
A Sueli trabalha no mesmo lugar que eu. Quase nunca abre a boca, mas presta muita atenção na conversa alheia. De boba não tem nada. Nem de surda, só de calada.
Ela entra na sala das pessoas com passos silenciosos, porque a gente só se dá conta da presença dela quando ouve o barulhinho do saco de lixo, onde ela cuidadosamente coloca o papel reciclado que a gente junta. Dá uma olhadinha de lado, eu sempre falo oi e obrigada, mas a voz dela está ali tão presa na insignificância imaginária que eu mal ouço resposta.
Nos corredores o contato é mais amistoso. É só a Sueli começar a limpar o chão, que lá vou eu passar pra lá e pra cá. Cumprimento novamente, peço desculpas toda sem graça por atrapalhar, mas ela sorri. Não tem problema, pode passar. Pra ela, parece que nada nunca tem problema, tudo neutro feito o detergente que ela usa.
Na hora do almoço a Sueli sempre limpa o banheiro feminino. Eu entro lá assobiando, feliz da vida por poder escovar meus dentes na santa paz e... dou de cara com a Sueli lavando a pia. Oi, Sueli, volto depois. Nem é preciso esperar muito, pois a rapidez e a eficiência da Sueli são proporcionais ao silêncio que dela emana.
Tudo isso me faz pensar que a Sueli tem um céu só dela. Mas eu não tenho certeza de que cor ele deve ser. Penso nele sempre cinza, porque a Sueli é toda quieta, presa, contida feito nuvem guardando chuva. Mas ela nunca troveja. Nem ameaça. Ela passa dentro de um uniforme branco e azul, touca na cabeça e todo aquele material de limpeza. De certa forma, a Sueli chove naquela empresa, lavando tudo daquele jeito... neutro.
Um dia, porém, o céu da Sueli desabou em outro lugar. Justamente pela eficiência e rapidez proporcionais ao silêncio, foi convocada para cobrir as férias de uma colega em outra empresa, porque a Sueli trabalha para uma limpadora terceirizada. Para o lugar dela veio a Isabel, tão torta que devia ser com z.
E essa troveja de um jeito estrondoso. Pois não é que a dita fala pelos cotovelos e ri com as mãos? Sempre tagarelando e reclamando da vida. Tem três filhos, que ficam sozinhos à tarde porque, sabe, menina, eles não têm com quem ficar. A mais velha estragou a televisão porque achou que, pelo fato de ela ter esquentado, estava com sede. Derramou água no aparelho. A mais nova puxou à mãe: ri o tempo todo. A Isabel faltou no trabalho quatro dias seguidos. O bilhete-único dela quebrou. Fiquei em casa, sabe?
Ela adora forró. Numa sexta-feira, enquanto todo mundo ia embora dizendo animados tchaus, ela ria mais ainda e dizia, num sorriso desabotoado, que não via a hora de ir para o forró, mas só com o dinheiro da condução que ela não é besta; lá ela havia de achar alguém que pagasse a consumação dela. De boba não tem nada. Nem de surda, só de calejada.
Nesse período, eu senti saudade da Sueli, apesar de a Isabel ser divertida. Mas minha mesa vivia cheia de resquício de borracha, meu lixo demorava pra ser esvaziado, minha sala não era varrida todos os dias, e a Isabel se arrastando na má vontade... tudo isso me incomodava de um jeito todo meu. Cheguei a preferir um céu cinza a toda aquela alegria isabeliana azul cintilante. Será que na outra empresa o céu da Sueli continuava nebuloso?
Um outro dia, porém, indo almoçar na minha caminhada diária, encontro a Sueli na rua indo para o trabalho. Ela voltou, ela voltou! Mas, calma. A Sueli estava mudada, ensolarada, radiante. Sem aquele uniforme branco e azul, sem a touca e todos os produtos de limpeza, com os cabelos longos soltos e vestindo roupa colorida, a Sueli mudou de céu. Ficou atá mais nova, sorriso menos tímido e oi sonoro.
Foi aí que entendi que o céu da Sueli é todo dela, multicolorido e sujeito a variações. Meu olhar é que vivia nublado.