16 setembro 2008

O amor nos tempos verbais

Aparecida do Norte - SP


“Pensava nele sem querer, e quanto mais pensava nele, mais raiva lhe dava,
e quanto mais raiva lhe dava, mais pensava nele,
até que a coisa ficou tão insuportável que lhe afogou a razão.”

Gabriel García Márquez, O amor nos tempos do cólera.
29. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 351.


Nós, que nos amávamos tanto, deixamo-nos acabar como a garoa de ontem, que caiu de repente, invisível. Porque não nos enxergamos mais. Porque transcrevemos o amor demais em cartas hoje encalacradas em alguma gaveta por aí. Porque desgastamos o tapete da sala com passos de ansiedade, de espera, de desconfiança. Sobraram os fiapos.

Se nos amávamos tanto, deveríamos buscar a origem disso em vez de esforçarmo-nos pelo fim, inspirados pelo cinema que adorávamos freqüentar juntos, onde todo começo é medíocre, onde todo final é grandioso.

Agora, sentindo o frio que voltou sem aviso, o vazio que cresceu sem sentido, o arrepio que percorre a espinha, assombra-me a certeza de amarmos tanto, devora-me a ousadia de teimarmos tanto, devassa-me o orgulho de corrermos tanto, desesperados, para lados idiotamente opostos, permitindo que a mágoa nos habite desse jeito covarde e pífio, como se fracos fôssemos.

Porque nós, que nos amávamos tanto, escurecemos sem mais, tornando tudo noite, breu, seu, meu. Nossos egos inflados ultrapassaram os contornos um do outro, e invadimo-nos numa guerra de subjuntivos. Quando as hipóteses tomam conta, deixamos de ser reais.

Nós, meu amor, justo nós, que nos amávamos tanto, perdemos um ao outro junto com a razão, num labirinto próprio, tão vasto e sinuoso, que nos fez desabar de raiva em recorrente ressurreição, num chão empapado de mesmice.

Pensando nisso — e eu não paro de pensar —, amanhã, futuro do presente, vou comprar outro tapete para direcionarmos nossos passos à mesma direção, porque temos de amar no indicativo e escolher os mesmos verbos. Portanto, sejamos cúmplices, não mais imperativos.

Afinal, nós nos amamos tanto... Isso tem de bastar.