07 maio 2009

É fato

A intuição falava mais forte: não vá, fique quieto. Mas a quietude havia muito andava em outros ares. Aquele passageiro nunca gostara de andar de avião.

Os aeroportos sempre o incomodaram, porque, para ele, imprimem nas pessoas uma pressa que não lhes pertence. Querem ir logo, chegar logo, voltar logo. A transitoriedade nos saguões é incômoda.

Incômodo também era um barulho surdo que nada dizia, apenas cutucava aquele passageiro. Não tinha jeito. Decidiu voar assim mesmo.

No check-in, perguntaram-lhe qual a preferência de assento. “Tanto faz”, respondeu. Já não ligava mais para esse tipo de coisa. A aleatoriedade talvez trouxesse um pouco mais de emoção.

O voo atrasou. Incrível como o sempre insiste em acontecer. 9F era a poltrona. Janela. Talvez um sinal para a necessidade de aprimorar a observação.

Ia começar a meditar sobre o acaso, o horizonte, a chuva que caía, quando sentiu o barulho surdo cutucar mais uma vez, agora mais real, bem atrás de sua poltrona: uma garota mal-educada, que deveria se chamar Chata, não Aline -- ele descobrira o nome da criatura por causa da mãe dela, cujo vocabulário limitava-se ao nome da filha e mais meia dúzia de críticas à idade da aeronave. Soltava frases ameaçadoramente patéticas, abafadas pela falta de autoridade que se refugiava no abraçar do travesseiro velho trazido de casa.

O passageiro resolveu tampar os ouvidos com música, quem sabe assim abafaria a ansiedade. Quis ocupar também os olhos. Pegou a revista da companhia aérea e, mais uma vez apostando no aleatório, abriu-a ao acaso. “Divina Celeste”, anunciava a reportagem. Falava sobre uma professora de ioga. É, era mesmo preciso paciência de monge naquela situação.

Voo lotado, chutes mais incisivos na poltrona, a Chata chatíssima tagarelando com a mãe, que agora acariciava a fronha brega do travesseiro, que combinava com seu cabelo.

Foi então que o sempre deu lugar ao inesperado. “Finalmente”, ele pensou. Um pouco de novidade para distrair os nervos. O comandante anunciou pelo alto-falante que o atraso – desculpe-nos o transtorno – devia-se a um problema técnico com o rádio de comunicação interna. Deveras criativo aquele comandante, é fato.

O passageiro interpretou isso como outro sinal: estavam forçando-o a pensar mais seriamente em considerar a intuição, isso sim era fato.

O pensador, escultura de Rodin - Museu Rodin - Paris

Decidiu anotar toda aquela imprevisão em seu caderninho de bolso. Ao abri-lo, também a esmo, encontrou uma nota de 50. O acaso era mesmo emocionante. Resolveu, então, dar mais uma chance ao inesperado e continuar ali, para ver no que ia dar.

Até que os cinquenta minutos de pensamentos forçados foram bruscamente interrompidos por outra informação: “senhores passageiros, infelizmente, o problema é um pouco mais sério e teremos de trocar de aeronave”.

O passageiro foi tomado pela quietude de seu levantar de sobrancelhas. Fique quieto, a perplexidade sussurrava. Pouco durou. O barulho surdo que nada dizia vagarosamente foi voltando, até ficar mais forte, e, dessa vez, não era mais a menina chata da mãe com o travesseiro.

O que mais o impressionara nem fora o transtorno de trocar de aeronave, mas aquela revelação: “o problema é um pouco mais sério”.

Sempre é.