
Corresponder, no mundo de hoje, é, sem dúvida, uma arte, pois, segundo algumas acepções do Houaiss, significa "estabelecer ligação com (alguém) por meio de carta", "apresentar relação mútua", "responder de maneira semelhante", "retribuir".
É uma arte, primeiro porque poucos hoje em dia estão aptos a escrever cartas como se deve, com bom português e redação cuja leitura dá vontade de devorar. Segundo, porque essa era pós-industrial se mostra cada vez mais despersonalizada e individualista, e individualismo não combina com retribuição.
Assim, nada corresponde às expectativas. A mesa que arranjam para você no restaurante nunca é a que você escolheria, o amor da sua vida geralmente ou não sabe que é o amor da sua vida ou, o que é pior, mesmo sabendo, não corresponde. A empresa para a qual você trabalha não valoriza você, por vezes te explora e, novamente o que é pior, finge que você não existe e que não precisa de você. O pãozinho da padaria não vem torradinho o suficiente ou vem branco demais. A marca que você procura no supermercado não tem. Param de fabricar sua bolacha predileta, o batom que você encomendou por catálogo vem numa cor diferente, a conta do celular aumenta de um jeito que te pega de surpresa, as fotos que mandou revelar não vêm no papel fosco que você pediu, a empregada esquece de limpar o beiral da janela, essas coisas. Corresponder é mesmo difícil.
Houve uma época em que eu me correspondia muito com as pessoas, na primeira acepção. Escrevia cartas gigantescas com essa minha linguagem peculiar, sem rascunho, de modo mais personalizado que eu. Como diz a reportagem da revista, escrever cartas aos outros, para mim, "tem poderes especiais", porque uma carta "pode ser mais íntima e tocante que uma conversa. Pode ser mais pessoal que uma ligação. É um presente".
Embora, quando presenteamos alguém, não exijamos retribuição, no caso de qualquer tipo de correspondência ela é necessária, porque corresponder não é verbo unilateral. Então, fui parando de escrever cartas mediante a escassez das respostas. A concorrência com mensagens eletrônicas e linguagem esburacada foi desleal. Assim, hoje, só escrevo uma carta em ocasiões muito especiais. E, se puder, não uso o correio, porque ele estraga meu lacre de cera, outro indício de que nasci na época errada.

Assim começou, não só para mim, mas para todo mundo (e todo o mundo)*, a era da descorrespondência, nome que dei ao que chamam de era pós-industrial, que, como disse aí em cima, é tão despersonalizada que nem nome próprio tem. E, pela terceira vez, o pior: começou a contaminação mundial com a idéia de que ninguém precisa de ninguém, de que as pessoas têm de parar de ser tão exigentes e querer reciprocidade, aprendendo de uma vez por todas a lidar com as frustrações — isso faz parte da vida, meu filho. Cá para nós, só faz porque as pessoas se acostumam.
Esse sentimento global de descorrespondência assola de um jeito avassalador. Gera carência, tristeza, um punhado de infelicidade e muita coisa sem resposta (perdoe-me o jogo de palavras). Então, quando um iluminado qualquer decide mandar uma carta bonita e bem escrita, sincera e especial, o destinatário, em vez de ficar feliz, se assusta. Quando um outro iluminado resolve dizer o que vai no coração, sincera e especialmente, o interlocutor, em vez de sentir-se lisonjeado, fica com medo. Quando um terceiro iluminado resolve enfrentar tudo de peito aberto, com comportamento sincero e especial, o mundo, em vez de acolhê-lo, o repele. Quando o quarto iluminado decide dedicar-se de corpo e alma a um trabalho bem feito, a empresa, em vez de recompensá-lo, o explora. E tudo fica ao contrário de um jeito confuso.
De minha parte, ainda tenho papéis de carta e caligrafia legível porque acredito na correspondência em todas as acepções. Entretanto, qualquer que seja ela, se não for uma relação mútua, se não trouxer respostas de maneira semelhante, se não indicar retribuição, um dia acaba. Como tudo. Ter consciência disso é a resposta que falta.
* todo mundo = todas as pessoas (aqui, "todo" é pronome indefinido); todo o mundo = o mundo inteiro (aqui, "todo" é adjetivo). Como adjetivo, é sempre seguido de artigo definido; por isso tem semântica diferente da outra classe gramatical, o pronome. Usar um pelo outro, além de demonstrar falta de domínio gramatical, leva o leitor a ler gato por lebre. Como é erro muito comum por aí, achei por bem corresponder às expectativas e esclarecer a diferença.