15 julho 2007

Absurdo

Eu deveria ser fútil e um tantinho burra, daquelas que falam besteiras sem perceber, para quem referência é tão-somente uma carta elogiosa assinada por um ex-patrão qualquer, em cima do qual já deram — ou para quem já deram, tanto faz.

E deveria ser menos dedicada às pessoas. Falta-me um tiquinho de egoísmo. E roupas mais ousadas, decotes mais profundos para evidenciar seios siliconados que eu não pretendo ter. Eu deveria me enquadrar, sabe? Aquela coisa de padrão: uma etiqueta imaginária de ÓBVIO bem legível pregada na testa. Trabalho nenhum para entender.

Não poderia mais sacar piadas de primeira ou ser espirituosa, porque contexto teria de ser apenas sinônimo de legenda curta, do contrário eu não conseguiria ler, pera lá! Deveria me contentar com qualquer tá e monossílabos do gênero em vez de buscar explicações, deixando todas as incógnitas restritas aos livros de Matemática. Nada de pensamentos complexos.

Ser mais consumista e pensar só em moda, sapatos e batons. Ser menos bem-sucedida, talvez com um pé no limite do cheque especial, carregando dívidas homéricas provenientes de juros acumulados em trezentos cartões de crédito abarrotados de gastos dispensáveis que, elementar, algum idiota se achando indispensável pagaria para mim com sorriso nos lábios e sussurros de "gostosa".

Eu não deveria ter cursado (e aproveitado) uma boa faculdade nem aprendido outra língua. Errei feio. E deveria parar de usar um vocabulário erudito conjugando verbos certo. Anômalos deveriam ser meus neurônios a ponto de assassinar o português com doses generosas de ignorância pura no agora sim e no daqui a pouco também.

O ideal seria me despir sem pudores e com mais freqüência para qualquer homem que balbuciasse clichês camuflados em sorrisos interesseiros. Junto com a roupa, eu também teria de deixar meu senso crítico. Essa coisa de questionar, analisar, ter opinião própria... chatices assim não estão com nada. Isso, falar mais gírias permeadas de uns palavrões também me faria bem.

É, eu deveria mesmo passar mais tempo em salóes de beleza, em cima de um salto quinze de ponta bem fina, que me faria andar feito uma galinha limitada que não pode afastar as patas mais que dez centímetros para não perder o equilíbrio. Mascar chiclete de boca aberta e usar bolsa minúscula de marca carérrima permeada de cristais Swarovski dentro da qual só coubesse um rímel, tudo de que preciso.

Deveria abolir de meus comportamentos conhecimentos políticos e noções de cidadania, para quem ecologia seria apenas a ciência que estuda o eco, o que, sem dúvida, provocaria umas risadinhas masculinas certamente acompanhadas de desejo.

Seria proibido saber que país fica onde, quantos continentes tem o mundo, o que é Meridiano de Greenwich e qualquer verso do Hino Nacional. Cantá-lo inteiro, então, nem pensar! Muito menos saber o significado de "plácidas", "retumbante", "penhor" e afins... caso para internação. De preferência em um spa.

E essa coisa de se virar nas emergências também deveria acabar. A solução seria ter na agenda do celular cor-de-rosa com adesivo de menina superpoderosa uma lista de telefones masculinos com quem já tivesse transado, para quem ligar com voz de desamparada e entonação infantil pedindo uma ajuda inocente no meio da rua do outro lado da cidade.

Eu teria de aprender a fazer cara de interrogação quando fosse a algum lugar cultural, perguntando mais durante as sessões de cinema o que está acontecendo no filme. Interpretá-los está definitivamente fora de cogitação.

Seria necessário doar meus livros para, no lugar, colocar vários CDs de axé e pagode, revistas femininas com conselhos picantes sobre posições sexuais ou testes de múltipla escolha cientificamente comprovados para avaliar minha auto-estima, se sei cuidar dos meus namorados, se uso o perfume certo ou se sou capaz de segurar um cara na cama.

Eu deveria ter nascido de-vez-em-quando no lugar de ter nascido constância, mulher para ficar em vez de mulher para amar. Tinha de saber tratar os homens como objetos em vez de cogitar considerar o que sentem. Nunca pedir por favor por educação, mas só quando fosse preciso fazer manha. Ser uma daquelas namoradas bem grudentinhas, que ligam quinhentas e cinqüenta vezes por dia sem assunto, só para trocar respiração, e que andam rebolando e sabem empinar a bunda como ninguém.

Teria de parar de ler manual de apetrechos eletrônicos para, com a mesma voz desamparada e infantil das situações de emergência, pedir para o namorado da vez — que, diga-se de passagem, eu teria de aprender a chifrar — se sentisse poderoso e inteligente ao decifrar os três botões de power, menu e reset.

Deveria falar hormônios e comer com os olhos, jogando meus longos cabelos para lá e para cá feito comercial de xampu em vez de tentar evidenciar sentimentos sinceros e questionar minha solidão todo santo dia. Jogar mais e transparecer menos, exceto nas blusas, porque o vulgar nunca foi tão valorizado, nós sabemos.

Quem sabe assim eu não constatasse que beiro mesmo o absurdo.





24 comentários:

Ricardo disse...

Que bom humor, hein? Restringirei meu comentário à essa pequena sentença levemente mordaz...

Bruno Peres disse...

Kandy, se superando cada dia mais...
Ainda luto em ver o que a sociedade aceita como absurdo e estabelece como normal, como se isso existisse.
Também estou a beira do absurdo, mas, assim como vc, prefiro que me jogem nesse penhasco a me aproximar do normal !!!

Parabéns pelo texto !!!

Anônimo disse...

Olha prima, um pouco disso tudo aí, por incrível que pareça nos faz bem...
Nos torna mais humanos, normais e portanto, acessíveis. Os homens adoram as deusas, mas se apaixonam as simples mortais...
A perfeição nasceu para ser contemplada a distância enquanto a mediocridade nasceu para ser compartilhada no dia a dia.

Anônimo disse...

Kandy!!
Acho que vc está se sentindo meio fora dos padrões atuais....

Tenho um amigo , "intelectual",
vc vai ver pelo que ele diz ...rssss....:

"Mulher q não bebe, não fala palavrao e não faz sexo, ninguem merece..."

Entaum, eu sei que vc não quer fazer nada disso , mas não custa fazer somente por diversão...A sua personalidade vai continuar a mesma...

Vamos beber uma cervejinha um dia desses??Ai a gente fala mais sobre isso...No máximo vc vai rir , e isso com certeza já te faria muito bem!!!

O importante é SER FELIZ !!!

Bjs

Rafael Porto disse...

Que orgulho ler um texto bem feito assim. Minha namorada, com certeza, vai gostar dele!

=)

efagaraz disse...

Maravilha de texto! babei, babei...

disse...

Meu namorado, Rafael Porto, acertou em cheio.

Palmas a vc. Mudas. Porque, para mim, esse texto é tão solene - e tão eu - q só posso oferecer meu olhar admirado.

Totalmente identificável. Parabéns.

Anônimo disse...

Kandy, adorei o texto.
Sinto-me meio entre o normal e o absurdo.

E ai qdo vamos combinar alguma coisa heim? Um filme la na sua irma que de tanta falar voltamos com os DVDs pra tras. Beijos

Rafael Porto disse...

Hehe
Não agradeça pelos elogios. Vc é digna de cada palavra.

Eu já li outros posts do seu blog, principalmente os de sua passagem pelo ES. Por sinal, linda a composição da foto na praia de Guarapari!

Pode voltar ao blog quando quiser, até porque eu não hesitarei em fazê-lo!

=)

Edilene Santos disse...

AAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!

Vamos, Kandy, eu grito com você!

AAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!

Acho que é isso. Acho, não: É ISSO!

Meu, você é a mina! rsrs Com o perdão da gíria! rsrs

Tá, mas vamos pensar que tem mais alguns "absurdos" soltos por aí, ou a gente vai ficar absurdamente malucaaaaaaaaaaa!!!

bjks

Anônimo disse...

Ei, Kandy.
Gostei muito do jogo de gato-e-rato que você faz no texto "Volúpia". A oposição "língua ou quadril" é perfeita: poesia em estado puro!
Beijos,

Sérgio Klein

Anônimo disse...

"... eu devia ser burro, assim eu não sofria tanto!"

Vinícius Rennó disse...

Estou simplesmente absorto pelo que tão bem escreveste. Tnes uma bela-mente. ^^

Anônimo disse...

Kandy,
tirando a parte do cel cor-de-rosa, (oras essa, eu tenho um, snif! Mas a agenda, com certeza, nada se parece com a que vc descreve), já me perguntei um milhão de vezes por que eu assino Galileu e não Cláudia...
Bem, amiga, eu não acho q vc deveria se revoltar por ser autêntica! Não faça isso! Ser uma "inha" dessas que vc descreve deve ser algo chato e infeliz, porque a vida delas é vazia! Fora que elas são escravas da banalidade! Pense nisso!
Tô com saudades!
Feliz Dia do Amigo!
Jana

Anônimo disse...

"ABSURDO"... uma sociedade onde o Ter é mais importante, e sempre confundido com o Ser.
Ótimo seus textos.

Rafael Porto disse...

E o seu post e o meu estão diretamente relacionados!
^^

As montagens no Photoshop são exatamente pra distanciar a mulher da realidade.

A maioria prefere desistir da inteligência em busca da beleza impossível!

Graças a Deus que algumas ainda utilizam o cérebro!
=)

Anônimo disse...

Olá, adorei me debruçar nessa janela... A vista é extraordinária!
Parabéns, que encontrar textos de qualidade na net...
bjos

Anônimo disse...

Kandy, belo texto... Como sempre, inquieta, irreverente, passando mais rápido que a caravana que passa... e o cães nem ladram por que, como diria Caetano em "Reconvexo", "nem chegam a te ver..."... Aliás, se entendi como vc se sente... e acho que às vezes me sinto também, sugiro que escute essa música "Reconvexo" na interpretação insuperável a Bethânia. Grande abraço!

Anônimo disse...

Cara Kandy:
Deveria mesmo. A senhorita expôs excelentes argumentos (muito bem colocados, beirando a poesia. Aliás, parabéns).
Porém, data venia, gostaria de fazer alguns comentários.
De forma primorosa e singela, intencionalmente ou não, a senhorita descreveu o perfil da profissional cujo ofício é um dos mais antigos da humanidade.
Uma profissão indispensável, mesmo em casos de guerras, superaquecimento terrestre ou caos aéreo, ao contrário do que acontece com tantas outras, como, por exemplo, decorador de interiores, mendigo ou advogado, entre outras.
Há quem diga que esta seria até a mais bonita das profissões: pois consiste basicamente em “vender amor”.
Mas nem tudo são flores. Penso um dos piores inconvenientes deste ramo (talvez o pior), é a fama intrínseca que recebem as proles destas profissionais.
Uma verdadeira injustiça, que julgo ser fruto de alguma coincidência infeliz, mesmo desconhecendo a origem etimológica da expressão. Expressão esta, aliás, que continua sendo amplamente utilizada pela população ao descrever certo barbudo e outras criaturas da longínqua Brasília. Mas este é outro problema.
Cabe também ressaltar aqui, a competência, o esmero, a extrema perícia, e grande conhecimento técnico de certas profissionais deste setor que tão bem desempenham o ofício, a ponto de trabalhar não almejando apenas o dinheiro ou o sucesso na carreira, mas principalmente movidas por um amor sincero à profissão (vide tantas estórias dum estabelecimento chamado Gato Preto, que é praticamente uma lenda curitibana).
Infelizmente esta profissão ainda não é regulamentada, sendo, portanto, uma espécie de “transação informal de alto valor agregado”, nos moldes de outras atividades tão imprescindíveis e garbosas quanto, como, por exemplo, o tráfico de drogas, o contrabando de armas, o jogo do bicho, ou o comércio de sentenças judiciais.
Sobre a senhorita optar por quaisquer mudanças de vida, ou não, a minha opinião sincera é de que continue como é.
Pelo pouco que li no seu sítio a senhorita deve, muito provavelmente, ser uma pessoa extremamente interessante (embora um pouco revoltada). Ao menos do ponto de vista intelectual, ou o de “ver o mundo de fora da casinha”. Gosto disso.
Cabe lembrar também, que o ramo é muito concorrido, e literalmente ABUNDAM excelentes profissionais.
Possivelmente seu talento nato não seja para esta atividade, e sim para a literatura. A fim de ilustrar melhor meu ponto de vista, termino meu singelo comentário parafraseando Stanislaw, da ilustre família dos Ponte Preta:
“Perereca do brejo não coaxa em pedreira...”
Parabéns pelo texto.
Abraço,
Castor
PS- Também tenho um blog. Se quiser ver: http://castor-ensimesmando.blogspot.com

Sweet! disse...

Adorei esse texto, os outros textos, o blog e tudo mais. Ademais, usamos o mesmo template. Ah, adorei as idéias de A a X tb, parabéns.

Anônimo disse...

Abençoados são aqueles que desconhecem as mazelas do mundo e conseguem se preocupar única e exclusivamente com seu próprio umbigo, pois o parceiro masculino pra este tipo de garota tb. abunda. Pobre daqueles que como nós possuem almas rebeldes e buscam um sentido pra este mundo.
Excelente texto, parabéns.

Anônimo disse...

Não sei se ando muito sentimental, ou se esses remédios q tanto amo pq me fazem amar q potencializaram a reação q tive ao ler essa postagem sua. Mas enfim, sem mais delongas, navegando me bati c algo q externava o q eu sentia e ñ sabia verbalizar tão bem, resultado: dei um ctrl + c e ctrl + v, e num ímpeto juvenil, ursupei seu escrito p colocá-lo no about me do orkut. Sei q isso deve ser um tanto decepcionante p a grande mente q o escreveu, mas humildemente venho nessa postagem, pedir seu consenso p o uso de seu escrito, e aproveito p destacar q suprimi alguns trechos, ñ menos importantes, mas p q coubesse no espaço do tal site (orkut) banalizado.

Aguardo sua resposta.

Kandy disse...

Olá, Isabela, seja bem-vinda. Fico feliz que tenha se identificado com o texto e que ele expresse o que você deseja passar. Pode utilizá-lo no seu perfil no Orkut, sumprimindo o que achar que deve, não tem problema. Só peço a gentileza de citar a fonte (o link do texto). Não é capricho meu, mas é que outras pessoas podem copiar o seu perfil e, se ele não informar a fonte, há mais probabilidade de a autoria se perder por aí. Fique à vontade para visitar o Idéias sempre que quiser e obrigada pelo seu comentário.

GNews disse...

Olá, Kandy!
Apesar de ter lido vários textos seus, este é mais que especial. É inevitável concordar com grande parte de suas idéias, que infelizmente não são absurdas. Cada dia que passa está mais difícil viver ou conviver com pessoas falsas, que fingem viver.Porque na verdade estão apenas repetindo o mesmo ciclo de tantas outras pessoas.Obrigada!

Beijos!
Gabi