31 dezembro 2008

Tudo bem

Dispensa legenda, mas é o céu sobre a minha cabeça em 31/12/2008


Tudo bem, isto é tudo o que tenho a dizer. É porque fiquei mais sucinta em 2008.

Viajei muito de avião, mas viajei mais na minha introspecção, com pensamentos que não couberam todos aqui porque espalharam-se por aí. Foi o vento.

Fui promovida, culpada, amada, recriminada, bem remunerada, explorada, atropelada por um ano de antônimos que passaram rápido demais, pois nunca me senti tanto liquidificador.

Mas ficou tudo na memória; minha mente é uma caixa-registradora nada, nada seletiva.

A seleção foi parar no caráter, porque fiquei mais exigente: não escrevo qualquer coisa, não fotografo qualquer cenário, não desperdiço mais com qualquer um palavras escolhidas a dedo. Há certas coisas que aprendi a parar de escolher e a simplesmente ignorar. É mais sábio.

Este ano aprendi a ser simples, conscientizando-me de que é impossível abraçar o mundo, fazer tudo ao mesmo tempo, dar atenção personalizada a todo e qualquer ser humano. Há aqueles que não merecem e ponto.

Mudei de ares, de óculos, de carteira, de perfume, de posto de gasolina. Fiz arte, doei, reciclei muito, principalmente comportamentos. Parei de esperar — finalmente.

Parei também de me preocupar com o que os outros pensam. Eles nunca serão eu pensando, natural gerarem expectativas diferentes e se decepcionarem com elas. Problema deles.

Foi o último ano do trema, o ano em que fiquei a última irmã em casa, a última vez de um monte de crenças que não moram mais em mim, o último ano par antes de várias ações que vão mudar meu dia-a-dia. É o vento de novo.

Foi um ano de muito trabalho, que termina com céu cor-de-rosa, como se um gigante pedaço de algodão-doce de morango brincasse de nuvem, dizendo “vai ficar tudo bem”.

Independentemente do calendário, passei a acreditar, em paz, que sim, sempre fica tudo bem.

Feliz ano-novo.


Obs.: a partir do próximo texto, este blog seguirá as novas normas da ortografia (pelo menos as não polêmicas), embora a autora ache-as inócuas. Ela é contra o Acordo Ortográfico, mas uma cidadã que segue a lei.

05 novembro 2008

Sente-se ao meu lado

Ouça a música (Sit Down, de James) enquanto lê o texto, preferencialmente sentado:





Hoje, olhando a tarde morrendo, vi que a cadeira ao meu lado estava vazia. Dirigindo para casa, senti, como sempre, o banco vazio ao meu lado vazio. Queria alguém sentado ali, ao meu lado, com quem eu pudesse conversar sobre óperas e violinos ou para quem eu pudesse falar sorrisos.

Sinto falta de alguém que se sente ao meu lado apenas para me fazer companhia, sem segundas intenções, sem querer se aproveitar da minha competência, da minha influência, da minha demência; sem vontade de cavoucar o que penso, de adivinhar minha alma, sem curiosidade de atravessar meu reflexo. Alguém que me visse no escuro, sem se importar com os fios do meu cabelo que porventura estivessem fora do lugar — eu vivo despenteada.

Sentar-se ao lado de alguém, perto, próximo, exige coragem, ainda que não haja toque, porque há olhar. E esse vai muito além do tato. Exige postura, porque a gente pode se desequilibrar e cair... Doente. Exige jeito, um traquejo de movimentos para que o corpo fale a linguagem correta. Exige uma certa diplomacia, para não invadir espaços.

Sedia, silla, chaise, chair, stuhl, stoel, não importa o idioma. Não é preciso falar nada para sentar-se ao lado de alguém. Basta querer contato, algum tipo de socialização, sinalizar desejo de intimidade, cumplicidade ou mera falta do que fazer.

Metaforicamente, sentar-se ao lado de alguém é ser simpático, solidário, companheiro. É estar à disposição, oferecendo um colo mais confortável que o assento da cadeira, suavizando os momentos, amortecendo os impactos da vida. E eles são tantos!

Quantas vezes já dissemos a alguém: “Você quer se sentar?”, “Por favor, sente-se” ou “puxe uma cadeira”, e recebemos como resposta: “obrigado, estou bem de pé”? Leio isso como “Não tenho tempo para você”, “Não quero proximidade”, “Isso não é importante”, “Tenho mais o que fazer”.

Atualmente, é triste constatar que cada vez mais cadeiras ficam vazias. As pessoas não se sentam mais próximo umas das outras, a não ser quando não há mais lugar nem jeito ou desculpa. Deve ser algum tipo de fobia idiota. Mal sabem que permanecer de pé é muito mais difícil.

12 outubro 2008

Vivência

Um homem que não conheço olhou para mim e me deu boa-noite de um jeito gratuito, mas sincero. Eu respondi sorrindo, porque hoje em dia raros são aqueles que nos dão boa-noite, ainda mais se não nos conhecem. É que ficou tudo impessoal de uns tempos para cá, sobretudo nas grandes cidades, onde ser anônimo é tão comum.

Num primeiro momento, achei que talvez a educação daquele homem tivesse aflorado da solidariedade: eu estava sozinha, num banco duro de cimento, tomando um café amargo, em um velório, numa noite fria e chuvosa — a natureza sabe mesmo combinar com a morte.

Mal sabia o homem que eu estava totalmente deslocada da cena, sem vínculo emocional nenhum com aquelas pessoas, apenas simpática à dor da perda. O morto era um amigo da minha mãe, a qual fui levar ao tal velório. Na verdade, era irmão de um amigo de escola da minha mãe, dos idos de nem sei quando. Depois fiquei sabendo que, ironicamente, um dia antes de perder o irmão, esse amigo de escola da minha mãe havia ganhado um neto.

O morto era um homem que dizia boa-noite. Mandava à minha mãe mensagens bonitas via e-mail, com um jeito invejável de acreditar na vida, mesmo submetendo-se à hemodiálise três vezes por semana. No dia seguinte ao velório, teria completado 60 anos. Por ironia do destino, porém, resolvera dar uma festa dois dias antes, para reunir a família, rever os amigos do trabalho, da faculdade, da infância, e fazer uma retrospectiva para guardar na mente os momentos bons, como se já não fossem suficientemente inesquecíveis.

Depois de agradecer a cada pessoa presente, expressando também o amor que sentia pela família, deu boa-noite a todos e foi para casa morrer. Pareceu saber a hora em que o coração ia parar. Entretanto, mesmo com essa noção, quando alguém morre sempre tira os vivos do contexto.

Então, quando, parada ali, totalmente fora do contexto, ouvi aquele cumprimento do homem desconhecido, sendo eu uma desconhecida para ele e o morto um desconhecido para mim, senti intensamente a ironia que é viver e me dei conta de que, na hora da morte, somos todos iguais inertes. O que nos torna memoráveis é saber dizer boa-noite, sinceramente e sem distinção de destinatário.

Praia de Boiçucanga - litoral norte de SP


16 setembro 2008

O amor nos tempos verbais

Aparecida do Norte - SP


“Pensava nele sem querer, e quanto mais pensava nele, mais raiva lhe dava,
e quanto mais raiva lhe dava, mais pensava nele,
até que a coisa ficou tão insuportável que lhe afogou a razão.”

Gabriel García Márquez, O amor nos tempos do cólera.
29. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 351.


Nós, que nos amávamos tanto, deixamo-nos acabar como a garoa de ontem, que caiu de repente, invisível. Porque não nos enxergamos mais. Porque transcrevemos o amor demais em cartas hoje encalacradas em alguma gaveta por aí. Porque desgastamos o tapete da sala com passos de ansiedade, de espera, de desconfiança. Sobraram os fiapos.

Se nos amávamos tanto, deveríamos buscar a origem disso em vez de esforçarmo-nos pelo fim, inspirados pelo cinema que adorávamos freqüentar juntos, onde todo começo é medíocre, onde todo final é grandioso.

Agora, sentindo o frio que voltou sem aviso, o vazio que cresceu sem sentido, o arrepio que percorre a espinha, assombra-me a certeza de amarmos tanto, devora-me a ousadia de teimarmos tanto, devassa-me o orgulho de corrermos tanto, desesperados, para lados idiotamente opostos, permitindo que a mágoa nos habite desse jeito covarde e pífio, como se fracos fôssemos.

Porque nós, que nos amávamos tanto, escurecemos sem mais, tornando tudo noite, breu, seu, meu. Nossos egos inflados ultrapassaram os contornos um do outro, e invadimo-nos numa guerra de subjuntivos. Quando as hipóteses tomam conta, deixamos de ser reais.

Nós, meu amor, justo nós, que nos amávamos tanto, perdemos um ao outro junto com a razão, num labirinto próprio, tão vasto e sinuoso, que nos fez desabar de raiva em recorrente ressurreição, num chão empapado de mesmice.

Pensando nisso — e eu não paro de pensar —, amanhã, futuro do presente, vou comprar outro tapete para direcionarmos nossos passos à mesma direção, porque temos de amar no indicativo e escolher os mesmos verbos. Portanto, sejamos cúmplices, não mais imperativos.

Afinal, nós nos amamos tanto... Isso tem de bastar.

10 agosto 2008

Como o amor se multiplica

Querido Erik,

Há um ano e dez meses eu aprendi como começa o amor. Há nove meses você me ensinou como ele se multiplica. Uma responsabilidade e tanto para alguém tão pequeno, mas já cheio de personalidade.

Digo isso por causa do seu nome. Depois de uma pesquisa etimológica (deixa eu explicar: é uma pesquisa que a gente faz para saber de onde as palavras vêm), eu descobri que o nome que seu pai escolheu para você é escandinavo, quero dizer, vem de um lugar bem longe, onde hoje é a Suécia, pois foi o nome de um viking, um cara ruivo e barbudo, meio bravo, mas bem fortão e corajoso. Significa “governante honrado”. Quer mais personalidade que isso?

Pois é possível: você, como eu, além de ter “k” no nome, é leonino. E ainda nasceu num dia cheinho de oitos, o número da prosperidade, no mesmo mês que eu. O mundo, de fato, ficou bem mais azul dia 8. Tão azul que até choveu. Chovia lá fora da maternidade e dentro da gente, de alegria. Todo mundo chorou quando você chegou, porque você emociona, sabia? Além disso, tem uma família amorosa, que vai cuidar muito bem de você e ensiná-lo a ser cavalheiro, educado, honesto, bem-resolvido, gentil, amigo da sua irmã e feliz, porque isso é ser honrado e saber governar a própria vida.

Já que seremos cúmplices, deixa eu te contar um segredo: eu fiquei sabendo da sua existência antes mesmo da sua mãe. Sonhei que ela estava grávida no dia em que ela o concebeu. Bom, ela está um pouco assustada com isso até agora, mas um dia ela se acostuma. Além dessa coincidência, o médico queria que você nascesse no dia do meu aniversário. Mesmo tendo nascido uma semana antes, você foi um presente para mim, porque eu ganhei outro afilhado. Não foi um presente de aniversário, foi de Natal, numa carta linda que sua mãe escreveu para mim, pedindo para eu aceitar você como afilhado. Isso foi bem fácil, embora eu ainda não saiba como é ser madrinha de um menino, outra coisa que você vai me ensinar.


De minha parte, além de um português impecável, posso ensiná-lo a se divertir, a ver o mundo colorido, a conhecer os clássicos da música e da literatura (calma, eu seleciono os mais legais), a entender as mulheres (isso será bem útil daqui a uns anos, pode me cobrar!), a gostar de teatro, de cinema, de circo e, com um pouco de sorte, de livros, que é o que eu sei fazer. E, cá para nós, o mundo das letras é um lugar interessantíssimo para onde você pode ir sempre que quiser conhecer qualquer coisa.

Você foi muito desejado, e é tão prestativo que veio rápido, um tantinho antes do planejado. Seus pais pintaram a fachada da casa de azul — justo azul! — e fizeram um quarto de selva para receber você. Eu ajudei (e quase morri de cansaço na 25 de Março, uma rua doida que tem aqui, um dia eu te conto), o tio Bruno fotografou e pudemos deixar tudo bem bonito para você. Mas você é tão lindo pessoalmente que vamos ter de rever as imagens...

Pelo andar da carruagem (ai, isso é muito antigo!), você estará sempre à nossa frente, principalmente se decidir ser atleta como a sua mãe e sair correndo desembestado. Assim, vai longe. Mas estarei sempre com você (no caso das corridas, confesso, bem atrás, porque não sou adepta da prática esportiva...), orgulhosa por tê-lo como afilhado e amigo.

Você vai ser plenamente feliz, vai crescer forte e saudável, vai ser amistoso com as pessoas e bastante alegre, porque já é muito amado e encanta todo mundo. Isso foi outra pequena coisa que você me ensinou: agora eu entendo, sorrindo, quando as pessoas me perguntam: “está tudo azul?”. Quem conhece você sabe que sempre vai estar, e isso vai além da fachada da sua casa.

Um dia você vai ler esta carta, que estará dobradinha, com a minha letra, dizendo em cada palavra o quanto esta madrinha te ama desde o mundo dos sonhos.

Um beijo demorado na sua bochecha vermelhinha,

Kandy

27 julho 2008

O dia em que perdi a fala

Do dia para a noite fiquei sem palavra.

Minha mudez espalhou-se na minha cama fria. Em pensamentos de paroxítona, pergunto-me para que servem agora os cobertores se nem suas franjas me fazem mais cócegas. Eu e tudo perdemos o sentido.

A água com que eu lavo meu rosto todas as manhãs não me diz mais nada. Não ouço conselhos nem gritos de socorro. Ficou tudo silencioso depois que as pessoas engoliram seus olhares de cobiça junto com o café. Um pingado insignificante que já não me alimenta mais.

Não posso mais decodificar as palavras que leio, o que me impede de escrever: uma dor muda nos olhos, capaz de arremessar a órbita para um mundo surdo, me impossibilita ser a voz de quem nunca sabe o que dizer. Uma pessoa muda não pode mais ser porta-voz dos outros, encarando expressões cínicas e fingindo ser delas palavras que lhes empresta em momentos de prostituição.

E as lágrimas que antes diziam tanto agora secaram de vez. Curioso como há partes da gente que só gritam de um jeito rouco quando o restante pára e torna o silêncio ensurdecedor.

O médico vai mandar pôr a língua para fora e dizer "aaaaaaa". E vou mostrar-lhe a língua até dizer chega, sem letra nem som, deixando-o intrigado a encontrar onde a minha voz ativa se perdeu. Deve ser o mesmo lugar onde deve estar a minha vontade de tirar a palavra da boca dos outros.

É que do dia para a noite fiquei sem palavra, como se tivesse desaprendido a ler, como se tivessem raptado minha fala. Só me restaram pensamentos sussurrados soprando o que não me diz mais respeito.

E durante um tempo vai ser assim: vou acordar na cama fria com cobertores inexpressivos, e lavar o rosto com água insalubre, e tomar café insosso olhando para um jornal em branco.

Os dicionários definem isso como desilusão. Taí a palavra.


Blenheim Palace - Woodstock, Inglaterra

17 julho 2008

Até que a morte nos separe

Detalhe do chão da Praça da Língua, no Museu da Língua Portuguesa, SP


Todos os dias eles saem para andar. É bonito ver o amor que ele tem por ela, pegando-a pela mão e acompanhando-a na caminhada. É triste ver a falta de amor que ela tem por si mesma, deixando-se levar sem vontade, colocando um pé à frente do outro em passos de obrigação.

Não é só o tênis dela que não combina com a disposição dele; o ritmo de um destoa do do outro: ele quer ir, ela daria tudo para ficar; ele vê esperança, ela quer voltar para a cama; ele levanta os braços buscando exercício, ela boceja enfado; ele bendiz o novo dia; ela amaldiçoa o médico que deu aquela ordem besta, porque ele não precisa e quer, ela não quer e precisa.

Não dá para saber qual a doença que ela tem, o que ela pensa, por que a falta de ânimo. Não dá para saber o quanto ele quer que ela se cure, o que ele sente, a origem da persistência em levá-la adiante. Dá para ver de onde vem a paciência dele e a condescendência dela, e imaginar que ele a carregaria no colo se isso não a prejudicasse e que ela morreria por ele, se isso não o entristecesse.

Tem dias em que o sol atrapalha; ela não usa óculos escuros. Tem dias em que o frio incomoda, ele tem de emprestar-lhe a jaqueta. Tem dias em que o vento despenteia, quando ele carinhosamente ajeita uma mecha atrás da orelha dela. E tem dias em que chove, e ele a guarda sob o guarda-chuva que carrega.

Ora andam de um lado da rua, ora andam do outro. Vezes há em que não voltam, mudam o trajeto. Outras, não chegam à metade; a teimosia dela os faz voltar para o começo. Ele sempre bem-disposto; ela já debilitada.

Raramente conversam, pois a ela parece penoso andar e falar; ele prefere não ser inconveniente proferindo otimismos que ela não enxerga. É a claridade da manhã... ou a falta dos tais óculos escuros.

Ela anda lentamente olhando para baixo, acompanhando a palidez da pele. Ele olha para frente, sorrindo moreno e puxando-a delicadamente.

As mãos continuam dadas. E é isso o que importa para eles.

22 junho 2008

Fome


O corpo esticado sobre a cama forrada de lençóis lisos, as mãos enlaçadas atrás da nuca, evidenciando os bíceps, mostravam que era todo curvas, em temperatura ideal para o tato.

Permanecia com as pálpebras ligeiramente cerradas, feito milharal em época de colheita, embora não deixasse os pensamentos serem ceifados por observação alheia. Escondia ali um par de castanhas.

Sorria com o canto dos lábios finos, numa educação contida demais para um momento sem ponteiros. Ofereceu um pouco de chá branco, tal qual o lençol. Tinha gosto de maçã. Um pouco verde, talvez. Irrelevante. A embriaguez era mesmo de vinho.

Apesar da miopia, proferia palavras nítidas, que emendava num português quase perfeito envolto num timbre de pêssego. O humor era doce; o toque, sussurrado como quem acaricia uma onda sem molhar as mãos; o desejo, exalado por poros contemplativos, fincados na degustação do agora.

E não importavam os olhos que o admirassem, fossem anis, de quiuí ou de chocolate. E não importava o perfume, se de amêndoa, adocicado ou cítrico. Quer fosse um aperitivo, uma entrada, uma sobremesa ou um banquete, pedia era para ser devorado. Só assim sentir-se-ia satisfeito.

Nascera para a tentação, porque abria qualquer apetite.

23 maio 2008

O tempo todo

Para ouvir enquanto lê o texto:


Silent Lucidity - Queensrÿche

Era um barulho fora, mas um silêncio dentro. O entra-e-sai do metrô e o tagarelar tipográfico das pessoas espalhando os acontecimentos do dia ensurdeceram-me quando li uma das mensagens que passavam naquelas televisõezinhas que agora há em alguns vagões: “Conserve seu planeta. Ainda dá tempo”.

Ficou um eco no meu pensamento, reverberando idéias que começaram a passar pela mente mais rápido que as estações da linha vermelha. Ainda dá tempo. É isso que pensa alguém quando corre apressado para pegar um ônibus ou aqueles que decidem ser pais depois dos 40. Isso é o que move quem resolve aprender a ler depois de anos de analfabetismo, quem vai para o aeroporto mesmo sem passagem marcada, quem desce as escadas rolantes ainda que tenha ouvido o aviso sonoro de portas fechando. Porque sempre é tempo de abri-las.

Ainda dá tempo de esquecer a falta de reciprocidade de uma paixão; a última chuva que encharcou os nervos, deixando úmido muito mais que a barra das calças; a palavra ríspida de quem nunca foi apresentado à gentileza ou redondos nãos que carimbaram tentativas. Simplesmente porque ainda dá tempo de tentar, de aprender outro idioma, de conhecer outro país ou pegar uma condução simples que leve àquela esquina à qual a gente nunca foi por falta de curiosidade ou... de tempo. Ainda dá tempo de fazer falta a alguém, de demorar-se na cozinha preparando alguma coisa com farinha, de tirar das caixas o que está guardado por motivos que já emboloraram com o passar... do tempo.

Dá tempo de mudar de casa, de idéia, de vida, de planos, de curso, de abordagem, de conversa, de padaria, de lado. Dá tempo de dizer que ama, que sente muito, que errou, que se desculpa, que vai pensar, que sente falta, que tem vergonha, que vai mudar.

E tudo isso porque, apesar do barulho do lado de fora, a sensação acontece lá dentro, bem no escuro de profundezas que nem todos sabem onde ficam, lugar em que tudo é silêncio. Uns chamam isso de esperança. Eu, de lucidez.

04 maio 2008

Insônia

Foz do rio São Francisco - AL


A Sarah Brightman canta na TV enquanto meu sono dança em mim, pra lá e pra cá, sem parar quieto. Mantenho os olhos abertos porque ouço ruídos pela casa. Será que é ladrão? É isso que dá se meter a corajosa e ficar sozinha numa casa desse tamanho. Esqueci de colocar o lixo pra fora. O que eu vou fazer com o resto da pizza que sobrou? Deviam fazer pizzas pra um. Se eu só sou uma, pra que oito pedaços? Até parece que não tem gente passando fome no mundo! Conheço essa música de algum lugar... Preciso de outro cobertor, detesto frio. Nossa, hoje foi aniversário do fulano, esqueci de ligar. Tudo bem, vai, amanhã eu mando um e-mail. Mas e-mail é tão impessoal. Eu ligo, mesmo atrasado. Que dia é amanhã mesmo? Who wants to live forever, ela canta. I want. É tanta coisa para fazer. I need to. Meu quarto está uma baderna. Bom, pelo menos é uma bagunça colorida. Na verdade, eu devia era tomar vergonha na cara e arrumar um jeito de organizar esse material todo. Eu nunca me acho nas minhas fitas de tecido. Ai, mas aqueles papéis são tão lindos, minha melhor aquisição no ano. Preciso guardar aquele ali que tã perto do telefone. Pra que eu tenho telefone se ninguém me liga? Não sei. Depois eu penso nisso. I'd like to live forever. Mas, se eu vivesse para sempre, teria ainda mais coisas para fazer. Acho que não é uma idéia muito inteligente. Nada inteligente, aliás, é olhar pra cara desse livro em cima do sofá todos os dias em vez de lê-lo de uma vez. Mas é que não dá tempo. Nem consegui ler todas as seções da revista que eu assino. Talvez isso seja indício de que não devo assiná-la mais. Um passo para a alienação. Que que ela tá cantando agora? Caramba, como tem gente que gasta dinheiro, não? Quanto será o ingresso para assistir a uma superprodução dessas? Bem que eu queria ter essa sorte. Por que uns têm muito e outros têm de trabalhar demais feito eu? Nem ao Cirque du Soleil eu consegui ir este ano. Caro demais. Será que o show dela é mais caro que o ingresso do Cirque? Bom, eu pagaria. Tô precisando de um pouco de emoção. A que ponto eu cheguei... eu pagaria por um pouco de emoção. Que patético. Mais patético ainda é trabalhar feito camelo para pagar para ter um pouco de emoção. E ainda passar frio, enfrentar fila, pagar estacionamento, andar horrores para chegar a um lugar que eu nem sei onde fica direito. Essa mania de ser imenso que alguns lugares têm. Irritante. E eu ainda não fui arrumar o pneu do carro. Que coisa mais chata isso de furar o pneu! Como é mesmo o nome daquele cara que fez Highlander? Acho que é Crístofer alguma coisa. Como será que se escreve Crístofer? Tem um pê agá em algum lugar. Vai ver são dois, ou são dois agás? Ah, depois eu procuro no Google. Por que eu não tive a idéia de inventar o Google? Ah, é verdade, porque eu nasci para trabalhar feito camelo. Alguém com um destino desses jamais teria a brilhante idéia de inventar o Google, curiosamente um sistema de buscas. Se eu nem sei escrever Crístofer! Nossa, a voz dela é tão bonita... isso só pode ser dom. Disso eu não posso reclamar. Na terceira década da minha vida eu já sei quais são os meus. E pensar que tem gente que passa a vida inteira buscando isso. Nem no Google vão achar. O problema é que as pessoas não sabem procurar direito no Google. Tem o lance das aspas, mas é cada busca estapafúrdia que esse povo até merece ficar sem dom por uns tempos. Será mesmo que todo mundo tem dom? Se escrever se aprende, então, qualquer dom também deve ser... ih, qual é a palavra? "Aprendível"? Qual é o adjetivo, meu Deus... aprender, aprendizado, apren... tinha de ser dível. Mas acho que não tem. Ah, depois eu procuro no dicionário. Puxa, eu adoro essa música! É daquelas que deveriam tocar quando a gente beija alguém com paixão. Ou quando se despede, para enganar a tristeza. Ou quando ganha um prêmio. Ou quando todas as luzes da cidade se apagam e só fica a nossa, numa solidão besta. Hoje eu entendo Drummond naquele poema da vida besta. Não presto nem pra lembrar o nome do raio do poema. Caramba, eu devia escrever ouvindo essa música, daria um texto legal. Quem diria que eu sentiria saudades do Pavarotti. A Sarah canta bem, mas essa música o Pavarotti cantava melhor. Eu não tenho nenhum cd do Pavarotti. Isso deveria ser item obrigatório no bolsa-família. Um cd do Pavarotti. Mas eu não recebo bolsa-família. Whatever. As pessoas têm de aprender a sentir, não é possível! Um cd do Pavarotti seria uma forma boa de começar. Não tem como ficar indiferente. Falar nisso, amanhã vou procurar o Pavarotti no Google, é uma vergonha não saber nadica de nada da vida dele. E pensar que ele nunca soube que eu existia... Eu nem ia querer que ele soubesse, pra quê? E já morreu. Novo, coitado. Who wants to live forever? Ih, voltei pro começo. Agora é que eu não durmo mais...


O DVD da Sarah Brightman ao qual o texto se refere é The Harem World Tour, live from Las Vegas (duplo). A música que creio ser melhor na voz de Pavarotti é Nessun dorma. O ator de Highlander é o Christopher Lambert, assim, com dois agás, um junto de um pê. E o poema, ah, o poema de Drummond, se chama "Cidadezinha qualquer" e tem um verso que tem muito a ver com este blog: "Devagar... as janelas olham".

17 abril 2008

Volta e meia

Para Cleu Sampaio, pela idéia e pelas folias de donzela

Pall Mall - Londres

É uma pessoa que só vai. Para cima e para baixo, como libélula que sempre procura água. Tem mesmo sede de conhecimento, porque carrega curiosidade em sacolas feitas de retalhos coloridos, como se a vida fosse assim, um punhado de remendos que se leva para lá e para cá. Para ela, as agulhas existem para costurar desafios, e as linhas dos mapas são todas imaginárias. Essa mulher vai sempre além.

Cheia de vida, é alguém de carimbos no passaporte, souvenirs na memória e passagens aéreas pelos lugares que visita, para quem "além" ultrapassa o mais para lá: significa o que os olhos não alcançam, a vastidão redonda que clama por ser conhecida. Por isso vai em frente, porque atrás vem mais, e sempre um mais que atropela. Não há tempo de sentir dor nem saudade; é preciso força para carregar a bagagem.

É uma mulher que não volta, porque não tem medo do que ainda não aconteceu. Vai sem data para retorno, sem planos, com sonhos e um espírito escancarado pronto para banhos diários de lavanda, cheirando a novidades que ainda virão no vento, enquanto o suor seca no varal.

Não carrega a casa nas costas nem peso no coração. Não arrasta culpa nem os pés, porque pisa firme e planta o apego na terra em vez de levá-lo nos bolsos do casaco florido.

Essa mulher vai longe, projetando coragem à frente, puxando a sombra atrás, sem chorar. Isso fazem os regadores. Porque ela, ela volta e meia pode ir sem voltar. Ela vive. O lugar.


09 abril 2008

Anjos

Ilha da Crôa - AL


Para um Querubim

Espíritos independentes não estão acostumados a receber ajuda. Às vezes porque foram habituados a ser assim; às vezes porque estão sempre ilhados em suas próprias convicções, ou, ainda, porque se cansaram de se decepcionar com as pessoas. Esperar dos outros nem sempre é um costume sadio.

Mas há comportamentos que desarmam. Eles vêm envoltos em tanta espontaneidade que o ineditismo espanta, cala as desconfianças, apazigua a resistência. (Você está vendo? Há estrelas no céu!)

E essas tímidas aberturas que a vida proporciona ensinam que poder contar com alguém é ter o travesseiro preferido sempre à mão, envolvendo-se naquela sensação morna de aconchego para respirar quieto um monte de tranqüilidade. É sentir-se em casa mesmo estando no Chile, no Amazonas ou perdido em alguma rua estranha de cidades grandes demais. É uma noite de sono profundo sem interrupções em um lençol limpinho e todo branco.

São promessas que sempre serão cumpridas, gritos que nunca serão dados, escolhas que não precisarão ser feitas. (Alívio.) É ficar à vontade para errar quantas vezes forem necessárias, sem culpa ou temor de repreensão, porque saber que há alguém com quem contar é ver um guarda-chuva em cada abraço, é sentir sossego com cheiro de camomila, santo remédio para tirar qualquer frio na barriga.

Confiar é terceirizar a razão, adoção sem perguntas. (Olhe para as estrelas. Elas estão lá ainda que não as veja.) É mesmo debruçar-se no desconhecido, deixando-se desequilibrar se preciso for, com um espírito aventureiro esparramado no que a gente não tem, mas que sabe que está lá, sempre, como chão firme sob os pés. (Não precisa mais olhar para baixo.)

Pessoas assim, sempre de braços abertos para amortecer passos em falso, que envolvem feito cobertor sem que seja preciso dizer que se está com frio, são alguens com quem contar. E pode ser tudo em silêncio, porque elas lêem a alma. São incondicionais, não têm relógio ou compromisso inadiável, melindres ou complexos, apenas uma compreensão almofadada disfarçada em um olhar que tudo diz.

E, para ter com quem contar, tudo o que é preciso fazer é olhar para cima (as estrelas existem) e parar de pensar sozinho.

04 março 2008

Doença crônica

Paripueira - Maceió, AL


O gosto de vinho ainda permanecia na boca pasma. O resto de amor continuava ofegante, apertando o peito. O gosto e o resto misturavam-se em sentimentos confusos, e a confusão tornava o gosto ainda mais ácido, e o resto, mais enorme.

Ele queria ter dito o que pensava naquele instante de analfabetismo, mas tudo o que conseguiu dizer foi silêncio. Ela queria ter sido tomada por certa compreensão gigantesca, mas tudo o que conseguiu compreender foi bobagem.

Embora trocassem olhares de pena recíproca, tinham mesmo era desejo de abismo. Em horas assim, sabiam que só a escuridão tem um abraço reconfortante, capaz de apagar todos aqueles cacos de indiferença que cortavam os passos. Passos que poderiam ter ficado para tentar reconciliação, mas que preferiram ir embora enroscados em solidão.

O gosto, o resto, os cacos, os passos. E tudo o mais pingava, numa homeopatia besta.

Amanhã estariam curados.


16 fevereiro 2008

Bagagem

Praia das Castanheiras — ES


"And love is not the easy thing....
The only baggage you can bring
Is all that you can't leave behind"
U2 - Walk on

Deixar alguém partir é sempre dolorido. Isso vale para aquele amigo legal que vai embora tentar a vida em outro país, para aquele que achou a gente sem querer, nos desmonta só de olhar para a nossa cara e vai embora por não nos querer mais, para os amigos de faculdade que seguem o dia-a-dia deles sem a nossa participação quando o curso termina, para os colegas de trabalho, quando deixamos um emprego, que aturaram anos a gente vestindo meia dúzia de roupas diferentes que eles gentilmente fingiram ser um guarda-roupa Armani. Serve para pessoas inesquecíveis que viajaram conosco mas de quem hoje mal nos lembramos o nome, e, na pior das hipóteses, infelizmente, serve também para quem parte para sempre, e sempre mais cedo.

Dizer adeus, ainda que por um certo tempo, vai muito além de um abraço e de um aceno carinhoso de tchau, de um beijo de despedida angustiado e já saudoso pelo dia de ser repetido, de uma carta de até breve ou de demissão, de lembranças boas que tivemos com quem se foi. Exige uma confiança no futuro que ninguém tem. Uma entrega resignada ao que está por vir que ninguém quer. E é isso que causa o nó na garganta tão característico dos momentos de despedida, esse imenso ponto-de-interrogação que engancha tudo o que de pleno temos com quem vai embora e joga-o para o ar, para ver no que dá.

Aquele que morreu nunca mais vai voltar. As pessoas que estudaram conosco talvez nem sigam a profissão, os que viajaram com a gente já somem no final da viagem e aquele que partiu nosso coração e foi embora num pra sempre mais eterno que a nossa idéia de eternidade talvez se case, talvez não; talvez nem se lembre mais da gente daqui a uma semana, talvez não; talvez viaje para o Alasca e decida se estabelecer por lá, talvez não. São todos esses talvezes que fazem da despedida um momento difícil, trazendo à tona um egoísmo todo próprio que faz desejar a cada minuto que a pessoa fique, viva, continue perto.

É em momentos assim que a vastidão do mundo mais assusta, porque parece que ele fica gigante e, mesmo globalizado, assume distâncias intransponíveis. É aí que todas aquelas lições de probabilidade e estatística que tivemos em Matemática adquirem a forma fantasmagórica de hipóteses quase reais. E se a pessoa nunca mais voltar da experiência no exterior? E se nunca mais retomarmos o contato com as pessoas maravilhosas com as quais trabalhamos? E se aquela nossa cara-metade realmente especial que não sabe que é especial nem nossa cara-metade ou cujo livre-arbítrio tem um espírito aventureiro demais realmente se casar ou for morar no Alasca?

Tudo o que nos resta é aprender a ter saudades. E, para aqueles com memória extraordinária, como eu, nem perder tempo tentando esquecer, superar, não pensar, deixar para lá, pois essas pessoas que se vão e que de alguma forma marcam a vida da gente passam a fazer parte do que nos tornamos.

Porque ninguém continua sendo o mesmo depois de um adeus.

27 janeiro 2008

Roda-gigante

Museu da Língua Portuguesa - SP
Exposição sobre Guimarães Rosa

A gente pensa na vida como uma sucessão de dias representados por números ou substantivos comuns que vão de domingo a segunda. Mas deveríamos pensar nela como uma sucessão de histórias anônimas que acontecem ao mesmo tempo.

Enquanto alguém está morrendo sozinho na cama de um hospital, há outro pequeno alguém que acabou de descobrir que as coisas têm nome e está aprendendo a pronunciá-los. Enquanto um homem está maquinando maneiras e mais maneiras de conquistar a mulher dos sonhos dele, há uma mulher chorando no escuro. E enquanto uma pessoa supera uma limitação imposta por uma deficiência qualquer, existe outra, sadia, que se acha imprestável.

Tem um menino que não sabe jogar bola, mas que quer ser pintor. Uma moça que dança lindamente e está juntando dinheiro para custear um sonho. Um idoso sentado na praça, esperando o vôo de borboletas, enquanto uma senhora faz bolinhos de chuva para a vizinhança. Padarias levantando as portas quando tem gente voltando da balada. Luzes se apagando enquanto velas são acesas. Novos negócios abrindo quando tudo o que alguém quer é se fechar.

Há gente correndo no parque e outras paradas no tempo. E tem ainda aqueles que estão experimentando vinho pela primeira vez, ou voando de avião, ou pegando um buquê numa festa animada de casamento. Há quem esteja rindo à toa enquanto outros tratam os dentes.

Enquanto você lê este texto, tem gente atravessando a rua sem olhar, olhando para a frente esperando um ônibus chegar, olhando para trás para resgatar sensações perdidas na memória, olhando para cima na esperança de ser içado de repente só para alcançar mais rápido algum tipo de imaginação.

Tem alguém adotando um cachorro perdido, sendo bicado por um papagaio invocado, fazendo carinho em um gato folgado, prometendo a si mesmo nunca mais ter um bicho de estimação.

Tem mais alguém recolhendo o lixo de pessoas que continuam jogando tudo no chão ao mesmo tempo que outros distribuem folhetos a favor de um planeta mais limpo. Mais sites pipocando na internet, idéias criativas tomando forma em agências de publicidade, copos sendo enchidos, expectativas, esvaziadas. Alguns escolhendo filmes em prateleiras de locadoras perto de casa enquanto outros decidem o que fazer para o jantar em homenagem a um amigo que vem de longe.

Tem gente perdida quando outras acabaram de se encontrar. Pessoas que acabaram de ser desenganadas quando outras sabem que vão sarar. Crianças aprendendo a contar até dez e adultos impacientes que não se lembram mais disso quando ficam nervosos. Alguém andando de metrô sem saber para onde ir quando outro alguém pergunta à vendedora da livraria em qual prateleira está o guia de viagem que ele procura, pois sabe exatamente para onde vai.

Quantos pensativos estão assistindo a algo nos cinemas enquanto outros tantos indecisos ainda pensam em qual doce comprar? Quanta gente gritando insultos guardados há tempos nos pulmões enquanto um monte de sorrisos se abrem pelos cantos? Quantas pessoas se cruzando ao atravessar a rua com histórias em comum silenciadas pelo pensamento?

Existem tortas de maçã quentinhas saindo do forno e gente aprendendo a comer com garfo e faca. Tem mesmo gente lendo histórias em voz alta enquanto alguém numa terapia está aprendendo a escutar.

Quantos olhares estão sendo impressos em laboratórios fotográficos enquanto câmeras digitais de última geração são colocadas em vitrines? Quantas coca-colas são vendidas enquanto um monte de gente daria tudo por um copo d'água? Quanta gente que acaba de descobrir américas ao mesmo tempo que outras têm um Grand Canyon para ultrapassar?

Para lá e para cá, aqui e acolá, tudo agora, numa simultaneidade metalingüística que nem espremendo cabe na nossa compreensão: incontáveis histórias anônimas acontecendo ao mesmo tempo formam o que a gente leva a vida inteira para entender.

09 janeiro 2008

Você já viu esse filme


O filme começa com ele correndo atrás dela. Ele quer se desculpar; ela não escuta. Eles brigam, fazem as pazes; ele sempre de bem com a vida; ela sempre encanada, tentando descobrir a si mesma. Com todo o amor do mundo, ele a ajuda mandando-lhe cartas que deixou escritas antes de morrer, ao final das quais deixa sempre um "P.S.: eu te amo".

Parece um enredo superficial que serve de pano de fundo para um romance água-com-açúcar. Pode até ser para alguns. Realmente, não é aquele tipo de filme profundo, a que a gente termina de assistir achando genial, mas, depois de conhecer histórias assim, é comum ficar reflexivo. Talvez sejam as lágrimas que trazem à tona mais emoção. Não tenho vergonha de chorar no cinema com histórias de amor sincero.

As mulheres são mais sensíveis a esse apelo romântico, até porque os personagens masculinos da película são todos lindos, simpáticos, fiéis, de bom caráter e boa intenção, além de um sorriso perfeito, e as cenas gravadas na Irlanda são realmente inspiradoras, com aquelas paisagens que levam a gente a pensar que o mundo parou e que só venta ali, lugar tingido com tons de verde que não existem em nenhum tubo de tinta.

Embora esses sejam ingredientes manjados e muito bem utilizados por roteiristas e diretores que desejam conquistar a platéia — e eu tenha plena consciência disso —, o filme cumpre o objetivo: eu queria um amor daquele, cartas daquelas, um P.S. daqueles, um olharzinho sincero que fosse, um primeiro beijo como o dos protagonistas, a roupa colorida dela, o cheiro de homem dele, um abraço gostoso, apertadinho e espontâneo sem motivo — e sem precisar pedir, aconchego, falas inteligentes em diálogos divertidos.

Os produtores do filme fazem de propósito: criam deliberadamente todo o enredo para causar inveja na gente, plantando aquele sentimento de insatisfação pelo fato de a nossa vida não ser assim, aquele mar de rosas, tudo azul, e ter poucas probabilidades de o ser. Quando dei por mim, invejava o casal sentado ao lado, mesmo ela usando um vestido fora de moda namorando um fulano mais ultrapassado que o vestido. Ela ria alto do que nem tinha tanta graça assim; fazia perguntas idiotas que ele respondia pacientemente, com ares de "o que seria de você sem mim?". Minha inveja mais idiota que aquelas perguntas era do jeito que ele abraçava ela, aceitando-a mesmo com aquele vestido, e da sorte daquela moça em poder ter a quem fazer perguntas quando quisesse, recebendo respostas doces em troca.

O mais curioso é que, ainda que eu invejasse a moça, que, a meu ver, é feliz ao modo dela, ela invejava a Hilary Swank da tela, querendo ter, como ela, o mesmo colo protetor ao qual recorrer, o mesmo bom humor dedicado fazendo graça para ela em karaokês, a mesma voz bonita cantando para embalar seu sono.

Do mesmo modo, é provável que, atrás de mim, alguém estivesse invejando a minha condição: o poder da escolha (vamos fingir que ele existe), a independência, a audácia de ir assistir a um romance sem a companhia de um amor, a desenvoltura e capacidade de escrever cartas melhores que aquelas do filme, embora com P.Ss idênticos.

Por que o filme dos outros é sempre mais bonito?

Porque a vida dos outros é sempre a Hollywood que a nossa não consegue ser, por mais que nos esforcemos. E é por isso, só por isso, que vamos ao cinema.