27 janeiro 2008

Roda-gigante

Museu da Língua Portuguesa - SP
Exposição sobre Guimarães Rosa

A gente pensa na vida como uma sucessão de dias representados por números ou substantivos comuns que vão de domingo a segunda. Mas deveríamos pensar nela como uma sucessão de histórias anônimas que acontecem ao mesmo tempo.

Enquanto alguém está morrendo sozinho na cama de um hospital, há outro pequeno alguém que acabou de descobrir que as coisas têm nome e está aprendendo a pronunciá-los. Enquanto um homem está maquinando maneiras e mais maneiras de conquistar a mulher dos sonhos dele, há uma mulher chorando no escuro. E enquanto uma pessoa supera uma limitação imposta por uma deficiência qualquer, existe outra, sadia, que se acha imprestável.

Tem um menino que não sabe jogar bola, mas que quer ser pintor. Uma moça que dança lindamente e está juntando dinheiro para custear um sonho. Um idoso sentado na praça, esperando o vôo de borboletas, enquanto uma senhora faz bolinhos de chuva para a vizinhança. Padarias levantando as portas quando tem gente voltando da balada. Luzes se apagando enquanto velas são acesas. Novos negócios abrindo quando tudo o que alguém quer é se fechar.

Há gente correndo no parque e outras paradas no tempo. E tem ainda aqueles que estão experimentando vinho pela primeira vez, ou voando de avião, ou pegando um buquê numa festa animada de casamento. Há quem esteja rindo à toa enquanto outros tratam os dentes.

Enquanto você lê este texto, tem gente atravessando a rua sem olhar, olhando para a frente esperando um ônibus chegar, olhando para trás para resgatar sensações perdidas na memória, olhando para cima na esperança de ser içado de repente só para alcançar mais rápido algum tipo de imaginação.

Tem alguém adotando um cachorro perdido, sendo bicado por um papagaio invocado, fazendo carinho em um gato folgado, prometendo a si mesmo nunca mais ter um bicho de estimação.

Tem mais alguém recolhendo o lixo de pessoas que continuam jogando tudo no chão ao mesmo tempo que outros distribuem folhetos a favor de um planeta mais limpo. Mais sites pipocando na internet, idéias criativas tomando forma em agências de publicidade, copos sendo enchidos, expectativas, esvaziadas. Alguns escolhendo filmes em prateleiras de locadoras perto de casa enquanto outros decidem o que fazer para o jantar em homenagem a um amigo que vem de longe.

Tem gente perdida quando outras acabaram de se encontrar. Pessoas que acabaram de ser desenganadas quando outras sabem que vão sarar. Crianças aprendendo a contar até dez e adultos impacientes que não se lembram mais disso quando ficam nervosos. Alguém andando de metrô sem saber para onde ir quando outro alguém pergunta à vendedora da livraria em qual prateleira está o guia de viagem que ele procura, pois sabe exatamente para onde vai.

Quantos pensativos estão assistindo a algo nos cinemas enquanto outros tantos indecisos ainda pensam em qual doce comprar? Quanta gente gritando insultos guardados há tempos nos pulmões enquanto um monte de sorrisos se abrem pelos cantos? Quantas pessoas se cruzando ao atravessar a rua com histórias em comum silenciadas pelo pensamento?

Existem tortas de maçã quentinhas saindo do forno e gente aprendendo a comer com garfo e faca. Tem mesmo gente lendo histórias em voz alta enquanto alguém numa terapia está aprendendo a escutar.

Quantos olhares estão sendo impressos em laboratórios fotográficos enquanto câmeras digitais de última geração são colocadas em vitrines? Quantas coca-colas são vendidas enquanto um monte de gente daria tudo por um copo d'água? Quanta gente que acaba de descobrir américas ao mesmo tempo que outras têm um Grand Canyon para ultrapassar?

Para lá e para cá, aqui e acolá, tudo agora, numa simultaneidade metalingüística que nem espremendo cabe na nossa compreensão: incontáveis histórias anônimas acontecendo ao mesmo tempo formam o que a gente leva a vida inteira para entender.

09 janeiro 2008

Você já viu esse filme


O filme começa com ele correndo atrás dela. Ele quer se desculpar; ela não escuta. Eles brigam, fazem as pazes; ele sempre de bem com a vida; ela sempre encanada, tentando descobrir a si mesma. Com todo o amor do mundo, ele a ajuda mandando-lhe cartas que deixou escritas antes de morrer, ao final das quais deixa sempre um "P.S.: eu te amo".

Parece um enredo superficial que serve de pano de fundo para um romance água-com-açúcar. Pode até ser para alguns. Realmente, não é aquele tipo de filme profundo, a que a gente termina de assistir achando genial, mas, depois de conhecer histórias assim, é comum ficar reflexivo. Talvez sejam as lágrimas que trazem à tona mais emoção. Não tenho vergonha de chorar no cinema com histórias de amor sincero.

As mulheres são mais sensíveis a esse apelo romântico, até porque os personagens masculinos da película são todos lindos, simpáticos, fiéis, de bom caráter e boa intenção, além de um sorriso perfeito, e as cenas gravadas na Irlanda são realmente inspiradoras, com aquelas paisagens que levam a gente a pensar que o mundo parou e que só venta ali, lugar tingido com tons de verde que não existem em nenhum tubo de tinta.

Embora esses sejam ingredientes manjados e muito bem utilizados por roteiristas e diretores que desejam conquistar a platéia — e eu tenha plena consciência disso —, o filme cumpre o objetivo: eu queria um amor daquele, cartas daquelas, um P.S. daqueles, um olharzinho sincero que fosse, um primeiro beijo como o dos protagonistas, a roupa colorida dela, o cheiro de homem dele, um abraço gostoso, apertadinho e espontâneo sem motivo — e sem precisar pedir, aconchego, falas inteligentes em diálogos divertidos.

Os produtores do filme fazem de propósito: criam deliberadamente todo o enredo para causar inveja na gente, plantando aquele sentimento de insatisfação pelo fato de a nossa vida não ser assim, aquele mar de rosas, tudo azul, e ter poucas probabilidades de o ser. Quando dei por mim, invejava o casal sentado ao lado, mesmo ela usando um vestido fora de moda namorando um fulano mais ultrapassado que o vestido. Ela ria alto do que nem tinha tanta graça assim; fazia perguntas idiotas que ele respondia pacientemente, com ares de "o que seria de você sem mim?". Minha inveja mais idiota que aquelas perguntas era do jeito que ele abraçava ela, aceitando-a mesmo com aquele vestido, e da sorte daquela moça em poder ter a quem fazer perguntas quando quisesse, recebendo respostas doces em troca.

O mais curioso é que, ainda que eu invejasse a moça, que, a meu ver, é feliz ao modo dela, ela invejava a Hilary Swank da tela, querendo ter, como ela, o mesmo colo protetor ao qual recorrer, o mesmo bom humor dedicado fazendo graça para ela em karaokês, a mesma voz bonita cantando para embalar seu sono.

Do mesmo modo, é provável que, atrás de mim, alguém estivesse invejando a minha condição: o poder da escolha (vamos fingir que ele existe), a independência, a audácia de ir assistir a um romance sem a companhia de um amor, a desenvoltura e capacidade de escrever cartas melhores que aquelas do filme, embora com P.Ss idênticos.

Por que o filme dos outros é sempre mais bonito?

Porque a vida dos outros é sempre a Hollywood que a nossa não consegue ser, por mais que nos esforcemos. E é por isso, só por isso, que vamos ao cinema.