27 dezembro 2006

O caso das prateleiras


Esperança está pensando no que deve encostar e o que deve deixar à mão. Quer deixar de lado o excesso de peso, de preguiça, de seriedade, de procrastinação ou de vontade, dando lugar à ânsia de satisfazer ideais de ano-novo. Faz lista, promessa, anotação, simpatia, reza, mantra e meditação. Faz faxina na índole, varre da mente as idéias negativas, tira o pó dos velhos desejos e respira fundo, como se o primeiro de ano fosse algum tipo miraculoso de tira-manchas.

Se não bastasse a pressão que essa época pré-ano-novo geralmente causa nas pessoas, tal elucubração de Esperança fora motivada pela Dúvida, a irmã caçula e fiel, quase sempre estraga-prazeres: “O que você vai colocar nas prateleiras que ganhou, Esperança?”. Três prateleiras vazias no quarto, ultimamente tão bagunçado de aindas espalhados por todos os cantos, caixas amassadas amontoando quaisquer-dias, muitos pedaços de daqui-a-poucos pendurados em cabides desordenados.

Diante da Dúvida, Esperança resolveu colocar a ordem antes do progresso daquela bagunça toda. Mas olhava para as prateleiras e, com o indicador esticado sobre os lábios, pensava sem parar: “o que é que vou colocar aqui?”. Eram tantas as coisas das quais queria se desfazer. E outras tantas deveriam ficar organizadas, para que pudesse alcançá-las sempre, sabendo exatamente onde era o lugar delas. Puxa vida, eram apenas três prateleiras para aquela vastidão de vai-chegar, espera-aís, futuros e serás que Esperança decidiu ser democrática. Para não magoar seus pertences — porque há muito de sentimentos nas coisas que guardamos —, ela achou por bem usar as prateleiras para coisas novas, porque o ano seria novo, e tudo, então, deveria sê-lo também.

Sentou-se em sua cama fofa coberta por uma colcha de retalhos, que isso combinava com ela, e ficou matutando que novas deveria adquirir para colocar ali. Boas-novas, só podia ser. E o resto seria organizado ali mesmo, no chão, nas caixas, nos armários e cabides espalhados onde a Esperança dormia. O que não servisse ela poderia até passar para a Dúvida, que se encarregaria de dar um fim, se assim conseguisse.

Começou colocando amores. Achou melhor mais de um, porque há muitos tipos e são todos tão coloridos que ficariam bonitos ali, na prateleira mais alta. Para tanto, resolveu jogar fora os muitos ele-não-dá-continuidade-ao-relacionamento-mas-é-legal, sins-ele-vai-me-ligar e afins. Esse tipo de artigo não combinava mais com ela. Era uma Esperança renovada e queria amor de verdade, desses de tirar o fôlego, disparar o coração e trazer todos os oceanos do mundo aos olhos emocionados. Os suspiros tristonhos com pitadas de decepção que ficassem com a Dúvida. Esperança queria em sua prateleira algo mais concreto, que ela soubesse estar de fato ali quando ela precisasse, em que pudesse tocar.

Depois, escolheu saúde e disposição, que deixou lado a lado, em pé, amparadas por pesos de mármore em forma de estrela, que isso ficava lindo e impedia que saíssem dali. Também arrumou diversão, que não sabia por que cargas d’água escorregava da prateleira toda santa hora. Descobriu que ficava melhor na do meio, pois exigia um certo equilíbrio. Trocou os velhos minha-promoção-vai-chegar por trabalho-bem-feito-e-prazeroso. Jogou fora um monte de quero-ir, colocando no lugar uma dose generosa de viagens inesquecíveis. Desfez-se dos sorrisos amarelos e colocou na prateleira de baixo muita gargalhada sincera, com abraços de verdade e olhares profundos, daqueles que tudo dizem sem soltar palavra.

Mas ainda havia espaço. Esperança, então, resolveu deixá-lo lá, para muitos o-que-vieres. Desses há diversos modelos: novas amizades, aprendizado, experiência, desconhecido. Quando chegassem, precisariam de um lugarzinho.

Nem a Dúvida poderia achar defeito naquela arrumação porque, pela primeira vez na vida, Esperança tinha sentido determinação. Teria, finalmente, um ano novíssimo em folha, brilhando de limpo, cheiroso e diferente, livre das insistências tolas que em nada dão.

Estava resolvido. Era, agora, uma Esperança otimista, respirando limpo para um tempo novo, ali, ao alcance da mão e dos olhos, mais palpável, mais possível, menos ideal.

Pensando bem, aquelas prateleiras não tinham sido feitas sob medida, mas combinavam perfeitamente com Esperança. E isso bastava para um ano feliz.




P.S.: esta idéia na janela tem uma origem curiosa. Fui ao cinema ontem assistir a O amor não tira férias, filme água-com-açúcar que mostra duas protagonistas se livrando de valores que não lhes fazem bem, superando medos e realizando esperanças. Curiosamente, a expressão “colocar algo na prateleira”, que também existe em inglês (to put something on the shelf), no sentido figurado significa “livrar-se de algo pouco importante”, “deixar de lado o que não se quer mais”. Ganhei no Natal três prateleiras novas para o meu quarto e até agora penso no que colocar nelas, já postas na parede, num lugar em evidência. Por último, estamos prestes a entrar em um novo ano. Juntei tudo e deu nisso. Como sou subversiva, inverti a semântica da expressão, porque, nas minhas prateleiras em evidência, só cabe o que é importante e precisa estar ao alcance da mão.



22 dezembro 2006

Desejo — verbo ou substantivo, como queira

Museu da Língua Portuguesa, São Paulo.


Essa é a época de querer tudo: as crianças querem os brinquedos mais legais e, não raro, os mais caros; os doentes querem saúde; os vestibulandos, uma faculdade; os que estão longe uns dos outros, uma ponte; os solitários, um amor; os endividados, dinheiro; os descrentes, fé; os platônicos, correspondência; as empresas, resultados; os políticos, aumento; os famintos, comida; os cientistas, descobertas; a seca, chuva; o infindável, fim.

E a gente acaba querendo tanto que não olha para o que já tem. É quando pede mais e mais e mais, num alimentado inconformismo que fica sussurrando a toda hora “você merece”.

Mas merecer não é ter. Falo isso com toda a convicção do planeta, porque sei que mereço muita coisa que ainda não tive. Mereço, por exemplo, um cara muito legal, que não suma, não minta, não me use, não me traia, que me enxergue sem precisar me olhar (ops, existe um assim?); mereço um carro melhor que me leve ao trabalho sem me fazer passar calor; mereço mais visitas dos amigos, um seguro mais barato, menos imposto; mereço mais tempo de férias, mais álbuns de fotografias guardando momentos bons; mereço um ar mais puro, mais contato com a natureza, mais sinceridade. E, no entanto, não tenho nada disso.

Por outro lado, tenho tanta coisa! Tenho criatividade, uma mala expansível com rodinhas, habilidades artísticas e literárias, família, comprometimento com a verdade, autenticidade, uma tevê e um aparelho de DVD, mil papéis coloridos, originalidade, olhos bonitos, palavras soltas que sempre escorregam no céu da boca sem que eu perceba, amigos maravilhosos, integridade, um sofá vermelho, bom gosto, um ventilador de teto, sapatos, personalidade, eras e eras convertidas em livros, auto-estima, um iPod, solidariedade, devoção, um abajur, um trabalho que me realiza, viagens na memória, amor próprio, um pingüim de pelúcia, voz boa para cantar, filmes prediletos, um carro sem ar-condicionado que me leva pra onde eu quero, inspiração, senso de ridículo e idéias na janela...

Tenho, também, pés no chão e cabeça feita. Fitas de vídeo, slides da infância, lembranças registradas, gosto de baunilha em lábios que sempre dizem pensamentos verdadeiramente pensados. Eu tenho coragem e tenho medo; inteligência e ignorância; perspicácia e lentidão. Tenho uma série de antônimos que me fazem meu sinônimo.

Abrigo uma imensidão dentro de mim, que vira e mexe é sufocada por um turbilhão de desejos, porque o muito que eu tenho sempre parece pouco, e o querer mais, ao mesmo tempo que me impulsiona a ser melhor e a aprender, a realizar e a trabalhar para isso, me melancoliza.

Então, nessa época, eu sempre me pergunto a mesma redundância: será que estou querendo certo?



P.S.: A todos os meus leitores, conhecidos ou desconhecidos, identificados ou anônimos, meu desejo a vocês vai além de um Feliz Natal; desejo que vocês desejem, pois é o querer que nos impulsiona a progredir e a buscar o que nos falta, ainda que seja ilusão, ainda que seja sonho. O caminho dessa busca é que sempre nos ensina o que precisamos aprender. Obrigada por passarem por aqui. Boas Festas!


16 dezembro 2006

Que presepada!

Depois das cartas ao Papai Noel, outra tradição natalina com a qual sempre convivi foi o presépio. Minha mãe capricha todos os anos, colocando a criatividade a serviço da fé.

Então, assim como os vários natais maravilhosos que tive, também tenho algumas presepadas para contar, pois, como minha mãe, sempre fui deveras criativa.

Uma vez, não sei qual era a minha idade, minha mãe conta que eu coloquei todas as peças do presépio para dormir. Decerto eu devia achar aquilo estático demais; cansativo todo mundo ali de pé daquele jeito, por dias e dias a fio. Coitados! Na dúvida, deitei todas as peças: pessoas, porcos, perus, ovelhas, vaquinhas... acho que só poupei as árvores.

Minha irmã mais velha já foi mais prática, como é até hoje: enquanto eu queria dar descanso à humanidade ali representada, a Kelly achou por bem fazer uma fila, porque já estava mais do que na hora de aquele povo se mexer para ir visitar Jesus. Como o presépio tinha dois ou três níveis ligados por rampas de madeira cuidadosamente cobertos de papel-pedra, formou-se uma enorme fila de pessoas, porcos, perus, ovelhas e vaquinhas, um atrás do outro, numa romaria digna de Aparecida.



Não bastasse todo o exposto (que fazia minha mãe ficar de cabelo em pé por ter de arrumar tudo de novo, cada peça em seu devido lugar), numa bela quinta-feira — me lembro bem do dia da semana porque era dia de feira na minha rua, o que só ocorria às quintas — eu e minha honorável e sábia irmã mais velha decidimos pôr em prática nossos ensinamentos cristãos. Havíamos ganhado uma vela cada uma, presente de nossa mais-sábia-ainda-avó. A minha era de estrelinha; a da Kelly, de coração. Então, na calada do dia, fomos acender a vela para Jesus, feito aquelas crianças meigas e gorduchas (a Kelly, não eu) estampadas nos cartões natalinos.

O único porém foi justamente a ingenuidade da infância. A gente só ganhou as velas e nada mais. Então, foram apenas as velas e nada mais que pusemos, acesas, sobre aquele pasto verde lindo feito de serragem, onde ficavam aquelas ovelhas branquinhas.

Um tempinho depois, a chama da fé, sempre tão poderosa, desprendeu-se de vez de nossos corações e manifestou-se, imponente, na sala silenciosa.

Estávamos almoçando quando alguém irrompeu a cozinha gritando “fogo! fogo!”, num desespero pra lá de aflito. A fé tem mesmo dessas coisas; as pessoas se comovem entregando-se de alma e tudo.

Eu e a Kelly tínhamos colocado fogo no mundo. Aquilo ali estava parado demais...


08 dezembro 2006

Papai Noel e eu: cartas

(Clique na carta para lê-la)


Todo escritor, artista, filósofo, músico ou ser humano que se preze já escreveu cartas a alguém. Woody Allen escreveu para Platão; Rilke, a um jovem poeta; Kafka, ao pai dele; Pero Vaz de Caminha, ao Rei D. Manuel; Van Gogh, a Théo; Mario de Andrade, a Câmara Cascudo; Mariana Alcoforado, ao léu; Scott e Zelda Fitzgerald, um ao outro; eu, ao Papai Noel...

Eu acreditava em Papai Noel, aquele mesmo, de roupa vermelha, barba branquinha e sininho na mão. Meus pais contratavam um senhor, o mesmo todos os anos, que vinha com um saco cheio de presentes devidamente etiquetados, pois éramos cinco: eu, meus irmãos e minha prima — esta última entrava na dança por diversão e para dar verossimilhança à cena, porque já não acreditava mais fazia tempo...

Mas não quero falar desse dia da visita do velhinho de barba de verdade (eu puxei uma vez para me certificar), o ápice natalino. Antes desse acontecimento anual, havia toda uma preparação fantasiosa que me ensinou muitos dos valores que tenho hoje.

Eu escrevia cartas ao Papai Noel. Minha mãe dava a mim e aos meus irmãos moedas para comprarmos selos na banca de jornal, de modo a poder postá-las. Bom, se eu mesma, com as minhas perninhas, ia comprar o selo, colocava na carta, endereçava ao céu — porque era lá que eu acreditava ser a moradia do velhinho — e enfiava a carta na caixa do correio, era para acreditar nele quando eu recebia as respostas. Tudo porque, como minha mãe tinha nos ensinado a colocar remetente nas cartas, pedia ao carteiro para devolvê-las pessoalmente a ela, de modo que ela pudesse lê-las e respondê-las devidamente. E era tudo tão bem-feito, e não tinha a internet para atrapalhar, que não dava para desconfiar...

Minha mãe tem letra de mão, mas escrevia com letra de forma os cartões-postais, cartas e cartões de Natal que recebíamos do Papai Noel. E como ele sempre respondia o que eu escrevia, era sinal de que me lia. A mesma letra das cartas eu encontrava nas etiquetas dos presentes que ele trazia na noite de Natal. Mais verossímil, impossível.

Por essas e outras, eu me sentia especial. Na escola, ninguém acreditava, diziam que era meu tio, meu avô, meu pai... Mas eu sabia que não era, porque eles estavam todos lá, vendo o Papai Noel junto comigo. E o cara ainda tinha barba de verdade, têm noção?! Isso porque eles nem sabiam das cartas... Ah, se eu contasse! Convenci-me de que as outras crianças não recebiam a visita natalina justamente porque não acreditavam nela. E essa aura de magia é que começa a formar dentro da gente um sentimento importantíssimo que muita gente perde quando cresce: a esperança.

Minha mãe nos ensinava que o Papai Noel tinha de dar muitos presentes para muitas crianças e que, por isso, nem sempre tinha dinheiro para dar o que pedíamos (psicologia pura de mãe que tem quatro filhos pedindo bicicletas individuais!). Se o problema era esse, estava resolvido: eu juntei o meu dinheiro, umas parcas moedas que ganhava da minha avó quando ela me visitava, e separei, como diz a minha carta, em duas partes: uma para comprar o aparelho dentário de que a Kelly precisava; outra para enviar ao Papai Noel como ajuda de custo. Uma menina de 9 anos já consciente quanto às finanças pessoais! Mandei um anexo na carta: “Já que eu não posso mandar o dinheiro pela carta, o senhor pode vir buscar. Mas não agora, só em novembro!”.

Eu trocava correspondências com o Papai Noel durante uns dois meses. Eu escrevia, ele respondia, e assim era até o Natal. Eu tentando convencê-lo de que havia me comportado bem, e, portanto, era merecedora do presente; ele às vezes bem-humorado dizendo bondades, outras mais sério, coisa de mãe brava ou sonolenta escrevendo respostas para quatro filhos tagarelas altas horas da manhã talvez. Tenho cartões em que Papai Noel me dá broncas homéricas — “fale menos e ajude mais” ou “se continuar chorona assim vai ficar enrugadinha como eu”, ou ainda “tente chorar menos e ser mais amiga dos seus irmãos” — PSs que me ajudavam a aprender a lidar com decepções e a constatar que eu era uma chata.

O mais impressionante da história é que Papai Noel gostava mais de cartas do que eu. Ele as mandava para mim antes mesmo de eu ser alfabetizada. Tenho várias como essas guardadas, com elogios breves, é verdade, por eu ter passado para o pré, por eu ter dançado bem no balé, me comportado bem... tudo permeado por alguma lição básica de cidadania, como repartir as coisas com o próximo, ajudar os pobres, fazer caridade, entender que há pessoas mais tristes e mais necessitadas do que eu e que, perto disso, meu presente não era assim tão importante.

Por essas e outras é que eu respeitava pra caramba o Papai Noel. Era Deus no céu e ele também. Além de símbolo mor da bondade sobre todas as coisas, ele ainda achava tempo para me escrever, dividia os sentimentos dele comigo, me ajudava a ser uma pessoa melhor e era amigo de verdade, porque só os amigos de verdade dão bronca na gente quando o que a gente mais quer receber é mão na cabeça em sinal de aprovação. Para mim, o que ele dizia era lei.

Mas, como toda correspondência que se preze, um dia o contato acaba por razões que só o Universo conhece. Embora a carta que abre este texto tenha sido escrita em 1984, quando eu tinha 9 anos, nossa correspondência só cessou em 1986, quando descobri que Papai Noel não existia, pelo menos não assim, de carne e osso, com barba que não sai, roupa vermelha e saco cheio de presentes padronizados. A última palavra, lógico, tinha de ser dele, porque foi ele que começou tudo aquilo:

Menina Kandy,
Desejo que todas as canções de Natal tragam paz, amor e felicidade! Lembre-se de que o verdadeiro espírito de Natal é o amor, a fé e a caridade repartidos com o próximo. Se em seu coração sempre houver a meiguice, a sinceridade e a ingenuidade de criança, então eu estarei com você em todos os Natais que virão! Beijos do “Papai Noel”

Nesse ano, eu passei o Natal com menos magia, mas nem por isso menos contente. Tinha feito uma descoberta interessantíssima com aquelas aspas: Papai Noel morava mesmo no céu, de onde vem tudo o que é bom que a gente vai guardando dentro da gente, como parcas moedas sendo depositadas em cofrinhos da alma. Ele não tinha forma, barba, roupa, letra de forma, sino ou saco de presentes. Ele tinha espírito natalino. E é nisso que eu acredito até hoje.



P.S.1: Nem sei o que foi feito desse dinheiro, porque a Kelly só foi usar aparelho dentário na idade adulta, bancado pelo próprio bolso.

P.S.2: Minha estilística já denunciava minha vocação... que criança de 9 anos escreve "mande-me a resposta"?!!! Para compensar, avacalhei na colocação pronominal da oração que veio depois. Paciência... e olha que isso eu tinha, estava disposta a esperar a bicicleta no ano seguinte ou no outro ou no outro... ;-)


04 dezembro 2006

Janeleiro de plantão

Para quem você olha quando anda na rua? Quantos mesmos você , achando que sabe tudo da vida deles, por vê-los todos os dias fazendo as mesmas coisas nos mesmos horários? O quanto você afia o seu poder de observação perscrutando os outros com doses generosas de curiosidade?

Observar é de fato uma arte. É através dos olhos, a janela da alma, que entramos nas janelas dos outros, raramente de modo consentido. Somos, na maior parte do tempo, invasores de janelas alheias. E, se preciso for, arrombamos tudo com conclusões precipitadas.

O rapaz que passeia com o cachorro todos os dias e que atravessa na faixa, na minha frente, enquanto o semáforo está vermelho, é exemplo disso. Detesta passear com aquele cachorro, porque usa a coleira da impaciência. O pobre coitado — o cachorro, não o rapaz — continua subserviente, embora procure solidariedade em olhares desconhecidos. É da janela do meu carro que observo os dois. Vou entrando sem cerimônia em vidas que não me conhecem, que, por sua vez, atravessam aquela rua avassalando outras, as quais, igualmente, não têm consciência de estarem sendo escaneadas.

muita gente em inúmeras janelas espalhadas por , olhando tudo, quietas, praticando observação. Quantos, por exemplo, lêem as idéias da minha janela sem sequer me conhecer? Quantos permanecem fiéis e anônimos leitores-observadores acessando esta janela com regularidade para dar uma olhadela no que meus verdes olhos vêem?

Freqüentemente observo a mim mesma e me pergunto se meu olhar é que é interessante ou se o fato de manter esta janela aberta é que é convite mais que suficiente para me espiarem enquanto me troco em palavras. Posso ser aquele rapaz com o cachorro andando na rua de alguém.

Não tem problema. Observar é dolorido por devassar ambientes e interiores, nossos ou dos outros, numa constante espionagem que revira valores, desesconde receios e traz à tona o que foi esquecido, mas, ao mesmo tempo, revela muito do que somos, nós e os outros, escancarando pensamentos expostos na vitrine do olhar.

Pois continuem entrando aqui, pela porta ou pela janela, tanto faz, e vasculhem tudo. Usem lente de aumento, óculos, se preciso for, mas nunca deixem de observar. Porque é assim que a gente se conhece.