11 dezembro 2011

Casal

Um casal, em Madri

Faria tudo de novo. Amaria intensamente, como se amanhã não houvesse. Choraria todas as dúvidas de sempre e perderia noites maldormidas pela ansiedade incomodando debaixo do colchão. Mas olharia mais nos olhos – eles sempre falam mais alto do que qualquer enxurrada linguística.

Mesmo sabendo do fim, faria tudo de novo. Riria os momentos divertidos juntos, dedicaria os melhores pensamentos, torceria para dar certo, ainda que caminhasse para dar errado. Sempre mergulhava assim nas coisas; era a forma de enfrentar o medo de não ter oportunidades suficientes para viver tudo. Coragem demais é medo do avesso. Cautela demais é coragem contida.

Teria as mesmas brigas: são elas que frequentemente desnudam sentimentos encortinados, comentários não ditos, sinceridades refreadas pelo receio de magoar. Amor é tanto receio! De magoar, de desiludir, de decepcionar, de mostrar os defeitos, a natureza, o instinto. Sempre achava que, num relacionamento amoroso, os envolvidos despendiam mais energia tentando contornar os receios do que se dedicando mais objetivamente ao outro. Como tinha de ser. Mas nunca era.

Faria as mesmas viagens, as mesmas descobertas. Tiraria as mesmas fotos, as mesmas conclusões, talvez mais panorâmicas para evitar tanto equívoco. Daria os mesmos créditos exacerbados ao deslumbre. Mas abriria mão de todos os minutos que não havia reservado ao relacionamento. Poderia ser mais. Poderia ser ainda melhor. Mesmo sentindo a dor do fim, queria ter ido mais fundo. Teria valido a pena. (Fique tranquilo: nesses tempos modernos, ninguém mais morre de amor. Apenas sobrevive. E é isso que dói.)

Embora tivesse aberto o coração, tê-lo-ia escancarado até as portas baterem violentas na parede, com aquela ventania toda que vasculhava os poros. E continuaria absorvendo cada recusa como tragédia e cada consentimento como prêmio. Manteria as mãos dadas com o intenso. Era assim.

Faria tudo de novo. Amaria intensamente, como se amanhã não houvesse. Porque o amanhã que conhecia era difícil demais de aceitar. Não daria o braço a torcer à conformação. Isso não combina com amor, desses de verdade. Não sufocaria os sentimentos assim, como quem apaga uma chama com a saliva.

Ainda tinha muito o que dizer.



"Desate o nó que te prendeu
A uma pessoa que nunca te mereceu"
Ando só - Engenheiros do Hawaii

10 setembro 2011

Varal

Pertences num varal do Porto - Portugal


Tenho uma calça com a barra esfiapada, um abajur que acende sozinho quando a luz pisca, um punhado de inseguranças e um casaco maior que eu.

Tenho rinite, desassossego, cócegas, miopia, astigmatismo, soluços frequentes, dúvidas, uma escova de dentes nova e cólica menstrual.

Tenho horror a Carnaval, pagode, clichês, vírgula separando sujeito de verbo, política brasileira, guarda-chuva molhado e gente intrometida, mas simpatia por futebol, italianos, Paris, crianças, quindins e pela rainha da Inglaterra.

Tenho mais o que fazer.

Tenho manequim 40 num metro e sessenta e sete empilhados em cinquenta e quatro quilos, além de canelas finas, cotovelos ossudos, joelhos que estalam, olhos verdes e preferência por gérberas.

Tenho de acordar cedo, sobreviver ao trânsito, aguentar inconveniências e ignorar más companhias.

Tenho aversão a velocidade, cigarro, esportes radicais, ar condicionado, queijo, requeijão, ricota, leite puro, iogurte, qualhada e variações – que são muitas.

Tenho boa memória (já foi melhor), ótimas lembranças, coleção de dicionários, CDs que não ouço mais, filmes que ainda não vi, obsessão por livros, tagarelice e palavras correndo soltas, dia e noite, num pensamento incessante.

Tenho uma cama de solteiro, um diploma universitário, amigos e sempre uma caneta para emprestar.

Tenho vontade de ser fluente em francês, de saber fazer pão, de ter outros cães e de sentir cheiro de panetone no forno em algumas noites que encerram dias exaustos.

Tenho por bem não fazer aos outros o que eu não gostaria que fizessem comigo.

Tenho fundo de garantia que não me garante nada, um futuro incerto, frio na barriga, passaporte, juízo demais e frustrações aqui e ali que pontilham meu cotidiano.

Tenho nariz grande, opinião, sobrinhos, afilhados, cuidado e medo de levar tiro.

E tenho amor. Além de ideias na janela.

29 abril 2011

Em se plantando, tudo dá

Flores em um canteiro de Madri

Comecei as férias visitando uma exposição muito bonita sobre a arte na mecânica do movimento. Lá, vi lindíssimas caixas de música, grandes e pequenas, novas e antigas. Comecei a semana querendo uma sublime, feita de marchetaria, com acabamento impecável e som divino, de preferência com minha sinfonia preferida, mesmo que com menos notas, mas suficientes para tornar a melodia reconhecível.

Então, descobri que meu querer custa caríssimo, ainda que valha cada centavo. Presente perfeito de casamento para o príncipe que se casa amanhã (e não é que príncipes existem?!). Fiquei sabendo também que teria de buscá-lo – o querer, não o príncipe – em outro continente, porque, de tão valioso, ainda não chegou a terras tupiniquins, nem aos vizinhos das terras tupiniquins, menos ainda aos descobridores destes solo, ó pátria amada, Brasil.

Guardei o querer como sonho revestido de intenção, como um bombom delicioso, embrulhado em papel bonito, para ser demoradamente degustado mais tarde, e continuei a semana aproveitando o tempo, a liberdade, o descanso, o corpo espalhado em desfrute de um cotidiano sem pressão, sem imposições, sem trânsito, com companhias escolhidas a dedo, em dias comandados por mim, nos quais o relógio permanece calado com um esparadrapo enorme limitando-lhe os movimentos.

Saí pela cidade para aproveitá-la como turista, não como trabalhadora; como cidadã, não como um número que compõe uma população esgotada. E deslumbrei-me com o que há muito tempo não via, com algo de que sentia imensa falta.

Hoje fui ao meu lugar predileto da cidade. O objetivo era apresentá-lo ao meu maravilhoso tio, à minha mãe e a um hóspede português extremamente sensível que tem tornado meus dias juvenis muito interessantes: o Sr. Ernesto, de 79 anos recém-completos, um senhor de infância sofrida, pobre, que aprendeu a fazer o caldo para a mãe aos cinco anos de idade, para que ela tivesse o que comer quando voltasse da lida, um menino que ia para a plantação de arroz aos seis, lidando com a terra, com o sofrimento, com os infinitos tapas que o mundo lhe dava a cada impossibilidade constatada. Um homem que aprendeu a ler sozinho e que chorou ao ganhar ontem um livro de presente de aniversário.

O Sr. Ernesto se deslumbra com a cultura como uma criança que aprende a juntar blocos coloridos. Para ele, não é tarde para aprender, sorver, admirar. Hoje, ao assistirmos ao filme sobre a origem da língua portuguesa no museu que inspira minha profissão, olhei para o semblante dele ao meu lado, levemente iluminado pela claridade da projeção, e contive uma lágrima feliz. Um português descobrindo o Brasil! Finalmente pude retribuir a Portugal o que Portugal me proporcionou: minha origem, minha língua, minha família, a melhor comida do mundo, meus olhos claros, meu poeta preferido, meu país. Cada descoberta que ele fazia era um sorriso que eu sentia por dentro, ao som da minha caixinha de música dos sonhos. Essa deveria ser a definição de intercâmbio.

E no meio de tanta cultura, nós nos divertimos. Não nos importamos de almoçar numa espelunca; de nos molharmos na chuva inoportuna, de vislumbramos a espera na estação de trem mais bonita daqui, de atravessarmos a rua para descobrir mais, porque ansiar nunca faz mal.

E conhecemos quadros, fotografias, pessoas. Apresentei-lhe Tarsila e Portinari, e ele gentilmente mostrou-me Paula Rego, conterrânea talentosa da qual eu nunca ouvira falar. Quando oferecemos o que sabemos, recebemos em troca o que ignoramos.

Até que, a certa altura da tarde molhada, o entusiasmo virou música, e ele e meu tio começaram a cantar Amália Rodrigues no saguão da Pinacoteca. Não importavam os outros, os olhares, a estranheza que a felicidade causa na gente que não a compreende. As palavras, a melodia, tudo o que o momento evocava era Pachelbel tocando bem alto no mundo inteiro partindo de mim.

Eles foram cantando pelas escadas, sob um guarda-chuva preto de bolinhas brancas, arrancando risos dos guardas, da chuva, da moça da bilheteria, das fotografias que dormiam nos panfletos da exposição. E continuaram rindo, alegres, tocando a concertina e dançando o sol e dó até chegarmos à catraca da estação de metrô, onde divertiram outros desconhecidos, apresentando-lhes o bom humor como cartão de visita.

Terminei o dia com uma plenitude que há muito não sentia. O Sr. Ernesto chorou de rir, disse diversas vezes que a viagem já estava paga só por momentos como aqueles. Meu tio transbordava satisfação como há muito não fazia. Voltou para casa sorrindo. Minha mãe teve a oportunidade de constatar – e espero que o tenha feito – que ser feliz é simples, basta substituir cada reclamação por um pouco de humor, dando passagem ao inusitado, reconhecendo que a ignorância existe justamente para dar espaço ao aprendizado. Ter consciência dela é a porta de entrada para usufruir a vida e saber cada vez mais que sabemos tão pouco.

Os grandes compositores de sinfonias certamente deviam se inspirar em sensações como essas, porque Pachelbel é uma trilha sonora perfeita para momentos assim, quando nos sentimos inteiros, completos, plenos, satisfeitos. É a felicidade, da qual eu sentia falta.

Posso ter começado a semana querendo uma obra de arte finíssima e cara, mas terminei o dia de hoje certa não só de ter recebido além do meu querer, mas também de que o Sr. Ernesto merece a caixa de músicas dos meus sonhos muito mais do que eu, com as três partes do Canon, para ouvir com o coração, como agradecimento por me ensinar a viver como se deve: plantando, por onde passarmos, algum ensinamento que recebemos, sem esperar nada em troca, mas acolhendo humildemente o até então desconhecido que nos for porventura ofertado, sem egoísmo, cientes de que as sementes que deixamos podem transformar a paisagem onde germinarem.

13 março 2011

Desilusão

Desilusão,
Desilusão,
Danço eu, dança você,
Na dança da solidão.

(Dança da solidão – Paulinho da Viola)


Hoje passei a tarde com meus afilhados, uma garota esperta de 4 anos e um garotinho engraçado de 2 anos e meio. Eles acham que eu ensino coisas a eles, como desenhar uma joaninha perfeita ou subir no escorregador pelo lado errado. Mas, especialmente hoje, eles me ensinaram muita coisa.

As crianças lidam com a verdade de um jeito muito transparente, o que torna tudo muito fácil. Não se constrangem, apenas falam. E o jeito como falam, o olhar que destinam ao interlocutor são suficientes para decifrar uma intenção genuína de simplesmente dizer o que se passa na cabeça e no coração, sem o objetivo de ofender, enganar, omitir, dissimular. Nelas, é tudo sincero. Por que nascemos certos e, ao crescermos, vamos ficando todos errados? Por que desaprendemos a dizer a verdade? De onde vem o medo de magoar, de ofender, quando a intenção nunca foi essa? É na vida adulta que a gente aprende a ter intenções erradas e passa a distorcer tudo.

A certa altura da tarde, brincamos de esconde-esconde. Eu ainda era pequena na última vez em que me escondi debaixo de uma pia ou me agachei atrás de uma porta. Hoje foi divertido lembrar como é ser criança e revelador observar que, mesmo estando grande, bem à vista dos menores, o olhar deles é carregado de ingenuidade. Eles procuram o óbvio porque não desconfiam de que a vida pode ser diferente do que se mostra. É preto no branco, a verdade, a transparência. Não tem mistério. Eles colocam a cabecinha para dentro de um cômodo e, se não encontram lá o que procuram nessa olhadela, passam para o seguinte. Não têm a malícia de olhar atrás da porta, dentro do armário, debaixo da pia, atrás da cortina. Não sentem a necessidade de desvelar porque não sabem se esconder. Nós, adultos, é que os ensinamos a “serem mais espertos”.

Pena que, ao crescerem, vão descobrir que os adultos também brincam de esconde-esconde. Alguns são tão bons nisso que conseguem esconder-se de si mesmos tão bem a ponto de não se encontrarem mais. E, como na brincadeira infantil, levam consigo aqueles que os procuram. Mas a graça acaba: ninguém quer continuar brincando de encontrar o que não quer ser encontrado. Uma hora, desiste.


À medida que crescemos e vamos perdendo essa saudável maneira de enxergar o mundo, somos levados a nos comportar como todo o resto se comporta, talvez como forma de nos protegermos do que os próprios adultos criaram: tornamo-nos hipócritas em nome de uma sociedade contaminada, que revida com desilusão ou isolamento quando confrontada com o íntegro; deixamos de combater o egoísmo, como fazíamos quando pequenos – “divida com seu irmão”; “agora é a vez do coleguinha brincar com este brinquedo”; calamos mais e falamos menos, dando mais chance a mal-entendidos, mentiras, julgamentos. Esquecemos a verdade porque já não sabemos mais como lidar com ela. E vamos sobrevivendo.

Por outro lado, se tentarmos resgatar os valores da infância, seremos constantemente massacrados. Se dissermos o que sentimos, perdemos o amor (porque ele se assusta), o emprego (porque chefes e colegas de trabalho se sentem ameaçados com tanta sinceridade), a família (que, por mais que se esforce, não entende os sentimentos), o lugar no mundo. Sinceridade demais ofende.

O problema de tornar-se adulto com consciência dos valores íntegros da infância é que isso gera um sofrimento – e um inconformismo – sem tamanho. Esperamos que a vida seja justa como nas histórias infantis, que o bem sempre vença, que os maus sejam punidos, que recebamos recompensa ou sejamos valorizados por termos nos comportado como o esperado, que encontremos o amor e sejamos correspondidos. É tudo uma bobagem, que deve estar em letras miúdas nos livros, em uma daquelas páginas que ninguém lê, porque a gente só descobre crescendo.

Trabalhamos honestamente e temos as casas destruídas pela água de chuvas incessantes ou de ondas anormais. Agimos corretamente no trânsito e presenciamos um milhão de infrações impunes. Pagamos as contas em dia e temos a conta bancária carcomida por impostos avassaladores. Somos eficientes, éticos e corretos no emprego e vemos o colega incompetente, preguiçoso e dissimulado ser promovido, enquanto permanecemos no mesmo lugar (com um pouco de perspicácia, acabamos descobrindo que, na vida corporativa, as promoções estão majoritariamente ligadas a troca de favores, rabo preso, saia curta ou decote profundo). Somos dedicados à pessoa amada e, não raro, desprezados, trocados, traídos, enganados, abandonados ou preteridos – há quem prefira a solidão à nossa companhia.

Não somos preparados na infância para tantos baques, a não ser que entremos no jogo e prefiramos sempre nos esconder a ter a iniciativa de procurar. É mais fácil ficar imóvel, vendo os outros passarem.

Entretanto, ainda hoje, olhando para os meus afilhados buscando cantinhos em branco, para tentar o novo, em folhas já desenhadas por outras crianças, tive a clara dimensão do que é recomeçar, encontrar novo espaço, uma abertura, um motivo para fazer o inédito. As crianças, mesmo sem querer, lidam bem com o passado, que, para elas, é sempre recente. Desenham por cima se preciso for.

Elas olham para a frente, esperando o melhor, ainda que com ingenuidade. Por isso são mais felizes.



Legenda da imagem: Fachada da igreja da Sagrada Família, de Gaudí. Barcelona.

28 fevereiro 2011

Quanto tempo demora?

Daqui a um mês,
quando você voltar,
a Lua vai estar cheia
e no mesmo lugar


Quanto tempo demora um mês,
Biquíni Cavadão.


Acordei com o seu gosto e a lembrança do seu rosto. Mas, daqui a um mês, ela vai ter se dissipado, eu sei. Quando salpicamos os dias de lacuna, o tempo acaba apagando tudo, até as memórias mais resistentes. No começo, é um esforço para não deixar as reminiscências submergirem, trazendo-as à tona toda hora, num resgate incessante. Há quem diga que isso se chama esperança. Eu chamo de teimosia. A gente resiste a ver morrer, quer sempre salvar. Dá um certo desespero, é um derramamento de angústias. Mas tudo o que é sedimento uma hora sucumbe e afunda. Devagar. O inflexível não tem como ser fácil.

Não é fim do mundo. Até porque ele não acaba. Daqui a um mês, a Lua vai continuar no mesmo lugar.

Se eu pudesse escolher outra forma de ser, seria menos em vez de querer sempre ser mais. Eu me contentaria com a Lua imutável, com o tempo pastoso, a falta de gosto, a ausência. Acharia normal. Não me esforçaria para salvar nada. Deixaria passar. Eu me anestesiaria mais. Sonharia mais, realizaria menos. Seria menos esperançosa, mais mitológica, menos humana. Se eu pudesse escolher, nada eu sentiria. Mais simples.

E a saudade em mim agora, quanto tempo será que demora? Sentimentos assim não demoram. Perduram. Daqui a um mês, um ano, uma década.

E a Lua lá, no mesmo lugar.





Os versos destacados foram retirados da letra da música "Quanto tempo demora um mês", cantada por Biquíni Cavadão. Ao contrário deste texto, a música dá outro sentido para os versos. Ouça-a.

05 fevereiro 2011

A falta que você me faz

Serra Negra, SP, numa tarde em que Deus resolveu tomar sopa no céu


Deveria ser lei todo mundo ter avó até o final da vida, porque a gente passa a maior parte dela sentindo falta de uma. E não me refiro aos doces, aos afagos cúmplices, à piscina de afeto azulzinha só de olhar. Sinto falta da sabedoria que só as avós têm. Elas sempre sabem o que fazer bem na hora em que não sabemos. Elas pescam as dúvidas em nossos olhos, sem que tenhamos de pronunciar angústia.

Quando eu era bem pequena, minha avó materna me visitava às quintas, quando a feira fugia do dia da semana para se instalar na rua em barracas bem coloridas. Ela chegava um pouco antes do almoço, carregando uma panela cor de abóbora com tampa preta, onde guardava salsichas apetitosas mergulhadas em molho de tomate caseiro. Prendia a tampa à panela com uma manobra de elástico. Logo atrás vinha uma tigelinha cor de areia de tampa de vidro transparente que deixava à mostra uma farofinha gostosa.

As quintas eram meus dias preferidos porque era quando eu mais tinha avó. Num desses dias, ganhei dela uma lupinha para observar formigas. Até então, eu nunca havia reparado no minúsculo. Essa é outra habilidade das avós: ensinar a gente a ampliar o campo visual.

Foi com a minha avó que aprendi que não se pode gastar com uma mão o que não se tem na outra. Às quintas ela me dava moedas, mas me incentivava a poupá-las em vez de sair desembestada para comprar uma vontade. Quando eu era um pouco maior, mas ainda pequena diante de parâmetros adultos, veio outra lição: o dinheiro se conquista, não se ganha. Eu pintava umas gravuras que achava bonitas e minha avó as comprava de mim com mais centavos. Devia jogá-las fora, hoje eu sei.

Minha avó era severa na educação dos netos. Falava baixo, mas sempre firme. Tinha horror a escândalo, louça e toalha de plástico, xícara de borda grossa, guardanapo de papel. Vestia-se sempre com roupas simples mas de caimento perfeito, era recatada. Embora não tivesse completado o ensino fundamental, teve educação europeia: aprendera boas maneiras como governanta de uma família alemã de cuja fazenda o pai fora administrador. Comigo nunca falou alemão, mas minha mãe afirma que minha avó conhecia muitas palavras dessa língua.

Tinha nome literário ela: Julieta. Tinha um irmão Romeu. Entretanto, embora alfabetizada, minha avó não era de ler histórias em livros. Ela me contava algumas de cabeça. Uma delas era uma parlenda – hoje eu sei o nome – de um caranguejo que havia brigado com um galo e levado uma bicada. Saía por aí pedindo um “pano porque o galo me pinicou” e desenrolavam-se muitas exigências dependentes umas das outras para que o bicho obtivesse o tal pano. Foi a primeira vez em que tive contato com um final não feliz, porque, mediante tanta barganha, o pobre-diabo acabava morrendo. Ao terminar o caso, minha avó ria. Eu não entendia a graça e achava horrível as pessoas terem se recusado a ajudar alguém necessitado por pensarem em se beneficiar disso de alguma forma. Sábia, minha avó. Estava me preparando para o mundo: no fundo somos todos caranguejos implorando por panos para estancar feridas.

Todas essas lembranças, porém, não são suficientes para eu me sentir completa. Minha avó sempre falta, porque tem muita coisa que eu não tive tempo de perguntar a ela e que eu tenho certeza de que ela saberia me responder com o pé nas costas, com toda aquela experiência que o rosto denunciava. Ela me entendia mais do que meus pais porque era mãe ao quadrado.

Deveria ser proibido as avós morrerem no início da adolescência da gente, quando mais precisamos delas. A gente acaba se virando sozinha, é verdade, mas nunca tão bem. E termina arrastando para a vida adulta todas as perguntas que não puderam ser pronunciadas e que manual, guru ou google nenhum respondem.

Penso na minha avó todos os dias, porque ela faz parte de mim, porque foi com ela que aprendi a me portar direito, a zelar por meus pertences, a ser criativa, solidária, responsável, observadora e sensível. É nela que me espelho para continuar uma mulher forte. Ela era dona de si.

Mas hoje, especialmente, eu sinto uma falta gigante da minha avó. Hoje é um daqueles dias sem saída, em que tentamos escalar as paredes mesmo conscientes de sua altura. Nessas situações, dona Julieta não me estenderia uma escada, tenho certeza, mas me ensinaria a construir uma com o que eu tivesse à mão.

Eu olho, olho, olho ao redor. Até enxergo possibilidades. Mas não sei montar com elas uma escada. Continuo perdida, me debatendo com perguntas e mais perguntas me tirando a voz, acumulando na garganta. Perguntas que só minha avó, do alto de sua sabedoria, saberia responder, ainda que sem palavras.

Queria que hoje fosse quinta-feira.

16 janeiro 2011

Prato do dia

Um belo dia você se senta para fazer uma refeição e, quando a termina, percebe que sua vida mudou. Você experimentou algum alimento inédito ao seu paladar, ou recebeu uma ligação reveladora no celular, não tendo resistido à tentação de atendê-la mastigando. Ou, ainda, ao saborear um gosto preferido, teve um estalo acompanhado de uma ideia milionária. Pode ter se lembrado de um desejo de anteontem de mandar flores para uma senhora doente (o que amanhã será retribuído com uma receita divina de bolinhos de chuva) ou decidido mudar de profissão.

A vida pode mudar durante uma refeição aparentemente insignificante, feita num dia normal, com o tempo parcialmente nublado sujeito a pancadas de chuva, mas com um solzinho no final da tarde. Pode mudar logo após você ter escolhido uma salada ou preferido evitar a sobremesa -- ou a indigestão.

Apesar de saber disso, lá no fundinho da consciência a gente pensa que a vida só muda por causa da loteria, de formatura, de um acidente gravíssimo, de uma gravidez descuidada, um tapa na cara, desemprego, morte. Só configura mudança o que é grande, para caber em caminhão ou não caber mais na gente.

Mas o minúsculo muda tanto quanto o gigante. Aqui, ali, hoje, daqui a pouco, de novo, amanhã. A soma do microscópico pode ser uma mudança e tanto. Uma palavrinha mal colocada muda um diálogo. Um instantinho atrasado esfria o prato. Um beijinho inócuo, o namoro. Um buraquinho na blusa muda os planos. Um descontinho, a conta bancária. Um tiquinho de miopia requer novos óculos. Uma moto caída na avenida, novos caminhos. Um megapixel altera toda uma resolução. Uma notinha fora do lugar desafina uma canção. Um centimetrozinho altera o número da calça. Um pouquinho mais de sal estraga a refeição.

É no pequeno que o grande muda: a recorrência de pequenas gentilezas pode reconfigurar toda uma cultura, e a repetição de pequenos deslizes pode destruir toda uma relação.

É no mínimo que tudo muda todos os dias. A gente é que não percebe, porque mastigamos demais, remoendo a falta de gosto, ou engolimos de qualquer jeito, sem saborear a pressa.

Até que, um belo dia, ao sentar-se para fazer uma refeição, a gente tem algum tipo de estalo: sai da catatonia por causa de um amargo na boca ou fica vermelho devido a um sabor apimentado demais, e, finalmente, se permite mudar o cardápio.

O lombo de bacalhau a Santo Ofício, da cervejaria Trindade de Lisboa, mudou meu paladar e virou uma das minhas melhores memórias gastronômicas. Só a descrição do cardápio já dá água na boca: "lombo de bacalhau assado na brasa deitado sobre uma grossa fatia de pão cozido feito pelos nossos irmãos alentejanos, acompanha-o uma comitiva de batatinha miúda cozida com casca e grelos de nossa horta salteados com azeite virgem e alho".