24 novembro 2007

Correspondências


Corresponder, no mundo de hoje, é, sem dúvida, uma arte, pois, segundo algumas acepções do Houaiss, significa "estabelecer ligação com (alguém) por meio de carta", "apresentar relação mútua", "responder de maneira semelhante", "retribuir".

É uma arte, primeiro porque poucos hoje em dia estão aptos a escrever cartas como se deve, com bom português e redação cuja leitura dá vontade de devorar. Segundo, porque essa era pós-industrial se mostra cada vez mais despersonalizada e individualista, e individualismo não combina com retribuição.

Assim, nada corresponde às expectativas. A mesa que arranjam para você no restaurante nunca é a que você escolheria, o amor da sua vida geralmente ou não sabe que é o amor da sua vida ou, o que é pior, mesmo sabendo, não corresponde. A empresa para a qual você trabalha não valoriza você, por vezes te explora e, novamente o que é pior, finge que você não existe e que não precisa de você. O pãozinho da padaria não vem torradinho o suficiente ou vem branco demais. A marca que você procura no supermercado não tem. Param de fabricar sua bolacha predileta, o batom que você encomendou por catálogo vem numa cor diferente, a conta do celular aumenta de um jeito que te pega de surpresa, as fotos que mandou revelar não vêm no papel fosco que você pediu, a empregada esquece de limpar o beiral da janela, essas coisas. Corresponder é mesmo difícil.

Houve uma época em que eu me correspondia muito com as pessoas, na primeira acepção. Escrevia cartas gigantescas com essa minha linguagem peculiar, sem rascunho, de modo mais personalizado que eu. Como diz a reportagem da revista, escrever cartas aos outros, para mim, "tem poderes especiais", porque uma carta "pode ser mais íntima e tocante que uma conversa. Pode ser mais pessoal que uma ligação. É um presente".

Embora, quando presenteamos alguém, não exijamos retribuição, no caso de qualquer tipo de correspondência ela é necessária, porque corresponder não é verbo unilateral. Então, fui parando de escrever cartas mediante a escassez das respostas. A concorrência com mensagens eletrônicas e linguagem esburacada foi desleal. Assim, hoje, só escrevo uma carta em ocasiões muito especiais. E, se puder, não uso o correio, porque ele estraga meu lacre de cera, outro indício de que nasci na época errada.

Assim começou, não só para mim, mas para todo mundo (e todo o mundo)*, a era da descorrespondência, nome que dei ao que chamam de era pós-industrial, que, como disse aí em cima, é tão despersonalizada que nem nome próprio tem. E, pela terceira vez, o pior: começou a contaminação mundial com a idéia de que ninguém precisa de ninguém, de que as pessoas têm de parar de ser tão exigentes e querer reciprocidade, aprendendo de uma vez por todas a lidar com as frustrações — isso faz parte da vida, meu filho. Cá para nós, só faz porque as pessoas se acostumam.

Esse sentimento global de descorrespondência assola de um jeito avassalador. Gera carência, tristeza, um punhado de infelicidade e muita coisa sem resposta (perdoe-me o jogo de palavras). Então, quando um iluminado qualquer decide mandar uma carta bonita e bem escrita, sincera e especial, o destinatário, em vez de ficar feliz, se assusta. Quando um outro iluminado resolve dizer o que vai no coração, sincera e especialmente, o interlocutor, em vez de sentir-se lisonjeado, fica com medo. Quando um terceiro iluminado resolve enfrentar tudo de peito aberto, com comportamento sincero e especial, o mundo, em vez de acolhê-lo, o repele. Quando o quarto iluminado decide dedicar-se de corpo e alma a um trabalho bem feito, a empresa, em vez de recompensá-lo, o explora. E tudo fica ao contrário de um jeito confuso.

De minha parte, ainda tenho papéis de carta e caligrafia legível porque acredito na correspondência em todas as acepções. Entretanto, qualquer que seja ela, se não for uma relação mútua, se não trouxer respostas de maneira semelhante, se não indicar retribuição, um dia acaba. Como tudo. Ter consciência disso é a resposta que falta.



* todo mundo = todas as pessoas (aqui, "todo" é pronome indefinido); todo o mundo = o mundo inteiro (aqui, "todo" é adjetivo). Como adjetivo, é sempre seguido de artigo definido; por isso tem semântica diferente da outra classe gramatical, o pronome. Usar um pelo outro, além de demonstrar falta de domínio gramatical, leva o leitor a ler gato por lebre. Como é erro muito comum por aí, achei por bem corresponder às expectativas e esclarecer a diferença.


15 comentários:

Art in Shapes disse...

Kandy, quanta memória me veio lendo seu texto! Lembrei da coleção de papel de carta que tinha quando criança, das cartinhas que escrevia para meus pais na escola (nos dias dos pais e das mães), do correio elegante nas festas juninas da adolescência, dos bilhetes deixados embaixo de travesseiros dos amores antigos. Que saudades!

Beijos e obrigada pelo momento saudosista!

Dani
1daystand.blogspot.com

Ricardo disse...

Acho que vou mandar meu comentário pelo correio, carta social com selo carimbado pela ECT...

Anônimo disse...

Kandy, também gostava de escrever cartas e fui deixando por falta de respostas... apesar disso tive algumas experiências interessantes, e lembro com carinho das cartas em que as revelações eram muito mais próximas. Vez ou outra uso o blog como uma espécie de cartas "sem destinatário", e os comentários muitas vezes me surpreendem...

Uma pena que já não tenho mais a felicidade de abrir a caixa do correio e descobrir não contas ou propaganda, mas uma demonstração de carinho.

Um abraço

ps.: lembrei-me de uma peça que vi há dois anos chamada "A última carta de amor do séc XX".

Vinícius Rennó disse...

Eu acredito que as frustrações fazem parte da vida; porém nem por isso eu me acostumo, como a maioria das pessoas. Incomoda-me essa acomodação. Concordo com tudo o que disseste. Mas quando é que irás corresponder ao e-mail que te enviei?

PS.: Gostei muito da idéia de fornecer uma dica gramatical; tanto que irei adotá-la nos meus próximos posts. ^^

Cris disse...

Pois é, eu amava escrever cartas, principalmente quando morei com minha avó em Minas, escrevia longas cartas para minha mãe, fazia desenhos, era amiga do carteiro e ficava na maior ansiedade esperando a resposta. Hoje a gente tem uma pressa danada, fla rápido ao telefone, rápido no msn, tudo é muito rápido, rápido, o tempo corre demais e a gente vai deixando de lado amar e ser amado. É uma pena, daqui uns dias é natal adorava mandar cartões, hj nem mando mais nem os virtuais. Enfim,

Lele disse...

Oi Kandy!!
Tem convite pra vc no blog:
http://hsordili.blogspot.com/2007/11/meme-da-ilha-deserta.html

bjs

Cadinho RoCo disse...

Pertinente demais esta publicação que alerta para o quanto é importante corresponder. O ser humano depende precisa e por isso não sobrevive sem a tal da correspondência. Isto é lógico e não há como escapar de tal evidência.
http://cadinhoroco.sabrisweb.com

Anônimo disse...

Quando menina, eu adorava escrever cartas, mas tudo era tão diferente. Gostei dessa definição de carta: "Pode ser mais pessoal que uma ligação. É um presente." Hoje não as escrevo. Impressionante como a facilidade da comunincação tornou as pessoas com menos vontade de falar.
Show, Kandy, como sempre.
Beijo

Cléu Sampaio disse...

Há 3 anos conheci minha irmã (não acredito muito em irmão pela metade, então ela é irmã inteira) que mora no interior da Bahia. Lá a internet ainda é pouca. E ela me manda cartas, com fotos do meu sobrinho e dedicatória atrás. Eu demoro, mas respondo. Exercício de parar. Nas relações, tenho aprendido a cobrar menos desde que percebi que o tanto que posso corresponder também é limitado. Lindo texto de novo. Beijo.

Anônimo disse...

Kandy,
eu tenho cartas que você escreveu para mim, da época em que acabamos o curso na GV! Guardo também seus cartões de Natal e sinto falta dessa era "manuscrita". Vou um pouco mais além até: você com certeza se lembra dos nossos projetos de arquitetura, né? Gastávamos horas na prancheta, traçando cada parede, cada janela, com régua paralela e esquadros. Dávamos nomes aos elementos do projeto usando para tanto o normógrafo, e isso sempre seguindo as regras ditadas pelos nossos professores, e, por mais padronizado que fossem, cada projeto tinha "vida". Não precisava do nome no vegetal para saber se uma planta era minha, sua ou da Fê: a gente sabia... E a era da informática, embora tivesse facilitado nossas vidas, roubou tantos encantos como esses que citamos...
Enfim, concordo com você em gênero, número e grau. Sei que às vezes nos correspondemos via e-mail, mas não é a mesma coisa, né? Também sinto saudades - e muita- da época em que a minha caixa de correio abrigava muito mais coisas que faturas, contas, anúncios...
Jana

Patrícia Carvoeiro disse...

Kandy, que texto lindo! Eu mantive o hábito de me corresponder por cartas durante muitos anos, mas realmente, a escassez das respostas acabaram por me desincentivar bastante. :(
E um dos gêneros literários que eu mais aprecio é justamente a que envolve troca de correspondências. Tenho livros lindíssimos assim guardados na memória. :)
Deve ser um privilégio receber uma carta sua. Além do talento com as palavras, ainda tem o talento com a caligrafia, a arte, as cores...
Ah, eu também tenho papéis de carta até hoje! E minha letra é legível até demais, parece letra de professora de primário, sabe? :P
Um beijo!

P.S.: Kandy, semanas atrás eu havia feito um comentário bem grandinho aqui no seu blog (não me lembro em qual post agora), mas há uns três ou quatro dias entrei aqui e vi que ele não tinha entrado. Na verdade o comentário não apareceu mesmo no momento em que enviei, mas achei que seu blog estava moderado... e que mais tarde apareceria... puxa, que pena, deve ter sido mesmo um problema técnico naquele momento... :/

Anônimo disse...

lembrei das cartinhas que enviava pra minha "namorada" quando tinha 9 anos de idade =/

Anônimo disse...

Kandy,
A quse 10 anos, quando comprei meu primeiro celular pensei: "agora não estou mais sozinho, sempre poderei falar com as pessoas, que seja por uma mensagem". Estava completamente enganado, celulares, e-mail, etc, etc, etc, nos estão afastando cada vez mais das pessoas, do prazer de escrever uma carta, de ser correspondido, de poder dar um abraço em um amigo, de compartilhar coisas boas e ruins com aqueles que nos importam. Mais uma vez, seu texto, maravilhos, me fez refletir sobre varias coisas. Atualmente não tenho mais celuar e me sinto cada vez mais moderno e tranquilo. Mais uma vez foi uma grande satisfação ler seu blog. Abraço, Pablo

Anônimo disse...

Esse texto é cheio de belas observações. Eu realmente me sinto sufocada com a "eletronicidade" das coisas. Outro dia, no ônibs, vi um casal conversando e, ao invés do telefone, o menino pediu o msn da menina. Fiquei assustada.

Acho cartas a melhor forma de se expressar, principalmente sobre amor e pedir desculpas.

Já tive decepções como as suas. Escrevi cartas gigantes para pedidos de perdão a pessoas que me responderam via e-mail. E mal-criadamente.

Mas tenha fé! Não deixe de escrever cartas! Eu não deixarei. ;)

beth vianna disse...

ola, meu nome é elizabeth e realmente as vezes sinto que n sou desta época.....adorei o seu texto, nos faz pensar....eu gostaria MUITO de saber onde posso adquirir o selo de cera que vc menciona.
sou de sp. meu e-mail é annodam1@bol.com.br
por sua atenção muito obrigada e continue escrevendo.....bons dias!