aí pra gente...
— Ih, já vi tudo... Mole desse jeito você vai é levar a madrugada toda pra resolver a situação. Quer saber? Vou dormir na sala! Fui, Adalberto, fui! Se vira aí você com a coisa. Dois estáticos, Deus me livre! Quanta falta de atitude!
— Isso, vai logo e pára de me atormentar, mulher louca! Trabalha tanto que fica tendo alucinação durante a noite e ainda estraga o sono sagrado de um marido exemplar feito eu! Eu vou te contar, viu?! Não basta ser um deus grego, preciso é ser um santo pra aturar uma criatura feito você. Adalberto pra lá, Adalberto pra cá. Cadê a sua independência? Hein? Hein? Me fala? Essa mulherada é tudo igual! Na hora do desespero, apelam. Pra quem? Pra quem? Pro Adalberto! Lógico! Tudo eu, tudo eu! E eu é que não tenho atitude?! Era o que me faltava! — ele se vira em direção à janela e continua: — E você, hein? Tá olhando o quê? A curiosidade matou um gato, tá sabendo?! Coisa mais enxerida! Fica aí, abelhudando no casamento dos outros! Tá vendo só o que você fez? Praticamente destruiu um matrimônio! Amanhã, quando eu chegar no escritório, vou entrar com um processo contra você! É isso mesmo! Vou te depenar, sua coisa destruidora de lares, por calúnia, difamação e danos morais! Pensa que vai ficar impune, é? 'Xá comigo!

Aquele par de olhos lá, fixos, olhando para ele, observando tudo, admirado.
O coitado cala a boca e olha fixo para a coisa. Faz umas caretas, e nada. Tem um siricotico na cama, numa crise de sono maldormido, e nada. Mostra a língua, se cobre com o lençol, fica em pé em cima da cama e faz “bu!”, dispara o alarme do rádio-relógio de repente, ataca o chinelo no vidro da janela, dá um berro, come a paçoca guardada na gaveta do criado-mudo desde o ano passado e assopra o farelo no vidro, amassa o papel do nada pra tentar ser assustador, acende e apaga o abajur quinhentas vezes enquanto canta O Passo do Elefantinho arregalando o olho... e nada.

-o-o-o-o-o-o-o-

— Gi... ô Gi... Volta aqui, Gi... por favor... Olha que eu choro, hein? Voltaaaaaaaaaaaaaa....
Ela não responde. Está no décimo sono no sofá da sala, coberta até as orelhas.
— Giiiiiiiiiii-i, tô falando com você!
— Róóóóóóóóóóónc!
— Gislaine Regina, venha aqui agora! Não dá pra dormir com essa coruja idiota me olhando!



12 junho 2006

Equação diferencial







Para Jana,

professora de Matemática
e amiga ímpar





“Crescei e multiplicai-vos.” O ser humano não nasceu para ser sozinho, ainda que freqüentemente esteja. Sim, porque ser e estar têm sentidos diferentes, embora sejam verbos “de ligação”. Quero dizer que ligam o ser humano à solidão de formas distintas...


1) A solidão nos faz ímpares se estamos sozinhos.

Desde pequenos vemos o ímpar com olhos não tão bons quanto aqueles com os quais vemos o par. Nas aulas de Matemática, os números ímpares são sempre os mais chatos, porque qualquer par é divisível por dois. O ímpar não divide tão fácil, dá conta quebrada, quebra a cabeça, é mais complexo. Talvez aí esteja a graça.

Na sociedade também é assim, por isso ela só sabe viver em par: é mais simples. Ser ímpar é um desafio e tanto. Sopa de pacotinho serve 2 ou 4 pratos; as salas de jantar têm 4, 6 ou 8 cadeiras; os assentos díspares que não foram vendidos permanecem sempre vazios nos shows; quando entramos sozinhos em um restaurante os garçons sempre perguntam “está esperando alguém?”; os aparelhos de jantar têm 12 ou 24 peças; qualquer promoção em rádio presenteia com “um par de ingressos” e por aí vai.

Aí reside o x da questão: as pessoas não estão preparadas, ainda, para lidar com o ímpar. E impor-se como tal, além de dar trabalho (a tal da conta quebrada), causa estranhamento. E quase todos os que vivem em par não se conformam com a condição dos que ainda vivem ímpares. Às vezes, ainda que inconscientemente, incomodam-se com a solidão alheia como se a felicidade dependesse do par, como se só fôssemos completos se estivéssemos ao lado da cara-metade. Esquecem-se de que já nascemos números inteiros. Todo mundo quer encontrar um par, é verdade, mas, independentemente disso, precisa aprender primeiro a ser ímpar.

Há dezenas, centenas, milhares de pessoas, por exemplo, que ficam com qualquer par porque nunca se aceitaram ímpar e, não raro, acabam numa regra de três. Há par que, apesar de admirar quem sabe estar ímpar, não tem coragem de ser feliz sozinho e prefere a infelicidade ao quadrado. Mas é preferível ser um ímpar em evidência a tornar-se um par nulo.

É sendo ímpar que tornamo-nos números positivos, temos a chance de nos conhecer melhor, de sermos independentes no bom sentido, de aprendermos a respeitar nossas vontades e observar que existem outras diferentes das nossas, de desenvolvermos nossa tolerância e de entender melhor o que é privacidade... nossa e dos outros.

Ir sozinho aos lugares, por exemplo, é espantoso para quem é par. Claro que ir em par é mais legal, mas, na falta de um, não se pode deixar de fazer as coisas. “Ué? Você veio sozinha?! Cadê seu namorado?”, como se minha presença como número inteiro estivesse pela metade. “Caramba! Você foi viajar sozinha? Você é corajosa!”, como se isso fosse uma incógnita na cabeça de quem só pensa em par. Há quem viva em par mas que só sai se for em par. Uma coisa é querer ir aos lugares com a cara-metade por apreciar a companhia dela; outra é querer ir com ela apenas por não saber ou não conseguir ir como unidade.

O ímpar atrapalha, como se fosse um elemento não contido no conjunto. Para ele sempre falta cadeira (porque sempre se está esperando um número par) e sobre ele impõe-se uma aura de melancolia gratuita: “Coitado, é sozinho”. Sempre fazem a conta errada... o produto do cálculo deveria ser
está sozinho.

Ainda que esse ímpar viva assim para o resto da vida por motivos que só o Universo conhece, sabendo ser ímpar — no sentido de “único”, “sem igual”, “autêntico” — e estar ímpar, enquanto não acha seu par, ele vai ser feliz, porque se basta a si mesmo e não vai esperar que alguém o complete. Quando encontrar seu par, ele vai poder se doar, inteiro, porque, em vez de se subtraírem, se completarem, eles vão se somar e saber dividir.


2) A solidão transforma os ímpares em números primos se são sozinhos. E separa os pares.

O outro verbo de ligação, o ser, é mais radical. Se alguém
é sozinho, sua condição de ímpar (no segundo sentido, de não-par) deixa de ser transitória para configurar-se infinita. Ele será ímpar sempre, ainda que viva em par. Não raro, apresenta sérias dificuldades em se relacionar com os outros porque quer tirar raiz quadrada de tudo e está sempre saindo pela tangente. Torna-se número primo, mais chato ainda, só divisível por si mesmo ou por um. Mais egoísta, impossível.

É sozinho quem, mesmo cismando em viver em par, não sabe estar ímpar. Torna-se um número irracional(1), um número negativo, um mero segmento de reta. Espelha-se no outro, espera do outro, depende do outro, projeta cem por cento de suas expectativas no outro, não respeita o outro como diferente porque, em vez de dois inteiros que decidiram viver juntos, pensa serem metades se completando, tendo de pensar e se comportar como uma única unidade. Esquecem-se de que nasceram dois e de que, como tal, já eram inteiros assim.

-x-y-z-

Eu estou ímpar e bem longe de tornar-me um número primo. Quero ser um número composto(2) e formar um par, mas não me sinto incompleta por isso, porque, apesar de não ser tão boa em Matemática, tenho sabido estar ímpar. Quero adicionar alguém à minha vida e ser uma equação diferencial na vida de alguém (é, eu sou complexa!), para multiplicar tudo de positivo que ambos contiverem em seu conjunto.

Feliz Dia dos Namorados.




P.S.: Há uma música do Tom Jobim que diz que “é impossível ser feliz sozinho”. Mas há outra, que dialoga com esta, chamada “Satisfeito”, de autoria da tríade Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, que contesta tal afirmação. Segundo a própria intérprete, embora os compositores dessa última canção sejam todos casados, acreditam que é preciso ser feliz primeiro sozinho para, aí sim, ser feliz com alguém.

(1) número irracional: que não pode ser representado pelo quociente de dois números inteiros.
(2) número composto: um inteiro que não é primo.


10 junho 2006

"Ouve o barulho do rio, meu filho"


Para o Bruno, que, além de ter uma alma acessível,
foi uma companhia entusiasmada neste episódio.


A música une as pessoas. “Todo corpo que tem um deserto tem um olho de água por perto.” É capaz de fazê-las, muitas e muitas delas, ficarem em silêncio ao mesmo tempo, apreciando as palavras, sentindo aquela harmonia de notas percorrendo a alma — porque a música, definitivamente, foi feita para deliciar a alma, que se inquieta com um ritmo agitado, fazendo o corpo dançar, ou fica introspectiva, provocando pensamentos filosóficos ou incitando a imaginação. “Vem andar e voa.”

O show da Marisa Monte foi assim. Muitas pessoas, de todos os cantos da cidade, ali, reunidas (“O mundo é portátil para quem não tem nada a esconder”), em silêncio, embasbacadas não só com a afinação estupidamente perfeita da intérprete, como pela intensidade da interpretação. Marisa Monte canta poesia sentindo e declamando por meio do ritmo os muitos significados de cada palavra. Transmite isso pela forma como canta e, entre uma música e outra, pelos comentários que faz. “Na varanda quem descansa vê o horizonte deitar no chão.” Mais poesia. “No caminho que ninguém caminha, alta noite já se ia, ninguém com os pés na água.” Filosofia. “Ó chuva preste atenção se o povo lá de cima vive na solidão.” Intensidade. “Seus olhos, meu clarão, me guiam dentro da escuridão.” Conquista.

E, como toca o que aparece — violão, cavaquinho, guitarra, gaita, contrabaixo, caixinha de música —, é natural que também toque o coração.

Mas o curioso mesmo é como, mediante uma obra de arte, nossa noção de tempo se deturpa. No meio daquele monte de poesias musicadas, com letras inteligentes, bem compostas, trabalhadas, o tempo voa. “Não se perca ao entrar no meu infinito particular.” O que é bom dura muito, nós é que usufruímos rápido, tamanha nossa sede, nossa vontade, nossa fome, nossa ansiedade, nosso envolvimento.

De nada adianta, no entanto, prestigiar um show desses, de voz e orquestra (violinos e violoncelo inclusos!), ou qualquer outra manifestação cultural mais complexa, se a gente não tiver uma alma talhada para isso. Há almas duras que não se abrem para a poesia, a arte ou a literatura porque ou não as entendem ou não as querem entender. São pessoas apáticas e resistentes a tudo o que possa deixá-las vulneráveis ao mundo (“do céu amor vai chover”), uma forma cômoda de resistir ao belo, numa tentativa insana de não sentir, não interagir, não ver o outro e, assim, ilusoriamente, não sofrer.

Então, essas pessoas não vivem. Ficam desse jeito, trancadinhas, cinzas, sem graça, indiferentes. Não há anestesia pior. E é aí que começam a nascer a alienação e a preferência por aquilo que é superficial e óbvio. (Interpretar dá trabalho.) É nesse solo que se fincam o mau humor, a falta de educação e o egoísmo. (Respeitar dá mais trabalho ainda.) E parece que comportamentos assim viram epidemia, contagiando tudo. (Importar-se, então, é um sacrifício.)

Exemplo disso já se vê quando a apresentação acaba. Depois de tanta boa música, de um contato mais direto com o sublime — talento, criatividade, afinação —, a maioria da platéia só pensa em sair, de preferência primeiro que o restante, feito boiada quando a porteira se abre (“a boiada seca, na trovoada seca”). Ninguém dá passagem a ninguém, ninguém pede licença, sorri, deixa transparecer a leveza da alma necessária à fruição de tudo o que havia sido apresentado. A alma dessas pessoas pesa. “Nós que passamos apressados pelas ruas da cidade merecemos ler as letras e as palavras de Gentileza.”

Por isso há quem não entenda arte, durma toda vez que ouve música clássica, quem ache poesia idiota porque só enxerga a rima (e, quando não tem rima, se sente enganado!), que olha para um quadro e só vê tinta, que ouve as palavras tal e qual constam no dicionário, que não entendem as sutilezas do humor bem feito. Pessoas assim limitam o acesso à própria alma como forma de autopreservação.

Mas se não nos abrimos para o mundo, arriscando sermos intensos, não nos encantamos, não aproveitamos tudo o que ele tem a nos oferecer, não treinamos nossos olhos e sentidos para usufruir as várias manifestações de arte.

Além da lembrança do belíssimo espetáculo de Marisa Monte, também ficou um aprendizado: o que mais distingue as pessoas atualmente é, sem dúvida, o quanto se permitem serem atingidas bem ali, direto na alma.


07 junho 2006

Filhos da pátria

(Sugestão: enquanto lê este texto, ouça esta trilha sonora.)

"SEM-TERRA INVADEM CÂMARA, DEPREDAM E DEIXAM 24 FERIDOS"


Quando escrevi o “Tudo negro no país do colorido”, não era para deixarem a coisa ainda mais preta. Não era para sair por aí quebrando tudo, apesar da revolta que todos os brasileiros andam sentindo quando o assunto é política.


Antes de entrar no mérito da questão, alguém consegue explicar o que a palavra “libertação” faz na sigla MLST – Movimento de Libertação dos Sem-Terra? Partindo-se do princípio de que os sem-terra não têm terra e, portanto, são mais livres do que eu, que não moro em um acampamento ao ar livre (ops, liberdade de novo!), por que se unem em um movimento para libertarem quem não está preso? Pela libertação do que já está livre?!


Esses filhos da pátria do MLST, uma dissidência do MST — os que aparentemente já sabiam que eram livres —, além de sem-terra são sem-noção. Sem-educação. Sem-sentido. Sem-escrúpulos. Sem-modos. Mas, principal e definitivamente, são sem-impostos. Livres (de novo?!) de pagarem impostos. É a única explicação para depredarem o que é público, para não terem se lembrado, ainda que por meio da dor no bolso, de que estavam destruindo o que muitos trabalhadores-contribuintes, como eu e você, compraram a duras penas, trabalhando para o governo em regime de semi-escravidão por mais de quatro meses dos doze que o ano tem.


Esse comportamento ilusório é comum neste país sem-lei. Grande parte da população – geralmente para quem o Leão é tão-somente aquele técnico de futebol e para quem Receita é aquilo que o médico dá ou que ensina a fazer um bolo – atribui o público ao Governo (será que merece a letra maiúscula?!), numa associação muito equivocada. Acham que, agredindo o que é público, atacam o Governo. Então, começam com atitudes aparentemente veladas: um papelzinho de bala na calçada aqui, uma latinha de alumínio vazia pela janela do ônibus ali, uma pichaçãozinha no monumento recém-inaugurado acolá. Filhos da pátria! Aos poucos (ou seria aos muitos?), vão descontando sua insatisfação com a política naquilo que é público, porque, para essas pessoas, o público não é delas. Em parte, porque não sentem que de fato é; em parte, porque não foram educadas para reconhecer que é. Quando digo “educadas”, não me refiro à educação recebida em casa, mas ao dever do Governo de conscientizar o povo de que a ele pertence o país em que mora.


Mas é tanta corrupção, tanto “é meu” pra todo lado, tanto desvio de dinheiro e de conduta, que a maior parte dos brasileiros de fato se convenceu de que o público é cada vez mais dos políticos que dos próprios brasileiros (excluí os políticos do grupo “brasileiros” de propósito, porque, apesar de serem mais filhos da pátria do que todos, como brasileira que sou tenho certeza de que essa corja – coletivo de vagabundos – perdeu o patriotismo faz tempo).


Então, dá nisso: depredação, vandalismo, violência gratuita, baderna. Num país sem-lei, nada como ser sem-limite. Num país com governantes sem-estudo, nada como ser ignorante. Num país sem-diretrizes, nada como promover confusão. Num país sem-planos, que, em vez de ensinar a pescar, incentiva o ócio com bolsa-disso e bolsa-daquilo, nada como querer ganhar tudo sem esforço. Vão trabalhar, filhos da pátria!


Mas um povo que dia após dia vê nessa política o exemplo (se é que podemos chamar assim) que o Brasil tem demonstrado, só podia ter reações assim. Uma fúria descontrolada, na tentativa de se fazer ouvir (os sem-terra queriam apenas “entregar uma carta” ao presidente do Senado), no grito e na porrada. E isso pega. 545 pessoas detidas. Será que todas elas sabiam o que estavam fazendo ali? Será que aquela garota que parou de estudar na oitava série e destruiu aqueles computadores do saguão da Câmara numa cólera impiedosa tinha consciência do porquê daquilo? Aposto que quem jogou o busto do Mário Covas escada abaixo nem sabia quem era o tal. “Alguém importante.” E você, cidadão, não é importante por acaso a ponto de não se rebaixar a tão vil atitude?


Só sei que é triste assistir a tudo isso, ao Brasil se afundando cada vez mais numa balbúrdia de inversão de valores. Sorte tem meu pai, que é europeu... Ainda que apenas alguns anos, ele, ao contrário de nós, pelo menos pode dizer que já viveu em um lugar civilizado.



02 junho 2006

De corpo e alma


Você já despertou ouvindo violinos? Já sentiu borboletas no estômago ao ver alguém? E um peixe nadando na sua coluna quando você pensa desagradável?

Algum dia ficou de cara no chão por ter jurado de pés juntos amor eterno a alguém que não chegava a seus pés?

Já pisou em nuvens usando seus chinelos velhos? Sentiu calor com uma erupção de vergonha na cara, colocou seus desejos num cofrinho e guardou no bolso o sabor da sua bala preferida?

Alguma vez fez um mapa do que seu globo ocular viu por aí ou fechou os olhos para o seu olho clínico? Sentiu cócegas no cérebro com pensamentos engraçados?

Você já degustou palpites, abriu envelopes de conselhos ou leu intenções nas entrelinhas de atitudes?

Viveu em pé de guerra com a desarmonia, tossindo calúnias e faiscando cólera?

Já botou a mão na consciência ou ficou de queixo caído por ter engolido a língua falando desassossegos?

Já ficou na mão, fora do ar, com o coração apertado, com a cara amarrada, nó na garganta, estômago embrulhado, câimbra na razão e sensibilidade à flor da pele?

Já digeriu insatisfação e dobrou a língua indo a uma feira de conclusões e botando a boca no mundo?

Pescou surpresas, sorriu elogios de mão beijada, lavou a alma com água de colônia e se vestiu de cautela para encontrar a velhice?

Você por acaso já mastigou críticas durante as horas intermináveis do seu relógio biológico, desembaraçou os nervos, deu o braço a torcer a uma dor-de-cotovelo ou trocou os pés pelas mãos engasgando insegurança?

Já passou a perna na lei por ter molhado a mão de alguém, saiu na mão com sua fúria por ter levado um pé na bunda ou deu no pé quando abriu mão de correr riscos?

Já livrou a cara por ter chorado inconsciência no ombro de alguém?

Sonhou seu avesso, acordou seu raciocínio com palavras de amor ou se arrepiou com a temperatura de um sussurro ao pé do ouvido?

Já empinou pipas no ar dos seus pulmões ou respirou alívio suspirando pelos cantos? Atirou pelos ares uma respiração ofegante em nome do bom senso?

Tremeu de segurança por dar de cara com a certeza?

Ficou com o pé atrás com seu coração, tentando controlar com mão de ferro seus sentimentos?

Já torceu o nariz para reprovações teimosas ou ficou com cara de tacho por constatar desilusões?

Já ficou na cara que você precisava pôr aos mãos para o céu por poder ficar com as pernas para o ar folheando o vento?

Ficou com a boca seca por falta de vocabulário, salivou vontades comendo-as com os olhos, emagreceu seus rancores e engordou sua conta bancária batendo boca com a economia?

Você já beijou lembranças abraçando saudades, chorou um mar de desgosto numa tempestade de desespero e se desequilibrou de sua sensatez perdendo seu jogo de cintura?

Já encheu a cara e deu com a língua nos dentes segredos inconfessáveis?

Já foi seqüestrado por um ataque de riso à mão armada, ficou refém de si mesmo numa crise de soluço ou fugiu de olho-gordo gritando aflição?

Já teve pensamentos entorpecidos pelo tempo, fechou a cara, tentou afogar as mágoas em um balde de gelo ou experimentou engolir contrariedades com um copo de licor?

Deu as caras metendo o nariz em festa, dançou a olhos vistos de mãos dadas com a solidão ou bateu de frente com o mau humor na mão dupla da diversão?

Já ficou de olho em conjecturas, enchendo os olhos de desejos, ou estendeu a mão para a esperança, colocando-a no colo?

Alguma vez, com a cara e a coragem, pegou no pé do seu medo sem receio de dar com o nariz na porta da ousadia?

Não?!

Não sabe a metáfora que está perdendo!