23 maio 2008

O tempo todo

Para ouvir enquanto lê o texto:


Silent Lucidity - Queensrÿche

Era um barulho fora, mas um silêncio dentro. O entra-e-sai do metrô e o tagarelar tipográfico das pessoas espalhando os acontecimentos do dia ensurdeceram-me quando li uma das mensagens que passavam naquelas televisõezinhas que agora há em alguns vagões: “Conserve seu planeta. Ainda dá tempo”.

Ficou um eco no meu pensamento, reverberando idéias que começaram a passar pela mente mais rápido que as estações da linha vermelha. Ainda dá tempo. É isso que pensa alguém quando corre apressado para pegar um ônibus ou aqueles que decidem ser pais depois dos 40. Isso é o que move quem resolve aprender a ler depois de anos de analfabetismo, quem vai para o aeroporto mesmo sem passagem marcada, quem desce as escadas rolantes ainda que tenha ouvido o aviso sonoro de portas fechando. Porque sempre é tempo de abri-las.

Ainda dá tempo de esquecer a falta de reciprocidade de uma paixão; a última chuva que encharcou os nervos, deixando úmido muito mais que a barra das calças; a palavra ríspida de quem nunca foi apresentado à gentileza ou redondos nãos que carimbaram tentativas. Simplesmente porque ainda dá tempo de tentar, de aprender outro idioma, de conhecer outro país ou pegar uma condução simples que leve àquela esquina à qual a gente nunca foi por falta de curiosidade ou... de tempo. Ainda dá tempo de fazer falta a alguém, de demorar-se na cozinha preparando alguma coisa com farinha, de tirar das caixas o que está guardado por motivos que já emboloraram com o passar... do tempo.

Dá tempo de mudar de casa, de idéia, de vida, de planos, de curso, de abordagem, de conversa, de padaria, de lado. Dá tempo de dizer que ama, que sente muito, que errou, que se desculpa, que vai pensar, que sente falta, que tem vergonha, que vai mudar.

E tudo isso porque, apesar do barulho do lado de fora, a sensação acontece lá dentro, bem no escuro de profundezas que nem todos sabem onde ficam, lugar em que tudo é silêncio. Uns chamam isso de esperança. Eu, de lucidez.

13 comentários:

Anônimo disse...

O dificil é nós termos essa lucidez; pararmos de ser medrosos e sair em busca do que realmente queremos.
Às vezes, quando dizemos isso, parece um pouco clichê; mas de óbvio nada tem esse texto, a cada frase que lemos, uma coisa que lembramos que precisamos fazer.

Muito bom!

Unknown disse...

Puxa, ficou excelente seu post!
ADOREI!
Temos que fazer algo, enquanto ainda dá tempo...

Anônimo disse...

Muito, muito bom, só o que eu tenho a dizer.

Ricardo disse...

Eu, que a cada dia aprendo uma coisa nova, entendo como ninguém o que você quer dizer.

O mais difícil - mas também a melhor parte - é deixar a teoria e colocar em prática aquilo que gestamos no lugar em que tudo é silêncio.

Anônimo disse...

Eu lí o texto e passou um filminho na minha cabeça (rs)

Essa tua lucidez e facilidade de concretizar o que pensa, o que sente é o que me encanta.

Você sempre melhor!

Rafael Porto disse...

Eu amo textos bem casados com músicas. Teus textos então, só ficariam melhores com Tom Jobim.
^^

Anônimo disse...

Oi Kandy!
Vim te convidar pra conhecer o novo endereço do Para Ler Sem Olhar! Quando quiser, dê uma passada! O endereço está junto com meu nome, no link.
Beijos
Diego

Anônimo disse...

A senhorita não se esqueça de avisar quando é que suas crônicas serão reunidas em livro, viu? Comprarei vários exemplares para presentear meus amigos. :)

Vinícius Rennó disse...

"Ainda dá tempo de fazer falta a alguém, de demorar-se na cozinha preparando alguma coisa com farinha, de tirar das caixas o que está guardado por motivos que já emboloraram com o passar... do tempo." - Lucidamente, na minha mente, desencaixotei minhas velhas lembranças; inúmeros papéis que guardo sem motivo aparente, fotos e cartas de pessoas importantes que estão longe do tempo e do espaço nos quais me encontro agora. É tempo de preparar um bolo e compartilhá-lo com os amigos, próximos e distantes, pois essas coisas são para serem feitas todos os dias.

Sou grato a ti por ter me lembrado disso. =*

Balu disse...

Tempo...tempo... o velho amigo/inimigo do Homem!!
Enfim...o tempo só acaba quando morrermos mas todos julgam já viver sem ele. E depois... lá se vão os bons momentos!

Cada vez penso mais nesta questão.
Bonito post!

Estou a dever-te um mail grande!!!!
Beijinhos nossos
Até breve

Anônimo disse...

Oi Kandy...quanto tempo!

Mas o velho viajante resolveu matar saudades da vista na janela e se alegrou em reencontrá-la multicor, multisensorial e acima de tudo muito lúcida!

Bjs e até+!

Unknown disse...

Kandy.
Cada vez que entro no seu blog me espanto com seus textos. Você é infinitamente boa escrevendo. Gostei muito de “O tempo todo”, estou recomendado para várias pessoas.
Um grande abraço,

Sweet! disse...

Sem palavras, tudo de bom esse texto.