28 maio 2007

Esta data querida

Vila Velha - ES

Há um ano eu tinha idéias que hoje se multiplicaram. Eu pensava, pensava e pensava, mas deixava tudo trancadinho na minha mente, talvez por falta de diálogo, preguiça em transformar em tipologia ou autocrítica exagerada freando iniciativas. A literatura tem disso: precisa de interlocutores para existir; do contrário, não passa de palavras.

Palavras todos temos, aos montes, brotando a todo instante, tagarelando dentro da gente como matracas históricas. O desafio reside justamente em organizá-las de um modo original, por vezes poético, fluente, impactante, de maneira a silenciar todo o barulho para provocar reflexão: um pensar suave, despretensioso e tranqüilo, gostoso de ler.

Isso é difícil. Faço essa afirmação com conhecimento de causa porque lido diariamente com autores cheios de idéias e (embora nem sempre) cheios de talento, mas que, no afã da criação, se deixam embaralhar. Minha função é desembaraçar tudo, colocando cada coisa em seu devido lugar, mas interferindo o menos possível, mantendo o estilo, a linguagem, o intuito. Aí é que está a complexidade da profissão: entender e incorporar uma intenção que não é a minha (sempre digo que o revisor é um leitor de intenções).

Por outro lado, é igualmente difícil olhar para o meu próprio texto com toda essa severidade neutra. E é exatamente isso que o Idéias na Janela faz comigo duas ou três vezes por semana: abre um horizonte de possibilidades para que eu me aprimore como profissional, como pessoa, como leitora, amiga, revisora, ilustradora, fotógrafa e autora. Este blog me multiplica, tal como fez com as idéias que eu tinha quando comecei a escrevê-lo.

Mas esse exercício de autoconhecimento não seria nada sem os diálogos que este blog me proporciona, ainda que silenciosos e imaginários, mantidos com leitores que não se manifestam por motivos vários. Não seria nada sem os comentários dos que quebram o anonimato e mostram outros enriquecedores pontos de vista. Não seria nada sem a participação freqüente de pessoas espetaculares, amigos maravilhosos, família e colegas de profissão que adotaram o Idéias como leitura assídua em seus movimentados dia-a-dias e deixam sempre registradas aqui valiosas contribuições pessoais.

Então, se este blog faz aniversário hoje, não é apenas pela minha perseverança e disciplina em escrever e postar textos, mas, sobretudo, pela troca de horizontes — proposta primeira deste espaço — que ele nos proporciona a todos.

Nesse um ano, e quase 10 mil visitas, não parei para pesquisar qual o texto mais lido (que não é necessariamente o mais comentado), o de que as pessoas mais gostaram, o que causou mais discussão, polêmica, estranheza ou fascínio. Eu simplesmente não sei informar essas coisas e vira e mexe me surpreendo. Às vezes, textos pelos quais eu não daria tanto quanto dou para outros emocionam mais e se evidenciam de um jeito literariamente descontrolado. Nessas horas eu comprovo que a literatura continua no leitor depois de ter sido concluída pelo autor. E isso é que é mágico: a ramificação dessas idéias em outras e outras e outras, parecidas ou completamente diferentes, motivadas pela organização preconcebida de palavras aos montes.

Eu mesma aprendo com o que escrevo quando releio cada texto, cada comentário, quando me dou conta da responsabilidade de ser lida por pessoas que não conheço, em geografias próximas ou distantes do meu computador. E fico imensamente feliz em andar pelo mundo assim, dessa forma virtual e invasiva, abrindo janelas por aí, para deixar idéias passarem em forma de intercâmbio.

Obrigada a cada um que lê ou já leu algum dos meus posts, aos novos amigos que passaram pela janela e pararam para tomar um café (e espero que fiquem, fiquem, fiquem nesse papo gostoso de cidade de interior). Isso me enriquece e me faz vasta, como toda pessoa deve ser. Isso me abre para outras dimensões e me coloca em contato com mais idéias, opiniões, diversidade.

Feliz aniversário para nós. Vida longa ao rebuliço de idéias que todos temos dentro de nossas janelas: o PENSAMENTO.


24 maio 2007

Eu, eu mesma e os homens



Minha prima convidou-me a comentar sobre um "manual da mulher bem-resolvida", composto por alguns parcos fundamentos que pretensiosamente tentam resumir esse complexo mundo dos relacionamentos entre homens e mulheres. Escolhi algumas das "regras" para comentar aqui com base única e exclusivamente na minha interpretação pessoal; não é uma verdade absoluta e, como tal, é passível de críticas. Não é bem o tipo de texto que gosto de escrever (até porque a redação dessas "regras" desmoralizaria qualquer tentativa de construir um texto literário), mas minha consideração me impede de declinar um convite da Glau.




Eu não acredito em manual, porque qualquer tipo de manual é feito para coisas produzidas em série, que precisam ser entendidas e corretamente usadas. Homens, para mim, não são iguais, do contrário teriam número de série — e, do jeito que o mundo anda, é o que vai acabar acontecendo com todo ser humano —, não são coisas, embora precisem ser entendidos, e, apesar de quase sempre merecerem, não têm de ser usados.

A regra número um desse manual diz que, "se ele se interessou, ele liga!". Tem cara que não liga. Pra nada. E, sinceramente, de que adianta ligar para cumprir um protocolo tido como de praxe? É algo preestabelecido pela sociedade o cara ter de ligar se estiver interessado? Se o motivo da ligação for esse, não, obrigada. Ele tem de ligar porque quer (desesperadamente?) falar comigo, porque se sente bem conversando comigo, porque sente falta de conversar comigo, porque se preocupa e quer saber se eu estou bem, porque quer me ver. Ligar puramente para dar sinal de que está interessado, cumprindo esse papel ridículo de "eu sei que preciso ligar porque é isso que ela quer que eu faça", mesmo sem estar com vontade ou coragem ou estado de espírito pra isso, é sinal de covardia. E não tem nada mais patético do que homem covarde. Então, é preferível o cara levar um século para ligar, mas demonstrar sinceridade e espontaneidade na ligação, do que ligar imediatamente, mas receoso, cauteloso, no melhor estilo "vou ligar porque é isso que ela espera de mim". Ser bem-resolvida, para mim, é nunca esperar, para não quebrar a cara depois, o que, invariavelmente, sempre acaba acontecendo.

O segundo passo aconselha o seguinte: "Passou uma semana sem ouvir notícias dele? Esquece, parte para outra! Ligar para saber se tá tudo bem nem pensar!". Nem pensar em seguir um conselho absurdo desses, isso sim! São atitudes como essa que minam a comunicação, a sinceridade, a intensidade dos sentimentos, a demonstração de sensibilidade. As pessoas começam a se enganar, porque fazem o que lhes é dito em vez daquilo que sentem vontade de fazer. Isso é falta de integridade e é exatamente o oposto de ser bem-resolvido. Estar com vontade de fazer algo e não fazê-lo porque todo mundo diz que não, porque o livro de auto-ajuda diz que não, porque a mãe e a irmã da amiga dizem que não, porque o teste do mês da revista feminina famosa diz que não é falta de personalidade, é medo de levar um fora ou de pagar mico ou de passar por ridícula convertido em desculpa. Uma mulher bem-resolvida tem certeza do que quer e, se preciso for, ela conquista, ela tenta, persevera, demonstra o que sente. As várias formas de fazê-lo é que variam, condizendo com a personalidade de cada fêmea. E, se ela tiver uma boa auto-estima, que isso é a chave para a maturidade emocional, então ela vai perceber quando o cara de fato não estiver a fim dela (porque a maioria deles não tem coragem de dizer na cara da gente, com todas as letras, que não quer nada. Puro comodismo ou medo de ser interpretado como mau caráter, de assumir o que pensa e dar a cara para bater convertido na desculpa esgarçada "eu não vou magoá-la". Ou, o que é pior, forma besta de manter a garota na agenda para poder entrar em contato num momento de carência profunda). Uma mulher bem-resolvida vai parar, naturalmente, de se fazer notar. E vai viver a vida dela do jeito que ela souber, ainda que triste e melancólica por não ter sido correspondida. Nada que doses homeopáticas de amor-próprio não curem.

O terceiro conselho imperdível: "Vocês saíram e ele não ligou mais. Foi porque você cedeu? Ou foi porque você não cedeu? Na verdade, pouco importa. Se o que ele estava a fim era de sexo e rolou, ótimo! Sexo é que nem pizza: bom-até-quando-é-ruim". Como levar a sério um manual que traz "que nem" e reduz o ato sexual à culinária fast-food?! Questões lingüísticas à parte, bem se vê que a pessoa que redigiu isso ainda não saiu do primeiro passo, o que indica que é mal resolvida e que, portanto, não tem cacife para dar conselho nenhum sobre o assunto, porque ainda está encanada com o fato de o cara ter ou não ligado. (Filha de Deus, pare de pagar a conta telefônica que seus problemas acabam. Aí, sim, você poderá mergulhar nessa crise do ninguém me liga e morrer se perguntando se ele não ligou porque não tinha linha ou se foi assassinado pelo homem da companhia telefônica ou se houve uma enchente na casa dele que levou o aparelho telefônico embora e o deixou ilhado sem qualquer tipo de comunicação.) Uma mulher bem-resolvida vai para cama com um cara independentemente de ser a primeira, a segunda ou a vigésima vez que sai com o ser. Se ela sabe o que quer, se o cara é confiável, se ela for segura e se sentir à vontade com ele, ela cede (que verbo mais infeliz!) quando bem entender, e é porque ela quer, não porque ele insistiu. A mulher é a guardiã do sexo, a decisão é sempre dela. Pode ser o deus grego que for, se ela for bem-resolvida, não vai se arrepender de atitudes que tomou. Vai enfrentá-las e aprender com os erros. Ou se vangloriar pelos acertos.

"Mas se você não cedeu, ele provavelmente não te procurou mais porque achou que ia dar muito trabalho. Ou seja, pare de se atormentar porque transou ou não! Duas lições: dar uma de difícil depois de uma certa idade já era! Ridículo é fazer tipinho! E, além do mais, você vai se arrepender de ter cedido e de não ter cedido." Esse negócio de "dar uma de difícil" é coisa de mulher que está acostumada a fazer joguinhos o tempo todo e se esconde em si mesma porque não é capaz de se entender. Tudo para ela é indireto, camuflado, como se fosse preciso se comportar em código o tempo todo. Ela até encontra homens que se sentem "desafiados" em "decifrá-la" (argh!), mas são uns fulanos que têm pouco a oferecer e se contentam com pouco. São homens cuja auto-estima já era faz tempo. Os que interpretam um "não" de uma mulher bem-resolvida como um "comportamento típico de quem está dando uma de difícil" não estao preparados para ficar com uma mulher assim. São imaturos, incompreensivos e insensíveis, além de extremamente egoístas e pretensiosos, por acharem que ela está se dando o trabalho de fazer esse teatro idiota para se valorizar. A mulher bem-resolvida se impõe naturalmente, ela não precisa de subterfúgios. Por isso ela assusta, como eles gostam de enfatizar, porque eles não sabem lidar com transparência, o que simplifica tudo. Ela não "faz tipo", não se baseia na idade para tomar ou não determinadas decisões e não se comporta de modo a querer testar o cara para ver se ele de fato quer ou não algo com ela. Mulher que age assim espera que o homem a valorize porque ela própria não o faz.

Em relação à traição, o conselho é taxativo: "Não continue com um cara que te chifrou se você não agüentar a onda de ser traída de novo. E olho vivo se ele já foi infiel com outras. A gente sempre acha que com a gente vai ser diferente... Esqueça! Nunca é!". Isso é o que eu chamo de falta de esperança no ser humano. Eu luto diariamente contra generalizações, porque entendo as pessoas como únicas e trato-as de modo personalizado porque é assim que as enxergo. Massificar os relacionamentos e seguir cartilha num assunto tão delicado como esse da traição é ser ou ingênuo ou maria-vai-com-as-outras. A mulher bem-resolvida está aberta para tentar entender os acontecimentos, compreender o parceiro e analisar as situações com parcimônia. Vai aceitar ou não ter sido traída dependendo da própria auto-estima e do amor que tiver pelo parceiro. Cada um sabe de si e só se engana se quiser. Até isso é opcional. Se ela tiver consciência de que merece sinceridade e respeito, vai se fazer respeitar e vai respeitar também. Se souber que o parceiro já foi infiel com outras, cabe a ela tentar entender os valores que o parceiro tem, se mudaram ou não, porque as pessoas podem, sim, mudar. Mas elas sempre dão indícios de que mudaram por meio de atitudes; só palavras não bastam.

Para terminar a sessão cascata, o manual de meia-tigela fecha com chave de ouro, no mais batido lugar-comum: "E atenção! A 'fila anda'! Pior do que nunca achar o homem certo é viver pra sempre com o homem errado". Essa coisa de fila é conversa para boi dormir. As mulheres falam isso para tentar se defender do "efeito falta de homem no mercado". Não existe fila coisa nenhuma, pelo menos não para a maioria delas. Elas é que mudam de fila e vão para a fila de outros homens, pegam senha e tudo, esperando chegar a vez. É machista dizer isso, sim, eu sei, mas é o que acontece. Homem certo e homem errado são valores relativos. O que é o certo para uma pode ser o errado para outra e vice-versa, do contrário todos os "errados" estariam sozinhos. Não existe isso, porque as pessoas nunca estão totalmente prontas. Os relacionamentos as lapidam, as amadurecem e as ensinam a tornarem-se o certo para a pessoa com quem estão, sem perder sua individualidade.

Para mim, é assim que tem de ser. E, para esse aprendizado, infelizmente ainda não existe manual.


21 maio 2007

O buraco é mais embaixo

Para Tereza Duarte,
cidadã que tem brigado bravamente com a Prefeitura


Museu da Língua Portuguesa — SP
Exposição sobre Guimarães Rosa



— Atendimento ao cidadão, Prefeitura, bom dia!
— Bom dia, eu gostaria de fazer uma solicitação, por favor.
— Pois não.
— É que tem um buraco enorme na minha rua, sabe? Eu quero pedir para vocês virem consertar.
— Bom, senhor, para que possamos tomar providências, primeiro temos de saber quem é o dono do buraco.
— Como? Desculpa, acho que não entendi.
— O dono do buraco, senhor. Todo buraco tem um dono. A gente precisa requisitar o conserto ao dono do buraco.
— E você por acaso está insinuando que eu saia por aí procurando o dono?! "Ei, você aí, tem algum buraco?". Minha filha, isso é ofensivo, eu posso até ser agredido! Ora essa! E outra: quando eu cheguei do trabalho o buraco já estava lá. Como é que eu vou saber quem foi que fez aquilo?
— Infelizmente, senhor, essa é uma informação imprescindível para o andamento do processo. Sem saber quem é o dono do buraco, a Prefeitura não pode mandar que ele seja consertado. De qualquer modo, anote o número do seu protocolo, por favor. Quando identificar o dono do buraco, pedimos a gentileza de entrar em contato novamente e informar esse número.
— Pode falar, vai...
— 1985721936-R-B
— Credo, que número gigante!
— Para a sua informação, senhor, trata-se do número ordinal da reclamação, representada pela letra R; e B é...
— Buraco! Pra você ver como tem buraco nesta cidade! Já adotaram até um código pra eles!
— É só isso, senhor?
— E eu tenho outra opção?!
— Boa tarde. O Atendimento ao Cidadão agradece a sua ligação.

-o-o-o-o-o

— GasTura da Cidade, Atendimento ao Consumidor, bom dia!
— Oi, bom dia! Sabe o que é? É que tem um buraco na minha rua e eu queria saber se...
— Desculpe, senhor, mas, sobre buracos, o senhor precisa ligar para a Prefeitura.
— Mas é que a Prefeitura só toma providência se eu achar o dono do buraco e eu pensei que talvez vocês pudessem ter estado na minha rua esses dias fazendo alguma manutenção...
— Não, senhor, isso é impossível.
— Bom, mas você nem perguntou o nome da minha rua!
— Não é preciso, senhor. A GasTura não faz manutenção em suas tubulações há cerca de dois meses. Os funcionários que fazem esse tipo de serviço estão em greve.
— Ah, por que será que eu não fico surpreso, né? Tudo bem, obrigado.

-o-o-o-o-o-o-

— Energia na Sua Vida Cia Elétrica, bom dia!
— Bom dia! Oi, sabe, eu preciso saber se o buraco que tem na minha rua é de vocês.
— Desculpe, senhor, não entendi sua solicitação.
— Ai, é que tem um buraco enorme na minha rua, que, quem sabe — e eu espero que vocês saibam — pode ter sido causado por vocês na tentativa de soterrar a fiação elétrica, né?
— Impossível, senhor. Nós só procedemos a esse tipo de serviço em áreas tombadas pelo Departamento de Patrimônio Histórico, que, até a presente data, ainda não fez nenhuma requisição nesse sentido.
— Mas quando eu cheguei do trabalho aquele buraco estava lá e, quando fui entrar na garagem, a rua é mal iluminada, sabe, uma das rodas do carro caiu no buraco e...
— Senhor, nós não temos serviço de guincho, e, sobre buracos, o senhor tem de ligar para a Prefeitura. Agora, em relação à rua ser mal iluminada, o senhor precisa entrar no nosso site, preencher uma ordem de serviço online explicando os motivos da falta de iluminação, se a iluminação da sua rua é seriada ou não, o tipo de lâmpada utilizada, a distância entre os postes, essas coisas, para que essa requisição seja analisada e, tão logo seja classificada como procedente, possa ser encaminhada ao departamento competente e, então, ser prontamente atendida.
— Você chama isso tudo aí de prontamente?!
— De qualquer maneira, pode anotar o número do seu protocolo de atendimento, por favor? É 54678487213357-R.

-o-o-o-o-o-o-

— Água Pura na Torneira Saneamento Básico, Atendimento ao Consumidor, bom dia!
— Oi, bom dia! Então, é que tem um buraco na minha rua e eu queria saber se vocês são os responsáveis por ele.
— Houve alguma manutenção relativa a água e esgoto na sua rua nas últimas semanas?
— Não que eu saiba. Veja bem, eu cheguei do trabalho e aquele buraco já estava lá, enorme!
— É um buraco só, senhor?
— E você já não acha o suficiente, minha filha?!
— Estava havendo algum tipo de vazamento na sua rua?
— Eu trabalho, sabe, passo o dia todo fora, como é que eu vou saber?!
— É, senhor, bem se vê que o senhor não sabe nada. Então, permita-me explicar-lhe: aconselhamos que o senhor se informe com os vizinhos primeiro e depois retorne a ligação, para que possamos tentar ajudá-lo.
— Mas é que eu nem conheço os meus vizi...
— Por favor, anote o número do proto...
— Ah, que protocolo, que nada! Tenho mais o que fazer! Só não te mando à m... porque você já trabalha nela!

-o-o-o-o-o-o-

— Atendimento ao cidadão, Prefeitura, bom dia!
— Bom dia uma pinóia! Eu sou o 1985721936-R-B e exijo que vocês consertem aquela porcaria de buraco que brotou na minha rua, porque eu pago imposto e tenho esse direito! Aliás, nem é questão de direito, é obrigação mesmo; vocês têm obrigação de consertar aquilo!
— Senhor, para que possamos fazer isso...
— Já sei, precisam saber quem é o desgraçado do dono do buraco e blablablá. Pois isso não é problema meu! Se mexam, bando de desocupados! Sabe quanto tempo eu perdi ao telefone procurando o que vocês deveriam saber e não sabem? Cambada de sem-vergonhas, desorganizados! Aí não é o raio da Prefeitura?
— Sim.
— E não é o-raio-que-o-parta da Prefeitura que toma conta dos buracos?
— Se for um buraco municipal, sim. Em estradas estaduais e federais, isso é responsabilidade do governo.
— Como se vocês não fossem governo! Então, se vocês cuidam dos buracos municipais, são responsáveis pelos buracos da cidade. Pronto! Taí! Achei o dono do buraco! Não era o que você queria? Arrá! A cidade! Então, como a palavra "cidadão" vem de "cidade", posso ser o porta-voz dela nessa reclamação.
— Bom, senhor, presumo, então, que o senhor já tenha a resolução para o seu caso.
— ?!
— Se o senhor é um cidadão, palavra que provém de "cidade" como o senhor bem colocou, e se o buraco é "da cidade", então, o senhor é o dono do buraco. Sinceramente! Não tem vergonha de ligar para um serviço sério como o nosso para fazer esse tipo de brincadeira cínica, não, hein?! Tenha a santa paciência!


14 maio 2007

Lucy do Espírito Santo

" Oi, minha linda! Que prazer em conhecê-la!"

É assim que a dona Lucy — "é com ípsilon, minha nega" — cumprimentou-me quando estive em Guarapari, no estado do Espírito Santo. Ela costumava ter um quiosque na Praia de Itaparica, perto da casa da Roseli, irmã da Rute. Então, por tabela, acabei conhecendo-a também, porque a Rute sempre visita a dona Lucy quando vai ao Espírito Santo.

Mesmo sem me conhecer, essa senhora risonha, bronzeada e bem-disposta tratou-me com uma doçura de madrinha, distribuindo espontaneidade em risadas sonoras carregadas de diversão. Ela sabe viver de um jeito invejável. Mas é uma inveja boa, como ela.

Nesse único dia em que passei com dona Lucy, aprendi um mundo de coisas. Além de me ciceronear, ensinou-me a fazer moqueca adaptada (porque nem eu nem ela comemos camarão), feita com um peixe fresco delicioso que fomos comprar na peixaria do magnata da cidade; a reconhecer o amor verdadeiro, quando descreveu em meia dúzia de precisas palavras como é o casamento com o marido; a ser simpática, pois cumprimenta Guarapari inteira com gentis boas-tardes entremeados por piscadelas conquistadoras; a entrar no mar gelado e ainda assim achá-lo quente; a tratar bem os animais, quando parou numa farmácia para comprar remédio para a cachorrinha dela; a cultivar plantas em vasos improvisados dispostos em tudo o que é canto da casa; a rir com programa de televisão vespertino e a amar o próximo com todo o imenso coração que ela carrega dentro dela.

Fomos a várias praias, à praça da cidade, ao bairro onde ela mora, ao céu... Porque a dona Lucy é algo de divino que habita este planeta. Ela come na panela, tira todas as toalhas do armário para te convencer a tomar banho no banheiro dela enquanto ela arruma o almoço, conta como Deus entrou na vida dela, como ela ajuda a comunidade, como cortar a batata para ela cozinhar mais rápido ou o que fazer com o pepino para que ele fique leve na digestão. Tudo isso quase ao mesmo tempo.

Mas a dona Lucy não apenas cozinha bem. Ela é o bem em uma pessoa inesquecível que resgata na gente todas as esperanças perdidas com trânsito caótico, comportamentos egoístas ou falta de consideração. Ela é destemida, clássica, sociável e atenciosa. Olha a gente com uma profundidade indizível, numa expressão serena e de bem com a vida.

Quem conhece essa senhora paulistana radicada no Espírito Santo — "e daqui ninguém me tira, turista, só se for pra eu voltar pra Osasco, onde fui muito feliz!" — entra em contato com o que de mais nobre o ser humano guarda dentro de si: o doar-se, com toda a boa vontade do universo, àqueles que de nós precisam.

É por isso que a partir daquele dia eu passei a amar Guarapari. Porque é lá que mora a dona Lucy.



07 maio 2007

Um caso de amor

Chega, pra mim tà tudo acabado. Nada vai me fazer mudar de idéia.

Sete anos, você tem noção?! Foram sete anos de cumplicidade, de companheirismo de que eu estou, sim, abrindo mão. Cansei simplesmente, apesar de sentir assim uma pontada de pena, uma tristezinha assim... apertadinha, sabe?

Eu sei, isso magoa. Mas tem hora que não dá mais. Você está careca de saber o que eu penso (ai, ai, e põe careca nisso...), eu nunca te enganei. Nunca disse que seria eterno. Ainda mais hoje em dia, quando tudo é assim tão, tão... substituível. Tem tanto vovô por aá que troca a "caranga velha de guerra" por duas ou três "máquinas" mais jovens... Por que eu não posso trocar você por outro e recomeçar do zero? Vida nova, sabe? Por que sou mulher? Pois eu posso, sim! E, convenhamos, você não é lá assim aquela "potência" pra me deixar empolgada a ponto de me fazer repensar nossa relação. AliÁs, diga-se de passagem que "potÊncia" não é a palavra mais adequada, né?, porque várias foram as vezes em que fiquei a ver navios na primeira tentativa. Na segunda você entendia a gravidade da situação e até que dava sinal de vida, mas tinha de se esforçar de um jeito que, sinceramente, tem de ter fé, viu? Pensando bem, é, eu me satisfazia com pouco.

Apesar disso, você nunca me deixou na mão, não vou negar. Sempre me levou pra tudo que foi lado, eu nem precisava pedir. Um verdadeiro cavalheiro, você sabe. Foi subserviente, resignado. Nunca se rebelou, fez greve, saiu por aí dando piti com aquelas fumacinhas de histórias em quadrinho, nervoso e sendento por vingança. Nunca foi esquentadinho, ao contrário! Uma calma irritante, uma frieza interior incapaz de esquentar sequer meus pés nos dias frios. Isso eu sempre relevei, porque não se pode ter tudo, não é verdade?

Mas tudo bem. Não quero parecer mal-agradecida, até por isso é que decidi te chamar pra conversar e falar tudo, assim, abertamente. Você foi competente, considerando-se todo o nosso histórico. Você me abrigou de uma série de intempéries, inclusive emocionais. Aturou, sem se envergonhar, a minha voz estridente cantando feito um candidato desafinado de programa de auditório, ouviu atentamente as minhas lamúrias, até presenciou momentos históricos de falta de educação... tudo impassível, numa compreensão que, eu sei, vai ser difícil de achar em outro. Você agüentou o tranco, eu admito. Nunca sumiu, porque essa coisa de sumir deixa qualquer mulher fula da vida. A gente conta com o ser e, quando vai ver, cadê? Puft, meu bem, puft! Você, não. Pelo menos isso, hein?! Da nossa cumplicidade, meu querido, eu vou sentir saudade.


Então, por que não dá mais, você me pergunta... Os relacionamentos precisam se modernizar, meu bem. Você parou no tempo. Eu sou uma mulher moderna, que precisa de uma certa estabilidade, você me entende? Não dá pra ficar balanceando tudo assim, toda hora, como quem não tem mais o que fazer! E outra: você está me levando à falência. Hoje dia, queridinho, o dinheiro fala, sim, mais alto. Não dá pra ficar te bancando assim. Você vive duro! Tenho de me desdobrar em mil, tirar forças sabe Deus de onde pra conseguir sair do lugar. Eu sou uma lady, mereço conforto, bajulação, comodidade. Não sou eu que tenho de pagar por isso! Sua obrigação, como parte atuante neste relacionamento, é prover o mínimo de conforto à sua família. Mas, que nada!

E tem mais: todos os livros de auto-ajuda do mundo — eu disse do mundo! — afirmam categoricamente que existe, sim, a tal crise dos sete anos. Foi isso. Deu o estalo, entende? Eu acordei um dia, olhei para você daquele jeito de manhã e me desencantei. Você ronca de um modo que não dá pra suportar! E no começo não era assim, você lembra? Agora?! Jesus me salve! A gente não pode encostar, dar um tranquinho um pouquinho mais agressivo pra deixar as coisas mais emocionantes, sabe?, que você já se desmancha que é de dar dó. Acabado, pra dizer o mínimo. Até a cor você perdeu, anda meio pálido pelos cantos. Anda é modo de dizer, né, porque rápido você nunca foi. Agilidade não é mesmo sua característica principal. Você é prático e tal, quebra um galho. Mas que mulher sou eu que se contenta com um quebra-galhos? Olha pra mim, criatura! Tenha piedade, não?!

Entende agora, meu amigo — ai, quando a gente chama de amigo é porque não tem mais jeito mesmo, né? Olha, pensa pelo lado positivo: se eu dissesse "fofo", seria pior... —, o motivo de eu estar te trocando por outro? O outro apareceu, é mais bonito inclusive. E eu não sou cega! Um bonitão me dando mole? Dependendo da idade, querido, a gente não pode ficar pensando muito, não! E, sabe o que foi decisivo pra mim? Diferentemente de você, ele não tem problemas com álcool. Vai ser muito melhor pra mim, compreende? Não vai haver desgaste na relação. E ele vai me proporcionar o que você não consegue, é melhor nem entrar em detalhes, não quero te magoar ainda mais...

Pra variar você não fala nada, não? Sempre quieto, resiliente. Você não se sente usado, não?! Bom, já que você não se manifesta, agora vem o pior: eu vou te depenar. Tô sendo honesta, tô falando porque detesto falsidade. O pouco que você ainda tem com você, seus parcos pertences, já era, meu bem. Eu vou ficar com t-u-d-o, tudo, ou melhor, com o que restou, que chamar de tudo é superlativo.

Sete anos de fidelidade, de cumplicidade. Você me conhece bem, foi quem mais andou comigo nesse tempo todo, então nem vem dizer que eu te enganei e tal e coisa. Como sempre, estou sendo supersincera e abrindo meu coração pra você. Eu te agradeço por tudo, pela paciência inclusive, porque eu sei que me agüentar não é fácil (apesar de eu ser leve! Isso facilitou sua vida, hein? Fala sério!). Ã, desculpe a brincadeira, isso não é hora de ter ataque de bom humor, mas, você sabe, esse meu lado sarcástico incontido é fogo!

Não fique triste, alguém vai te encontrar e te achar o máximo, como eu te achei um dia. Você pode fazer alguém feliz mesmo, er... er..., com as suas limitações. É difícil, eu sei, ouvir isso não é pra qualquer um, mas eu tô sendo legal em te alertar e sei que você é forte e vai superar. As pessoas têm de começar por algum lugar, né? Relacionamento é isso, fofo, ops, amigo. Na boa, você me entende?

É que realmente estava mais do que na hora de eu trocar de carro.



Para o meu Pálio verde, de quem vou sentir saudades agradecidas por 81 mil quilômetros sem sequer furar o pneu ou ter de chamar o seguro.