27 agosto 2007

Da cegueira de cada um


"Só num mundo de cegos, as coisas serão o que realmente são"
Ensaio sobre a cegueira, José Saramago


Uma das minhas cenas favoritas do cinema está em um de meus filmes preferidos: O fabuloso destino de Amelie Poulain.

A personagem principal, vivida pela adorável Audrey Tautou, é diferente de tudo. Enxerga as pessoas mais ou menos como a Blimunda, de O memorial do convento: extrai-lhes a alma, inserindo-a num mundo de possibilidades. Assim, acaba brincando com a vida das personagens do filme, mostrando-lhes outros pontos de vista.

Nesse intuito, de fazer as pessoas verem o que não podem ou não conseguem, Amelie pega um senhor cego pelo braço e percorre uma rua inteira, descrevendo a ele tudo o que a deficiência o impede de ver, desde os melões dispostos em uma banca, até o estado de espírito das pessoas que passam. Mesmo atordoado com tanta informação, a alma dele sorri de um jeito agradecido, porque tudo o que ele podia ver na rua em que sempre passava eram apenas cheiros, vozes e sensações.

Então, quando me dá saudade de ser humano, desses capazes de enxergar além da aparência, eu revejo essa cena e sempre me pergunto o quanto aquele senhor cego é mais feliz do que todos aqueles que Amelie descreve a ele.

"Como um cego pode ser feliz?", você deve estar se perguntando... A cegueira é, por um lado, uma limitação física, decerto. Mas, por outro, é um portal que permite ir além do que todo mundo vê. Só os cegos alcançam o que os olhos não vêem, só eles entendem a essência das coisas sem se deslumbrar pela imagem, pela cor, só eles valorizam os cheiros, as vozes e as sensações de uma maneira delicada e profunda, numa dimensão que, apesar de escura, traz muito esclarecimento.

Ver o que as pessoas carregam dentro de si, enxergar o sentimento delas sem precisar interpretar-lhes as feições, aguça os sentidos de uma forma invejável. É ver sem precisar de olhos. É debruçar-se no outro pelo que ele é, não pelo que veste, pelo penteado que tem, a cor do olho, o sorriso perfeito, a cor das bochechas, o furinho no queixo ou os lábios rosados.

E, ironicamente, tanta gente com olhos sãos sofre de cegueira, tantos míopes que, mesmo de óculos, não enxergam um palmo à frente do nariz, tantos olhos de todas as cores perdem tempo olhando para o nada em vez de fecharem-se e olharem para dentro de si, onde estão as respostas que procuram, tanto óbvio salta aos olhos e ninguém vê... Uma ilusão de óptica, sem dúvida.

Então, por tudo isso, sempre que vejo a minha cena preferida do filme, não penso na bondade da Amelie em fazer o que, para ela, era provocar uma mudança de perspectiva, porque, se analisarmos bem, o senhor cego do filme não precisava que Amelie lhe descrevesse o que ele não enxergava. Ela quis ser gentil, numa atitude proveniente da visão ingênua de que ele estava perdendo o melhor de toda a rua movimentada num dia de sol. Mas ele foi mais gentil ainda em não lhe recusar a gentileza, porque decerto enxergava muito mais do que ela. E, ao contrário de quem vê, ele não quis ser rude.



Aqui em São Paulo, a Fundação Dorina Nowill aceita voluntários que tenham quatro horas contínuas semanais disponíveis. Uma das funções mais legais é ser um ledor: levar literatura para quem só consegue ler em braile. Você pode ajudar gravando livros falados ou executando outras tarefas, colocando à disposição dos deficientes visuais um talento ou habilidade que você tenha. Fazer qualquer tipo de serviço voluntário é deixar de ser cego.

11 agosto 2007

Pelos seus belos olhos



O casal está jantando numa noite normal. Pouco tempo de namoro, mas um silêncio que compete com a eternidade. Olhavam-se de vez em quando, mas os olhares não combinavam. As intenções eram diferentes, eles não percebiam.

De repente, palavras dela:

Você não vai falar nada? — artifício feminino para demonstrar iniciativa.
Falar o quê? — instinto masculino defensivo.
Ah, qualquer coisa. Você tá muito calado, eu tô achando esquisito demais...
É que eu tô pensando...
Em quê? — curiosidade feminina inoportuna.
Então, justamente, eu não sei... — ingenuidade masculina que o universo feminino é incapaz de ler.
Como assim? — curiosidade feminina insistentemente inoportuna.
É, eu não sei... Eu não sei em que pensar, o que querer, o que fazer... — ingenuidade masculina não-cognitiva para o cérebro feminino.
Em relação a que exatamente? — inconveniência verbalizada.
Bem... er... a tudo.

Ela pára de mastigar e olha para ele de um jeito incrédulo. Engole o pedaço de pizza para balbuciar:

Tudo? Inclusive nós? — necessidade feminina de confirmação de uma mensagem previamente compreendida.
É por isso que eu estava quieto. Você é que puxou o assunto... — justificativa masculina objetivamente insuficiente.
Lógico! Silêncio não combina com pizza nem com namoro! — indignação invadindo a razão.
Eu não sei o que eu quero... Se quero continuar no emprego que eu tenho ou tentar algo diferente, se quero viajar pelo mundo ou fincar raiz em algum lugar, se quero pintar meu quarto de azul ou deixar como está, se quero continuar namorando ou ficar sozinho, eu não sei, eu não sei! Isso está me consumindo! — sinceridade masculina com grandes chances de ser mal interpretada pela percepção feminina.

Ela desiste de comer. Aquilo era de tirar o apetite.

Sinceramente, eu nunca vi alguém não saber o que quer! Todo mundo sempre quer algo. Pode ser o mais aparentemente impossível, sei lá, escalar o Everest, visitar a Lua, transar com a Madonna, acordar com uma moto nova na garagem, enfim, qualquer coisa, porque o mundo está consumista demais... É natural querer tudo! Nunca vi ninguém querer nada! — razão totalmente tomada pela indignação.
Tá vendo agora: eu. Não é por mal, sabe, eu tô sendo bem franco com você... Eu acho que essa coisa de não saber o que eu quero é da minha natureza... — justificativa masculina objetiva e irritantemente insuficiente.
Por quê? Você nasceu assim, por acaso? — ironia feminina cruel que quer dizer "tente outra explicação, por favor".
Não, não... Eu quis dizer que eu fui ficando assim ao longo do tempo... Eu acho... — justificativa masculina indecifrável para o universo feminino.
Ai, graças aos céus ainda tem salvação! Olha aí! Você disse "eu quis dizer". Tá vendo? No fundo, no fundo você quer alguma coisa... — sutileza feminina indecifrável para o universo masculino.
Hã? Eu não sei o que você tá tentando dizer com isso, mas eu tô aqui com um problema aparentemente sem solução... — tentativa masculina de trazer o universo feminino para a realidade.
Vamos tentar racionalizar essa situação. Você disse que não sabe se quer continuar namorando ou se quer ficar sozinho. Isso a gente precisa decidir, porque, não querendo pressionar, sabe, mas me diz respeito... — mania feminina de pôr os pingos nos is quando tudo é hiato.
Claro, é verdade — mania masculina de ser sucinto ao demonstrar sentimento.

Ele descansa o garfo no prato e olha para ela. Ela respira fundo e diz:

Você gosta de mim? — resquício da Inquisição.
Gosto. Você é legal, a gente se dá bem, eu admiro seu jeito, te acho bonita, rola química e...
Pode ir parando por aí... — resquício da ditadura.
Ué, por quê? — lentidão masculina em acompanhar a complexidade do universo feminino.
Porque, quando a gente quer alguma coisa, o olhar brilha. Eu vi agorinha nos seus olhos. Você falando assim de mim e seu olhar opaco de dar dó! — ingenuidade feminina em tentar explicar o que não é cognitivo para o cérebro masculino.
É impressão sua, não é nada pessoal, é um momento de indecisão meu, entende, não tem nada a ver com olhar... — justificativa masculina óbvia para o universo masculino mas ainda insuficiente para o feminino.
Ah, tem sim, senhor! Vai por mim: olhar opaco acaba com tudo, você nem precisa abrir a boca. Eu notei, o pior é que eu notei! Você não está mais a fim de mim, está? — leve indício de democracia pelo benefício da dúvida.
Eu tô! Quer dizer, não sei se eu tô. Não, não, eu tô sim! — sinceridade masculina entendida como cinismo pelo universo feminino.
Olha aí! Aconteceu de novo! Quando você disse "eu tô", seu olhar não brilhou! Nem uma faisquinha, nada! — típica atitude feminina de interpretar as profundezas que o universo masculino não alcança.
Pára de drama! Todo esse auê porque eu não sei o que eu quero?! Daqui a pouco isso passa... — tentativa masculina de trazer o universo feminino novamente para a superfície.
Não! Os olhares conversam, sabia? E mulher saca tudo pelo olhar. Ela só não entende se não quiser. — tentativa feminina de explicar as profundezas ao universo masculino.

Ela se levanta, pega a bolsa, dá um beijo no rosto dele com uma compreensão de fim-de-mundo, um gosto assim, de pizza com nunca mais, e diz, de um jeito característico feminino de deixar tudo enervantemente subentendido:

Não saber o que quer é o de menos, qualquer mulher compreende. O problema é não olhar brilhante... — jeito feminino teimoso de dizer "venha atrás de mim assim que eu sair e me olhe com vontade".

Ela vai embora. Ele fica olhando para o prato — jeito masculino de tentar entender o que não faz sentido e deixar as oportunidades passarem.

O casal estava jantando numa noite normal. Pouco tempo de namoro, mas um silêncio que competia com a eternidade. Os olhares não combinaram. As intenções foram diferentes. E ninguém percebeu.



A imagem que ilustra este post é um papel de parede que você encontra aqui.