11 agosto 2007

Pelos seus belos olhos



O casal está jantando numa noite normal. Pouco tempo de namoro, mas um silêncio que compete com a eternidade. Olhavam-se de vez em quando, mas os olhares não combinavam. As intenções eram diferentes, eles não percebiam.

De repente, palavras dela:

Você não vai falar nada? — artifício feminino para demonstrar iniciativa.
Falar o quê? — instinto masculino defensivo.
Ah, qualquer coisa. Você tá muito calado, eu tô achando esquisito demais...
É que eu tô pensando...
Em quê? — curiosidade feminina inoportuna.
Então, justamente, eu não sei... — ingenuidade masculina que o universo feminino é incapaz de ler.
Como assim? — curiosidade feminina insistentemente inoportuna.
É, eu não sei... Eu não sei em que pensar, o que querer, o que fazer... — ingenuidade masculina não-cognitiva para o cérebro feminino.
Em relação a que exatamente? — inconveniência verbalizada.
Bem... er... a tudo.

Ela pára de mastigar e olha para ele de um jeito incrédulo. Engole o pedaço de pizza para balbuciar:

Tudo? Inclusive nós? — necessidade feminina de confirmação de uma mensagem previamente compreendida.
É por isso que eu estava quieto. Você é que puxou o assunto... — justificativa masculina objetivamente insuficiente.
Lógico! Silêncio não combina com pizza nem com namoro! — indignação invadindo a razão.
Eu não sei o que eu quero... Se quero continuar no emprego que eu tenho ou tentar algo diferente, se quero viajar pelo mundo ou fincar raiz em algum lugar, se quero pintar meu quarto de azul ou deixar como está, se quero continuar namorando ou ficar sozinho, eu não sei, eu não sei! Isso está me consumindo! — sinceridade masculina com grandes chances de ser mal interpretada pela percepção feminina.

Ela desiste de comer. Aquilo era de tirar o apetite.

Sinceramente, eu nunca vi alguém não saber o que quer! Todo mundo sempre quer algo. Pode ser o mais aparentemente impossível, sei lá, escalar o Everest, visitar a Lua, transar com a Madonna, acordar com uma moto nova na garagem, enfim, qualquer coisa, porque o mundo está consumista demais... É natural querer tudo! Nunca vi ninguém querer nada! — razão totalmente tomada pela indignação.
Tá vendo agora: eu. Não é por mal, sabe, eu tô sendo bem franco com você... Eu acho que essa coisa de não saber o que eu quero é da minha natureza... — justificativa masculina objetiva e irritantemente insuficiente.
Por quê? Você nasceu assim, por acaso? — ironia feminina cruel que quer dizer "tente outra explicação, por favor".
Não, não... Eu quis dizer que eu fui ficando assim ao longo do tempo... Eu acho... — justificativa masculina indecifrável para o universo feminino.
Ai, graças aos céus ainda tem salvação! Olha aí! Você disse "eu quis dizer". Tá vendo? No fundo, no fundo você quer alguma coisa... — sutileza feminina indecifrável para o universo masculino.
Hã? Eu não sei o que você tá tentando dizer com isso, mas eu tô aqui com um problema aparentemente sem solução... — tentativa masculina de trazer o universo feminino para a realidade.
Vamos tentar racionalizar essa situação. Você disse que não sabe se quer continuar namorando ou se quer ficar sozinho. Isso a gente precisa decidir, porque, não querendo pressionar, sabe, mas me diz respeito... — mania feminina de pôr os pingos nos is quando tudo é hiato.
Claro, é verdade — mania masculina de ser sucinto ao demonstrar sentimento.

Ele descansa o garfo no prato e olha para ela. Ela respira fundo e diz:

Você gosta de mim? — resquício da Inquisição.
Gosto. Você é legal, a gente se dá bem, eu admiro seu jeito, te acho bonita, rola química e...
Pode ir parando por aí... — resquício da ditadura.
Ué, por quê? — lentidão masculina em acompanhar a complexidade do universo feminino.
Porque, quando a gente quer alguma coisa, o olhar brilha. Eu vi agorinha nos seus olhos. Você falando assim de mim e seu olhar opaco de dar dó! — ingenuidade feminina em tentar explicar o que não é cognitivo para o cérebro masculino.
É impressão sua, não é nada pessoal, é um momento de indecisão meu, entende, não tem nada a ver com olhar... — justificativa masculina óbvia para o universo masculino mas ainda insuficiente para o feminino.
Ah, tem sim, senhor! Vai por mim: olhar opaco acaba com tudo, você nem precisa abrir a boca. Eu notei, o pior é que eu notei! Você não está mais a fim de mim, está? — leve indício de democracia pelo benefício da dúvida.
Eu tô! Quer dizer, não sei se eu tô. Não, não, eu tô sim! — sinceridade masculina entendida como cinismo pelo universo feminino.
Olha aí! Aconteceu de novo! Quando você disse "eu tô", seu olhar não brilhou! Nem uma faisquinha, nada! — típica atitude feminina de interpretar as profundezas que o universo masculino não alcança.
Pára de drama! Todo esse auê porque eu não sei o que eu quero?! Daqui a pouco isso passa... — tentativa masculina de trazer o universo feminino novamente para a superfície.
Não! Os olhares conversam, sabia? E mulher saca tudo pelo olhar. Ela só não entende se não quiser. — tentativa feminina de explicar as profundezas ao universo masculino.

Ela se levanta, pega a bolsa, dá um beijo no rosto dele com uma compreensão de fim-de-mundo, um gosto assim, de pizza com nunca mais, e diz, de um jeito característico feminino de deixar tudo enervantemente subentendido:

Não saber o que quer é o de menos, qualquer mulher compreende. O problema é não olhar brilhante... — jeito feminino teimoso de dizer "venha atrás de mim assim que eu sair e me olhe com vontade".

Ela vai embora. Ele fica olhando para o prato — jeito masculino de tentar entender o que não faz sentido e deixar as oportunidades passarem.

O casal estava jantando numa noite normal. Pouco tempo de namoro, mas um silêncio que competia com a eternidade. Os olhares não combinaram. As intenções foram diferentes. E ninguém percebeu.



A imagem que ilustra este post é um papel de parede que você encontra aqui.


14 comentários:

Anônimo disse...

Irritante.
Estou sinto isso agora apos ler o texto, muito bem escrito, dona kandy.

Beijo
Pat

Paulo Araujo disse...

Mudam-se os casais, mudam-se as mesas, mudam-se as pizzas; porém, o roteiro das discussões homem x mulher parece nunca se alterar. Dá sempre uma sensação de que já vimos esse filme ou já atuamos nele.

Um dia ainda nos entenderemos plenamente, com palavras, gestos e brilhos nos olhares

Paulo Araujo
Marataízes, Espírito Santo

Anônimo disse...

Estás afiada, hein? Muito bom.

Anônimo disse...

Nossa!
Suspiro...
Parece que já fui a protagonista do texto. Essa de fazer elogios e depois dizer não ser nada pessoal o momento de indecisão é de amargar. (isso qdo não vem acompanhado do famoso: o problema é você, querida, sou eu!)...
Me poupe!:(
bjs

Anônimo disse...

Creio que todo homem já se sentiu indeciso com relação a um relacionamento; toda mulher já se sentiu ofendida por uma indecisão masculina; e pelo menos uma pizza já rendeu discussões dentro do namoro.

O que não acreditava é que alguém poderia descrever tão bem situações como esta, notar e compreender sentimentos tão íntimos - de ambos os sexos - e expo-los de uma maneira tão peculiar.

Li neste post do Marmota que você "escolhe cada palavra com o objetivo de dar não apenas seu devido valor semântico, mas artístico".

Este texto faz juz ao elogio que recebeu. Repetir o primeiro parágrafo no fim do texto, ironizar o incompreensível e tornar tão palpável o que nós, homens, nunca entendemos, definitivamente é um trabalho artístico.

Meus parabéns mais uma vez.

Anônimo disse...

Eu não falei que vc precisava voltar? Um primor.
Mas, vem cá, que ódio desse homem!
Beijos.

Anônimo disse...

Sensacional, Kandy! Gostei. Captou os sinais contrários que se instalam nos relacionamentos em certos momentos.

Sabe que seu texto me lembrou o Jantar, filme do Ettore Scola? O filme trata de diversas situações, não só casais, é bem diferente. Mas esse mal-estar que pode surgir, por exemplo, num resturante, com duas pessoas se desafiando nas entrelinhas ( ou às claras, depois de um tempo) me fez lembrar do filme.

Camafunga disse...

Ainda bem que alguns independente do gênero consegue conciliar estes olhares. Gostei muito do teu texto. Bacana.

rafael fermiano disse...

Se juntassemos a sua dona-tô-vendo-coisa-onde-não-tem, com o meu "sir mestre dos paradoxos" teriamos um casal mais prático, do tipo "oi tudo bem...foi bom pra vc?"

E teria sido bom!!!

Anônimo disse...

Se não fosse algo tão comum (inclusive com papéis invertidos), eu diria que é um belo texto de ficção. :P

Aliás, já te dei parabéns hoje, né?

Anônimo disse...

Achei curioso o título...Será que os belos olhos são azuis???

Junior Oliveira disse...

muito bem Kandy !!!! otimo texto !! agora me diga uma coisa, do que mesmo vc estava falando? rsrsr mas mesmo assim meu parabens vc foi muito inteligente na colocação das palavras e formação de raciocínio,gostei muito do seu texto meus parabens com olhar brilhante. rsrs

Anônimo disse...

Olá Kandy! Depois de algum período de loucura, consegui voltar a ler seus textos, que continuam maravilhosos. Quando a gente se conheceu na casa do Ricardo, na festa Junina, comentei contigo que seus textos refletem muitas situações que vivo, e este em particular também ocorreu ou melhor está ocorrendo em minha vida. A única diferença é que eu sou o "Ele" do seu texto...Beijos

Canto da Boca disse...

Reflexivo e divertido o seu texto, e mais uma vez me valho duma m�sica do Luiz Tati, "Estopim"...

Nada � t�o f�cil no in�cio
Nem no percurso nem no fim
Nada � t�o natural
Nada � t�o trivial
Nem uma flor
Nem todo jardim

Amor que � simples se complica
E todo amor vai ficando assim
Um faz algum sinal
O outro j� interpreta mal
E o que era banal
Vira um estopim

Sim
Detonou
Foi um caos
Nosso amor
Ia bem
N�o t�o bem
Mas enfim
Bem normal
Complicou quando eu comentei
Que era t�o triste o seu olhar
"Meu olhar, como assim?
A tristeza vem de voc� pra mim
A tristeza de um olhar
Vem do outro olhar
Vem de tanto olhar"
Como assim?
"Pelo olhar
Pode haver um motim"
N�o entendi
Mas senti
Que era o fim.

;)