15 agosto 2006

Cantoria mais besta, sô!


Dizem por aí que quem canta os males espanta. Mas aposto que muita gente canta sem sequer prestar atenção àquilo que está cantando: pronunciam as palavras assim, descompromissadamente, mais guiadas pela melodia que propriamente pelo significado da canção.

Pois eu, aquela que lia o mundo de um jeito pra lá de curioso, também lia o que eu cantava, ou o que cantavam para mim, com os mesmos olhos “isológicos” de sempre: arregalados de horror ou com cintilantes pontos de interrogação faiscando pra lá e pra cá.

Minha mãe, por exemplo, na melhor das intenções maternas, cantava uma música para a gente dormir. Segundo ela, uma música que minha avó cantava para ela. Mas eu, em vez de dormir, permanecia imóvel debaixo das cobertas, com um medo friorento que congelava meus movimentos e não me deixava sequer piscar.

A música dizia assim: “Ei vi Nossa Senhora / na beira do rio / lavando os paninhos / pro seu bento filho / Nossa Senhora lavava / São José estendia / e o menino chorava / do frio que fazia / Não chore, meu menino / não chore, meu amor / o frio é uma faca que corta / um talho sem dor”.

Pois era justamente esse talho sem dor e a tal da faca que corta que me deixavam horrorizada. Como eu ainda não era alfabetizada, pensava em imagens e, sendo a metáfora uma delas, pensava-a literalmente: imaginava um menino todo retalhado (“talho” < “retalho”) pela faca do frio... e eu é que ficava gelada.

A música do Cravo que briga com a Rosa era outra coisa pavorosa. Rosa mais burra, que, depois de apanhar do imbecil do Cravo, ainda vai visitá-lo por ele ter ficado doente! Inadmissível isso para mim. Eu via a cena na minha cabeça: os dois debaixo da sacada numa briga violenta. Um barraco nada divertido para uma criança, convenhamos. Música mais machista e, ainda por cima, de espancamento!

Aí vinham as cantigas de roda. Sabe-se lá de que tempo era isso, porque eram umas palavras muito estranhas para alguém que ainda estava aprendendo o som correto que elas têm. Duvido que alguma criança soubesse o que era “ladrilhar” na música: “Se essa rua / se essa rua / fosse minha / eu mandava / eu mandava / ladrilhar / com pedrinhas / com pedrinhas de brilhante / para o meu / para o meu amor passar”; ou o que era uma cutia que corria na casa da tia. Diga-se de passagem que essa música da cutia apressada era a coisa mais sem pé nem cabeça que eu já havia escutado na minha tão infantil vida. Um galo que chupa cana com um dente só?! Eles pensam o quê? Que criança é burra?! Para piorar, a bendita segunda pessoa... aqui em São Paulo, onde sempre vivi, essa coisa do te, ti, contigo, tu e afins não é usada. Então, pra mim, a música da Ciranda, Cirandinha continha umas palavronas: “tumitinhas”, “tumidestes” que eu nem fazia idéia do que eram. É, porque eu também achava que o “Abre-te, Sésamo” do filme era “Abre, Tesésamo”, assim, tudo grudado. Essa prática mania de juntar tudo eu também aplicava a uma música portuguesa que eu sempre ouvi: “Lá em cima está o tiro liro liro / lá embaixo está o tiro liro ló / juntaram-se os dois na esquina / tocaram concertina / dançaram sol e dó”. Pergunto-vos: como é que este ser que vos fala saberia, naquela idade, que concertina era um instrumento musical? Achava que era algo como “com certeza”. E o “sol e dó”, como era cantado “solidó”, só podia ser o nome da dança que aqueles loucos dançavam com certina.

Para terminar essa minha truculenta relação com as canções infantis, eu ficava arrasadíssima com a música do ribeirão que secou. Na parte do “as flores já não crescem mais / até o alecrim murchou / o sapo se mandou / o lambari morreu / porque o ribeirão secou”, eu com certina absoluta achava que o Lambari era uma pessoa que tinha morrido. Puxa, muito triste isso! Eu não chegava a chorar, mas me recusava terminantemente a cantar algo tão trágico. Mal sabia eu que a melodia da idade adulta traria imagens infinitamente mais trágicas do que as que minha mente criativa imaginava de maneira tão inocente. Porque, meus caros, quando a gente perde a inocência, passa a sofrer não mais apenas na imaginação.



Legenda da imagem: quadro de Almeida Júnior, chamado "O violeiro" (1899), fotografado na Pinacoteca do Estado, em São Paulo.

Curiosidade: segundo o Houaiss, "concertina: instrumento da família do acordeão, de forma hexagonal, dotado de dois teclados de botões com que se produzem acordes e melodias; gaita".

8 comentários:

Anônimo disse...

Lindo, poético, sincero! Vc me fez lembrar de músicas que ouvia quando criança... e como vc, tb emendava palavras que depois não sabia o que significavam....rsrsrsr
Era muito bom, e com certeza, a melhor época de nossa vidas, né?
Bj

Alexandre Silva

Anônimo disse...

Kandy,
eu tb achava a música do "ribeirão que secou" muito deprê... Mas é muito melhor que muita coisa que as rádios executam por aí... Por exemplo, eu não tenho a menor dor na consciência em dizer que Mamonas Assassinas foram tarde, rs, pois, musicalmente falando, que falta eles fazem? Teve um outro "funkeiro", eu acho, que cantava com o irmão e se foi...(tarde tb)... Depois minha mãe- que ouve pagode, pra meu desespero- não sabe por que eu "apelo" p/ as bandas de rock internacional... É muito mais profundo/ filosófico um álbum como o "Seventh son of the seventh son", do Iron Maiden, do que certas coisas que somos obrigados a engolir em português, como uma musiquinha da "água de coco", (do Daniel ou Alexandre Pires, eu graças a Deus não sei quem é...).
Bjs, da sempre revoltada,
Jana

Anônimo disse...

Ora, vc tirou a minha ilusão! Eles encontravam-se na esquina pra dançar o solidó!!! E Tumitinha era o menino apaixonado!

Anônimo disse...

Me reconheço em muitos dos seus textos... Esse é um deles...
Bjos...

Anônimo disse...

ai, ai, ai... muitos risos!!!
Como era bom demais ser criança!!
Gostosura de texto.

Anônimo disse...

Adorei...Lembrou-me nossa infância.
Lembro de uma música sobre uma tal de A Linda Rosa Juvenil, que vivia em um castelo e até hoje a tal linda rosa eu não tenho a mínima idéia do que seja. E o Atirei o Pau no Gato? Que coisa mais cruel com o bicho. E Dorme nene que a Cuca vem pegar????
Pergunto: Como conseguimos sobreviver a nossa infância e nos tornar pessoas tão normaizinhas depois de tudo isso? rsrsrsrsrsrsrs

Anônimo disse...

Kandy,
apesar de já termos conversado sobre isso, você acredita que ri muito lendo o texto?

Muito bom!

Beijos,

Anônimo disse...

Sinto-me privilegiada, por em certa época da minha vida poder ter lhe conhecido pessoalmente e hoje mais que naquela época, por incrivel que pareça, suas palavras acalmam meu coração...muitas vezes me encontro nas suas idéias...assim como nesse poema...o do Papai Noel e outros diversos que vou lendo aos poucos.
Parabéns, você é linda por dentro e por fora mais ainda, e você sabe disso!!!
Felicidades, saúde e um grande AMOR é o que desejo de coração pra você!
Saudades...Beijos