28 abril 2013

Toda céu


Foi numa noite de junho, do outro lado do mundo, que vi o céu estrelado mais estrelado do mundo. O que me surpreendeu foi a desintenção de olhar para cima.

Num quarto de hotel, com camas duplas que agigantam qualquer solidão, levantei-me para tirar da tomada próxima à janela algo que piscava e atrapalhava o tudo em que eu pensava no meio daquele nada. Sem querer, esbarrei na cortina, que, permissiva, deixou entrar o luar. Um luar de presença tão marcante que me fez olhar para cima, bocejando deslumbramento.

Naquele silêncio estrangeiro, um milhão de estrelas reluziam na escuridão de um céu azul-marinho, uniforme, limpo e perfeito, côncavo acima de mim. Abri a janela. Na impossibilidade de recolher todas aquelas luzes, ou de pelo menos resvalar em algumas delas, usei as mãos para apoiar a cabeça, debruçando-me no parapeito.

Era o início do verão em um lugar sem grilos ou qualquer ruído natural que distraísse os sentidos da beleza refletida em meus olhos ainda sonolentos.

O céu mais estrelado do mundo me inundou de gratidão. Aquilo era um privilégio do qual eu sempre me lembraria. Nada mais incomodava: nem sombra de solidão, nem ansiedade pelo tudo que ainda viria, nem interrogações ou insônia. Eu era céu. E me senti abraçada em todos os pontos cardeais, protegida pela abóboda salpicada de boas lembranças, de pessoas queridas que agora lá moram, pessoas amadas que ficaram do outro lado do mundo e não podiam experimentar assistir a tantas e infinitas estrelas brigando por espaço naquele breu.

Pensei no breu que mora na gente. Nas estrelas que piscam quando praticamos boas ações. No breu que alguns olhos adotam para disfarçar amargura. Nas estrelas que brilham mais quando pessoas se apaixonam. No breu que domina os corações egoístas. Nas estrelas que embalam esperanças para presente.

Não sei quanto tempo permaneci ali, olhando sem parar, já fora de mim, vasculhando cada canto daquele cenário redondo e inédito. Tinha receio de nunca mais presenciar tamanho presente, de me perder novamente no tudo que aquele lugar quase deserto teimava em não acolher.

E me lembrei da minha palavra favorita: stupore, do italiano. Um estupor aquilo. A noite do céu estrelado mais estrelado do mundo não podia ser registrada de outra forma que não na memória, por vezes tão incompetente ou incompleta: ou não absorve a totalidade do momento, ou perde as imagens, deixando apenas resquícios das sensações que elas causaram. Prometi me esforçar para não deixar nada esvanecer feito neblina, porque aquele bálsamo é para toda uma vida. Para lembrar da minha pequenez e insignificância em um Universo indescritível. Que tristeza nenhuma permanece quando existe a possibilidade de um céu assim. Que toda alegria merece ser imensa, para alcançar um céu assim. Que tudo é efêmero, porque sempre amanhece. Esse é o segredo das noites: digerir os dias.

Foi naquela noite que me dei conta de que até nossas intenções mais nobres não são nada perto de tanta grandeza, ali, de graça, esperando ser descoberta. Eu sorria e chorava, desejando escancaradamente poder compartilhar aquela experiência com todos que amo. E disponibilizá-la aos que ainda não amo por não conhecê-los. Quem dera todo o mundo olhasse para cima àquela hora e visse o que eu via.

Na manhã seguinte eu voaria de balão no céu da Capadócia, outro deslumbre da minha vida. E qual não foi minha surpresa – outra – quando, ao amanhecer, o céu, limpo de novo, não ostentava nuvem nenhuma. Era outro céu, só azul, claro, cor de céu de desenho infantil, como se as estrelas tivessem ido para algum outro lugar e o céu tivesse voltado ao princípio, para amadurecer mais tarde.

Esse estrelado todo só se repetiu três dias depois, em Pamukkale, um nada mais nada que o nada de antes. Agora, em vez da surpresa da inauguração celeste, o céu estrelado mais estrelado do mundo surgiu no susto. Eu estava no jardim do hotel, pensando sem noção de tempo, quando apagaram todas as luzes, inclusive as da piscina, que chamava para si todas as atenções. E, com um sorriso maroto nos lábios, olhei para cima, cumprimentando o que eu sabia estar ali.

Tudo ali, disponível. Nada importava mais. O nada, o tudo, o céu.



Diário de viagem, Turquia, 21 de junho de 2012.