12 junho 2013

Um pouco de muito amor

A mulher de avental assistia à novela acariciando o pano de prato jogado no ombro, sem se incomodar com o ronco do marido vindo do quarto ali perto. O amor da televisão anestesiava-lhe os sentidos.

No apartamento vizinho, o rapaz de bermuda larga tomava coragem com um gole de água para se declarar à moça que sorria tímido quando para ela ele olhava.

Mas o que escapava dos lábios da moça do sorriso tímido era a saudade de um amor que não volta. Sua irmã, esperançosa, ainda ia. Caminhava para encontrar o homem grisalho do paletó cinza-chumbo, sério demais para a gravata contemporânea, que não combinava com o comportamento antiquado. Enquanto a aguardava, ele olhava para o relógio, sempre tão inconveniente.

Na casa dele, a esposa que gostava de salto alto escolhia no catálogo a próxima viagem de aniversário de casamento. O amor sempre viaja melhor com a tolerância.

A filha adolescente com brincos de tecido vermelho falava derretido ao telefone com o namorado, um moço que todos os dias ficava na fila do pão, esperando crocância, e que todos os dias pagava com dinheiro trocado para a mulher do caixa, entretida com as manchetes da revista de fofocas.

O ator mudou de namorada de novo. A modelo teve um filho com outro cara. A esposa do jogador de futebol ainda chora de desilusão. O neto do ministro casou-se no exterior. O cantor da voz veludosa anunciou o divórcio.

O dono da banca de jornal que veste casaco jeans informa as horas ao rapaz de boné. Sempre elas. As horas. E as moças. O rapaz olha na lista do celular e digita com habilidade um recado genérico: “oi, linda, vamos sair hoje?”. Em cinco horas, dá para sair com duas. Com sorte, três. A matemática do amor tende sempre a multiplicar.

E há aquela mulher que canta afinado sempre caindo na cantada errada. E o taxista aprisionado à viuvez de uma fotografia, cuja filha agora se distrai escolhendo as lembrancinhas do casamento. E o moço triste dos tênis novos, que passa meia hora conversando com o túmulo do grande amor da vida dele, onde deixa as flores preferidas dela. O amor tarda a morrer. E às vezes não renasce.

A enfermeira do batom cor-de-rosa, que cuidou do amor da vida do moço triste, entre um turno e outro cuida de dois, sem nunca auscultar por qual deles seu coração bate mais. A indecisão dela sempre se lembra de uma das amigas, que dança com o vento uma música espanhola do iPod enquanto o jantar para um esquenta no micro-ondas. Porque o homem charmoso que dançava com ela mudou-se para Brasília com um ritmo mais loiro.

Há as moças solitárias em carros próprios que desviam dos homens solitários em carros tão próprios quanto. E o rapaz da camisa xadrez, que pensa não valer a pena dizer ao amigo que o amor que tem por ele é maior que a amizade que pensa que eles têm. E o senhor do bigode curvado que jura pra si nunca mais amar ninguém, já de olho na vizinha sacudida, para quem o amor é simples.

Há também o homem do futuro, para quem um dia tudo acontece. Um dia que nunca chega, como o amor arrebatador da novela a que a mulher de avental assiste, acariciando o pano de prato.

Uns esperam. Outros vivem.
Uns experimentam. Outros traem.
Todos se machucam.
E amam.

Vertumne e Pomone, escultura de 1905, atualmente no Museu Rodin, em Paris, feita por Camille Claudel, uma talentosa francesa que se envolveu com Rodin. Mas para ele, Camille era uma aventura. Acabou preferindo a namorada a ela. O rompimento deles colaborou para Camille enlouquecer, até ser internada em uma instituição psiquiátrica, onde morreu aos 79 anos de idade.
Uma história de amor triste e real. 

28 abril 2013

Toda céu


Foi numa noite de junho, do outro lado do mundo, que vi o céu estrelado mais estrelado do mundo. O que me surpreendeu foi a desintenção de olhar para cima.

Num quarto de hotel, com camas duplas que agigantam qualquer solidão, levantei-me para tirar da tomada próxima à janela algo que piscava e atrapalhava o tudo em que eu pensava no meio daquele nada. Sem querer, esbarrei na cortina, que, permissiva, deixou entrar o luar. Um luar de presença tão marcante que me fez olhar para cima, bocejando deslumbramento.

Naquele silêncio estrangeiro, um milhão de estrelas reluziam na escuridão de um céu azul-marinho, uniforme, limpo e perfeito, côncavo acima de mim. Abri a janela. Na impossibilidade de recolher todas aquelas luzes, ou de pelo menos resvalar em algumas delas, usei as mãos para apoiar a cabeça, debruçando-me no parapeito.

Era o início do verão em um lugar sem grilos ou qualquer ruído natural que distraísse os sentidos da beleza refletida em meus olhos ainda sonolentos.

O céu mais estrelado do mundo me inundou de gratidão. Aquilo era um privilégio do qual eu sempre me lembraria. Nada mais incomodava: nem sombra de solidão, nem ansiedade pelo tudo que ainda viria, nem interrogações ou insônia. Eu era céu. E me senti abraçada em todos os pontos cardeais, protegida pela abóboda salpicada de boas lembranças, de pessoas queridas que agora lá moram, pessoas amadas que ficaram do outro lado do mundo e não podiam experimentar assistir a tantas e infinitas estrelas brigando por espaço naquele breu.

Pensei no breu que mora na gente. Nas estrelas que piscam quando praticamos boas ações. No breu que alguns olhos adotam para disfarçar amargura. Nas estrelas que brilham mais quando pessoas se apaixonam. No breu que domina os corações egoístas. Nas estrelas que embalam esperanças para presente.

Não sei quanto tempo permaneci ali, olhando sem parar, já fora de mim, vasculhando cada canto daquele cenário redondo e inédito. Tinha receio de nunca mais presenciar tamanho presente, de me perder novamente no tudo que aquele lugar quase deserto teimava em não acolher.

E me lembrei da minha palavra favorita: stupore, do italiano. Um estupor aquilo. A noite do céu estrelado mais estrelado do mundo não podia ser registrada de outra forma que não na memória, por vezes tão incompetente ou incompleta: ou não absorve a totalidade do momento, ou perde as imagens, deixando apenas resquícios das sensações que elas causaram. Prometi me esforçar para não deixar nada esvanecer feito neblina, porque aquele bálsamo é para toda uma vida. Para lembrar da minha pequenez e insignificância em um Universo indescritível. Que tristeza nenhuma permanece quando existe a possibilidade de um céu assim. Que toda alegria merece ser imensa, para alcançar um céu assim. Que tudo é efêmero, porque sempre amanhece. Esse é o segredo das noites: digerir os dias.

Foi naquela noite que me dei conta de que até nossas intenções mais nobres não são nada perto de tanta grandeza, ali, de graça, esperando ser descoberta. Eu sorria e chorava, desejando escancaradamente poder compartilhar aquela experiência com todos que amo. E disponibilizá-la aos que ainda não amo por não conhecê-los. Quem dera todo o mundo olhasse para cima àquela hora e visse o que eu via.

Na manhã seguinte eu voaria de balão no céu da Capadócia, outro deslumbre da minha vida. E qual não foi minha surpresa – outra – quando, ao amanhecer, o céu, limpo de novo, não ostentava nuvem nenhuma. Era outro céu, só azul, claro, cor de céu de desenho infantil, como se as estrelas tivessem ido para algum outro lugar e o céu tivesse voltado ao princípio, para amadurecer mais tarde.

Esse estrelado todo só se repetiu três dias depois, em Pamukkale, um nada mais nada que o nada de antes. Agora, em vez da surpresa da inauguração celeste, o céu estrelado mais estrelado do mundo surgiu no susto. Eu estava no jardim do hotel, pensando sem noção de tempo, quando apagaram todas as luzes, inclusive as da piscina, que chamava para si todas as atenções. E, com um sorriso maroto nos lábios, olhei para cima, cumprimentando o que eu sabia estar ali.

Tudo ali, disponível. Nada importava mais. O nada, o tudo, o céu.



Diário de viagem, Turquia, 21 de junho de 2012.

02 janeiro 2013

De olhos bem abertos

Eu, ano passado

Em noites de insônia, o que não nos deixa dormir são pensamentos. Natural tê-los mais intensos – e confusos – no início de um calendário. São mudanças pulsando, ávidas por realização, que nem sempre queremos. Teimosia também tira o sono.

Então, no meio da madrugada, o que resta são retrospectivas. Onde erramos. Onde acertamos. Há consciência do erro ou do acerto? E se o erro virou acerto? Ou vice-versa? Tudo é de fato relativo. A quê, mesmo?

Pensamos em banho de sal grosso no dia seguinte, para limpar resquícios. Mas é com eles que aprendemos se de olhos abertos estivermos. A tal da insônia de novo. Mudamos o foco – ou a falta dele – para algo mais prático, para tabular organização: um bloco sempre à mão, de preferência com pauta, porque é muita pretensão querer escrever certo por linhas tortas. Até o bloco, a pauta, a organização e as ideias dormirem em sono profundo em algum canto remoto do porta-luvas, da bolsa, da gaveta, do criado-mudo ou de um espaço inútil qualquer. Pelo menos alguma coisa dorme nesse ambiente insone.

E nos lembramos dos desejos adormecidos até então. Não contentes, e talvez pela falta do que fazer no silêncio, os ressuscitamos. Tem graça acordar recordações inconcretas. Olhamos ao redor: os livros que não lemos por falta de tempo, de vontade ou por sono demais. Aliás, se pudéssemos mandar nesse último, não haveria insônia nem livros não lidos, apenas olhos vermelhos em outras horas. De choro, é provável. É quando nos comprometemos a não chorar mais tanto. Mas cada lágrima lembrada puxa outra ainda mais chorosa e, em vez de dormir, lacrimejamos devagar, prometendo nunca mais sucumbir. A firmeza da resolução, entretanto, sinaliza incômodo: uma insensibilidade que não nos pertence. A luz começa a faiscar, resultado da intermitência entre olhos cansados e consciência de nossa capacidade de amar, cada vez maior, como o algarismo que denomina o ano novo. Uma capacidade que nos alarga por dentro mas que, quase sempre, espreme nossa alma bem apertadinho. É nesse momento que revisitamos os relacionamentos, buscando conclusões inconclusas, alguma consolação, uma saudade, explicação mergulhada em uma xícara de chá. Coisas assim nunca dormem.

Arriscamos olhar para o relógio, na esperança de que o tempo não tenha passado demais, para podermos descansar quando a insônia desistir. Mas é o tempo que desiste de nós, sempre atrasados, correndo atrás do impalpável.

É melhor não pensar nisso. Fechemos os olhos para recomeçar. Hoje é outro dia.