
Uma das minhas cenas favoritas do cinema está em um de meus filmes preferidos: O fabuloso destino de Amelie Poulain.
A personagem principal, vivida pela adorável Audrey Tautou, é diferente de tudo. Enxerga as pessoas mais ou menos como a Blimunda, de O memorial do convento: extrai-lhes a alma, inserindo-a num mundo de possibilidades. Assim, acaba brincando com a vida das personagens do filme, mostrando-lhes outros pontos de vista.
Nesse intuito, de fazer as pessoas verem o que não podem ou não conseguem, Amelie pega um senhor cego pelo braço e percorre uma rua inteira, descrevendo a ele tudo o que a deficiência o impede de ver, desde os melões dispostos em uma banca, até o estado de espírito das pessoas que passam. Mesmo atordoado com tanta informação, a alma dele sorri de um jeito agradecido, porque tudo o que ele podia ver na rua em que sempre passava eram apenas cheiros, vozes e sensações.
Então, quando me dá saudade de ser humano, desses capazes de enxergar além da aparência, eu revejo essa cena e sempre me pergunto o quanto aquele senhor cego é mais feliz do que todos aqueles que Amelie descreve a ele.
"Como um cego pode ser feliz?", você deve estar se perguntando... A cegueira é, por um lado, uma limitação física, decerto. Mas, por outro, é um portal que permite ir além do que todo mundo vê. Só os cegos alcançam o que os olhos não vêem, só eles entendem a essência das coisas sem se deslumbrar pela imagem, pela cor, só eles valorizam os cheiros, as vozes e as sensações de uma maneira delicada e profunda, numa dimensão que, apesar de escura, traz muito esclarecimento.
Ver o que as pessoas carregam dentro de si, enxergar o sentimento delas sem precisar interpretar-lhes as feições, aguça os sentidos de uma forma invejável. É ver sem precisar de olhos. É debruçar-se no outro pelo que ele é, não pelo que veste, pelo penteado que tem, a cor do olho, o sorriso perfeito, a cor das bochechas, o furinho no queixo ou os lábios rosados.
E, ironicamente, tanta gente com olhos sãos sofre de cegueira, tantos míopes que, mesmo de óculos, não enxergam um palmo à frente do nariz, tantos olhos de todas as cores perdem tempo olhando para o nada em vez de fecharem-se e olharem para dentro de si, onde estão as respostas que procuram, tanto óbvio salta aos olhos e ninguém vê... Uma ilusão de óptica, sem dúvida.
Então, por tudo isso, sempre que vejo a minha cena preferida do filme, não penso na bondade da Amelie em fazer o que, para ela, era provocar uma mudança de perspectiva, porque, se analisarmos bem, o senhor cego do filme não precisava que Amelie lhe descrevesse o que ele não enxergava. Ela quis ser gentil, numa atitude proveniente da visão ingênua de que ele estava perdendo o melhor de toda a rua movimentada num dia de sol. Mas ele foi mais gentil ainda em não lhe recusar a gentileza, porque decerto enxergava muito mais do que ela. E, ao contrário de quem vê, ele não quis ser rude.
Aqui em São Paulo, a Fundação Dorina Nowill aceita voluntários que tenham quatro horas contínuas semanais disponíveis. Uma das funções mais legais é ser um ledor: levar literatura para quem só consegue ler em braile. Você pode ajudar gravando livros falados ou executando outras tarefas, colocando à disposição dos deficientes visuais um talento ou habilidade que você tenha. Fazer qualquer tipo de serviço voluntário é deixar de ser cego.