31 maio 2006

Quebra-cabeça


A mãe está lendo o jornal, sentada no sofá, enquanto a filha de sete anos brinca no tapete da sala com uns bloquinhos coloridos. Com seu raciocínio a mil, de repente a menina pergunta:
— Mãe, a gente vamos no shopping amanhã?
— A gente não vamos, filha, nós vamos.
— Nós quem?!
— Ué, eu, você e seu pai.
— Então, mãe, a gente!
— Eu sei, filha, mas é que com a gente não se usa “vamos”, mas “vai”.
— Mas eu, você e o papai não é a gente?
— É.
— E você não falou “eu, você e seu pai”?
— Falei.
— Então, é a gente vamos, oras!
— Filha, a gente e nós é a mesma coisa, mas um é vai e o outro é vamos, entendeu agora?
— Não. Se é a mesma coisa por que é diferente?
— Ai, bendita hora que te comprei esse joguinho de montar. Isso tá mexendo com a sua cabeça! — a mãe se esconde atrás do jornal, agora totalmente aberto.
— Mãe — a menina começa a puxar a barra da calça da mãe —, a gente não é duas palavras?
— A gente são duas palavras, Maria Eduarda!
— Olha aí! Tá vendo!? Como é a gente vai se agora é a gente são?!
A mãe começa a se mexer no sofá. Coloca o jornal de lado, ajoelha no tapete e olha firme para a garotinha, falando manso (muitas mães, quando não sabem as respostas, espelham a ignorância nos filhos, na tentativa de se safarem da situação):
— Duda, meu amor, a gente são duas palavras. Como é mais de uma palavra, a gente usa “são”.
— Então, falei certo: a gente são duas palavras, a gente vamos... Nós é uma palavra, então é vai: nós vai, né?
— Filha, presta atenção... — a mãe coça a cabeça.
— Presta atenção você, mãe! Você tá me ensinando errado... eu já sei contar faz tempo! Dois é mais que um.
— É, você tem razão. Vou tentar te explicar de outra forma — agora ela respira fundo, conta até dez mentalmente, se ajeita sobre as pernas, coloca o cabelo atrás das orelhas com as duas mãos.
— Alô-ô, tô esperando...
— Então, filha, olha só: a gente e nós são pessoas, certo?
— Que pessoas?
— Não importa. Pessoas são pessoas e pronto acabou. A gente são muitas pessoas, nós, a sociedade, entende?
— Sociedade é um conjunto de nós e de a gentes, então?
— Não, quer dizer, sim... A gentes? Que raio é isso?! Bom, voltando... as pessoas fazem parte da sociedade. Quando você diz “a gente”, embora esteja pensando em mais de uma pessoa e tenha dito duas palavras, precisa falar “vai”. Quando fala “nós”, mesmo sendo uma palavra só, precisa falar “vamos”.
— Ah, é ao contrário? É como se a gente valesse menos que nós?
— Nós e a gente são a mesma pessoa, filha de Deus!
— Ih, mãe, acho que você ficou louca. Primeiro, eu sou sua filha, não de Deus. Depois, eu sou uma pessoa só. E nós não era a tal sociedade? Como é que pode ser a gente?!
— Ai, Jesus! — a mãe bufa. — Escuta: é assim porque tem uma coisa chamada Gramática que diz que é assim.
— Ai, que Gramática burra! Nem sabe contar! Ela, então, é mais importante que nós que é a gente? Por isso a gente precisamos obedecer?
— A gente precisa obedecer, Maria Eduarda! Brinca aí, vai, brinca...
Silêncio. A mãe, achando que a filha tinha finalmente entendido o espírito da coisa, levantou-se do tapete e voltou a pegar no jornal. Ainda de costas para a filha, ouviu:
— É por isso que todo mundo só fala eu eu eu toda hora. Ninguém nessa tal sociedade entende o nós — e continuou montando seus bloquinhos.



29 maio 2006

Tudo tem limite?


O cara estava tranqüilo: bem profissionalmente depois de muito batalhar, tinha conseguido casa própria, algumas viagens de férias, um carro razoavelmente confortável, um celular com câmera digital, um computador com monitor flat e um iPod. Básico.

Um belo dia, porém, tendo deixado seu carro estacionado em uma rua mais tranqüila que ele, viu-se surpreendido por um até então cidadão, ainda mais tranqüilo que a rua, que disse a ele, enquanto apagava um toco de cigarro com a sola do sapato:


— Putz, tio, cê demorô pra caramba! Tô aqui esperando pra roubá você e seu carro faiz um tempão!

O cara da paz levantou a sobrancelha em sinal de protesto (é, é assim que os tranqüilos protestam: silenciosos, mas expressivos). Tentou reunir alguns argumentos enquanto observava o cigarro na calçada, todo amassadinho, para então responder:

— Desculpa, irmão. Isso não vai mais acontecer. Toma a chave, minha carteira, meu celular...

Diante da falta de reação da vítima, aquela subserviência gratuita, o ex-cidadão resgatou de suas profundezas obscuras um resquício de humanidade:

— Toma dois real, malandrage, pra você pegá pelo menos um busão. Aproveita que hoje eu tô bonzinho...

O cara da paz estava inteiro, embora moralmente destruído. Foi embora resignado, agradecido por aquela esmola que o permitiria chegar em casa. Eram duas conduções, na verdade, mas o ex-cidadão não tinha culpa, como ele podia adivinhar??!!!



28 maio 2006

Tudo negro no país do colorido


É, gente, a coisa está preta. Nosso presidente ovelha negra(1) acha que é o rei da cocada preta e que não vai passar em branco na história do país. Isso ele não vai passar mesmo, porque já entrou para a lista negra nos livros de História por estar envolvido até as orelhas em tanta corrupção, quer sendo omisso — quando alega não saber de nada (ih! deu branco!), quer sendo co-responsável. No caso, acho que nem magia negra resolve. O pior é que, nesse buraco negro, os políticos todos estão ganhando uma grana preta por se valerem do colarinho branco. E a nuvem negra se instaura sobre o Brasil feito aquela peste da mesma cor. Mas é hora de começar a pôr o preto no branco, tudo ali, tintim por tintim. Tirar a negra, para ver se desempatamos essa situação que parece emperrada. As únicas armas de que dispomos são a voz e o voto. A voz ninguém usa, porque precisa trabalhar tanto que não tem tempo de ir para a rua fazer passeata com bandeiras pretas em sinal de luto. Quem morreu foi a esperança, essa pérola negra, não a política. Votar em branco nunca resolveu, seria assinar um documento em branco como se disséssemos “Façam o que quiserem”. Tudo bem, você vai dizer que eles já fazem isso ainda que sem nosso aval. Então, sugiro virarmos uma legião de faixas pretas para invadir o Congresso, deixando todo mundo com o olho roxo... Não, roxo, não! É pouco. Tinha de ficar bem preto mesmo, com aqueles hematomas gigantescos bem impressionantes e doloridos. Mas apelar para a violência também não é uma boa solução. Ah! Já sei! Podíamos contratar uma viúva negra, dessas bem profissionais num preto básico fatal, para ir casando com cada político e matando um por um... É, não adianta reclamar. Enquanto toda essa sujeira continua no país, o fato é que amanhã e depois e depois é sempre dia de branco(2), de pagar uma nota preta de impostos e taxas.

Quando isso vai mudar? Quando vamos parar de achar tudo tão normal, vivendo assim, nesse país politicamente tão sem cor? Nós já fomos verde-amarelos, se lembram? Mas só ficamos coloridos em época de Carnaval e Copa (o velho e bom “pão e circo”!). Lamentável. O que falta é atitude do povo e um pouco de vergonha na cara dessa gente que se diz nossa representante. Mas vergonha na cara deixa o rosto ruborizado, vermelhinho... e jogar cor no que é preto-e-branco é uma agressão. Para eles, dói demais.



P.S.: antes que me acusem de racista e preconceituosa, aí vão as explicações de duas das expressões utilizadas no texto que podem dar margem a tal interpretação. As outras, pelo óbvio, referem-se às cores, não às etnias. A língua portuguesa pode ser machista ao privilegiar o masculino, mas racista definitivamente ela não é.

1 - ovelha negra: ao contrário do que muita gente pensa, ou seja, que esta expressão vem da época da escravidão, ela tem origem antes disso, nos campos de pastagens. Tudo porque a lã da ovelha negra, por não poder ser tingida, vale menos. Como as ovelhas negras comem tanto quanto as brancas, dão prejuízo a seus criadores, não sendo tão benquistas. Mesmo cuidando das ovelhas para que andem sempre juntas, o pastor não pode evitar que alguma se desgarre. É a “ovelha negra”, a malvista, a que dá trabalho.

2 - dia de branco: esse branco nada tem que ver com a raça branca. Antigamente, as lavadeiras separavam as roupas brancas das demais e deixavam um determinado dia da semana só para lavarem as roupas brancas, geralmente nos rios. Como essa tarefa era muito árdua, costumavam dizer “amanhã é dia de branco”, isto é, de roupa branca, dia em que se exige mais trabalho, mais esforço. (colaborou para essa informação Ricardo Ferreira)

crédito da foto: meu (se posso criar, pra que copiar?)

Primeira idéia na janela



Quando eu era mais nova, antes de a Internet ser assim tão acessível (não vamos entrar no mérito da idade!), eu costumava escrever muito em umas agendas que eu tinha. Cada ano, naturalmente, era uma. Escrevia de tudo: desde críticas de filmes a impressões pessoais sobre a vida. Escrevia meus pensamentos, rascunhava poemas, treinava minha redação. O curioso é que a agenda mal parava na minha mão. Estava sempre com alguém que queria ler, quer por gostar do que eu escrevia, quer por curiosidade para saber o que se passava na minha cabeça.

Isso tudo antes de eu pensar em cursar Letras, quando meu português era igual a de um pobre mortal. Foi uma fase importante para aprimorar minha escrita, incentivar meu gosto pela literatura, exercitar meu raciocínio e ter mais e mais idéias, incluindo a de fazer
a minha profissão essa minha facilidade de escrever.

O fato é que escancarar a janela das idéias não é tarefa das mais simples. É, a palavra tornou-se de fato meu instrumento de trabalho, tal como eu pretendia. Mas junto com essa realização veio a autocrítica. Ferrenha, meus caros. Tudo porque, de tanto dar pitaco no texto alheio, mudando as palavras, a ordem, riscando, substituindo, sugerindo e tal, muitas vezes para tornar aquele conjunto legível e agradável de ser lido, passo a me perguntar constantemente quais intervenções a Kandy revisora faria nos textos dessa Kandy que aqui escreve.


Intervir nos textos que não foram gerados por mim é infinitamente mais fácil. Fui treinada para ordenar o raciocínio dos outros, não o meu. É como se a liberdade que eu tenho para mexer no texto dos outros tolhesse os meus próprios. É paradoxal, sim. Mas eu sou o paradoxo em pessoa. Um paradoxo interessante, que poderá ser descortinado nos textos que pretendo postar.


Tudo o que eu escrever aqui será de minha autoria. Nem tudo bom. Nem tudo ruim. Às vezes literatura, às vezes bate-papo, às vezes gêneros inclassificáveis. Idéias. Tenho muitas (todo mundo me diz que penso demais). Só que agora, em vez de espiar pelas frestas, você vai poder ver a janela aberta e olhar dentro de mim, varrendo o que me der na telha.


Por favor, comente. Uma janela aberta não tem utilidade se a luz não entrar e se não houver vizinhos.



(Des)gosto não se discute

Duas colegas de trabalho esbarram na fila do refeitório. A mais entusiasmada sai falando, com uma intimidade de fazer inveja a qualquer casal não tão bem resolvido:
— Você viu a minha jaqueta nova?
— Ah, é nova? Legal. Desculpa não ter comentado, é que eu nem reparo nessas coisas — e continuou se servindo de salada. Beterraba deixa a língua roxa, mas é saudavelzinha...
— Mas devia. É a tendência. Você não se liga em tendência?
— Pra ser sincera, eu detesto tendência. Ela incomoda a minha personalidade.
— Como assim?
— É, me incomoda, sei lá... quer dizer que, se a tendência for usar uma calça de bolinha com um rasgo na bunda, você vai lá e compra uma?
— Ué, se for bonita, qual o problema? — passa reto pela beterraba, fazendo cara de nojo.
— Nenhum. Aí é gosto aliado à tendência. Perdoável.
— É moda, moda, mo-da, entendeu? Cê precisa se modernizar!
— Cê quer dizer modarnizar, né?
— Não entendi... bem, não interessa, você ainda não explicou o negócio de se incomodar...
— Me incomodo porque detesto essas regras de como devo me vestir... sobretudo se elas baterem de frente com meu gosto pessoal. Cada coisa ridícula que inventam e, pra ganhar dinheiro, dizem que é tendência. Se a tendência for roxo-batata, cê usa, por acaso? Fora que esse papo de tendência massifica, entende?
— Massi o quê?
— Nada não, deixa pra lá.
— Não, deixa pra lá coisa nenhuma, você tá me achando ignorante, por acaso? — e bate a colher na bandeja, ao mesmo tempo que coloca uma das mãos na cintura.
— Eu?! Imagina! Nem falei nada.
— Por isso mesmo. Não explicou porque acha que sou burra e que não vou entender... — a cara de ofendida não convence.
— Ih, que estresse... Relaxa, tá legal? Não é nada pessoal, é que não tô a fim de papo cabeça a essa hora do dia.
— Ah, vai dizer que isso te incomoda também? Meu, cê é muito esquisita, sabia? Pega até beterraba!
— É, o pior é que eu sabia. Mas obrigada pelo toque de qualquer forma, cê tá sendo legal...
— Tudo bem, disponha. Mesmo esquisitinha, cê parece do bem. Mas voltando: comprei essa jaqueta quando viajei pro Equador. Lá é tudo de bom...
— É? Nunca tive lá. Nem sabia que o Equador era famoso por suas jaquetas.
— Minhas jaquetas? Tá louca? Ai, to dizendo que cê é estranha! Só falta pegar aquele legume branquinho estranho ali da frente... Meu, tô falando que eu comprei lá, dã... Comprei lá naquela cidade... como é mesmo o nome? Uma cidade famosa com nome engraçado...
— Quito, a capital?
— É, essa mesma... — demora um pouco pra ficha cair. Num repente, ela exclama: — Ah, dá licença, meu. Sai daqui! Não dá pra conversar com você, viu! Cê sabe a capital do Equador! Ah, vai se ferrar! Garota loca!