26 junho 2006

Memória fotográfica


Quando eu era pequena, meu avô materno me levava, junto com minhas irmãs e meu irmão, para passear de metrô. Era uma farra. Íamos e vínhamos na mesma linha várias vezes sem cansar. E ele lá, paciente, ouvindo os mesmos comentários a cada vez que víamos as mesmas coisas. Para ele, nada nunca era a mesma coisa.

Essa é uma das lembranças que tenho da infância. Durante os anos de faculdade, em que tinha de pegar o metrô lotado todo santo dia, freqüentemente me apanhava com essa memória invadindo a mente. Quem diria que aquele gostoso passeio de criança seria uma obrigação chata na minha idade adulta...

Meu avô era fotógrafo. Não desses chiques, com cartão com logotipo, placa na porta do estúdio e tudo. Meu avô não tinha estúdio nem ambição suficiente para chegar a ter um. Era mecânico de motos também. Mas, diferentemente do estúdio, moto ele tinha. Uma grande, de tanque vermelho, em cima da qual quantas e quantas vezes ia me buscar na escola. A mim e a meus irmãos. Todos de uma vez.

Brasílio Sgarbi era o nome dele. Eu sempre escrevi com s; ele, sempre com z. Dizia que o Brasil com s era com z quando ele nasceu e que, por isso, ele era com z também. Nunca averigüei isso, talvez por não aceitar sequer a possibilidade de tirar-lhe a razão... aquela coisa de neto que respeita demais os mais velhos. Teve pouco estudo, o suficiente para aprender sozinho a fotografar e a consertar motocicletas. Adorava comer banana, tinha umas manias engraçadas, retratava a família inteira em slides, filmava minha infância em rolos de filme que projetava na parede, atrás da porta do quarto, em algumas tarde de domingo, tinha uma garagem que cheirava a gasolina e uma Variant vermelho-cereja impecável, de pouco uso. Nos últimos anos de vida, com óculos emprestados, passava o dia assistindo à televisão, numa poltrona comum.

Morreu há 15 anos, tempo bastante para transformar a tristeza de sua ausência em suave saudade, em lembranças como as que conto aqui. Ultimamente, tenho me lembrado muito do meu avô.

Embora nunca tenha conversado com ele sobre fotografia, sei que ele nem imaginava que um dia as máquinas seriam digitais, que haveria Internet, msn, telefone celular, conversa em tempo real com o outro lado do mundo — e com imagem! Essas coisas certamente o fascinariam, ainda que tivéssemos de levar algum tempo para explicar-lhe como funcionam.

Então, cada vez que me deparo com o avanço tecnológico, principalmente no que se refere à imagem, lembro-me do meu avô, antigo, velhinho, com toda aquela parafernália que ele guardava em uma parede inteira cheia de prateleiras. Sinto-me a conexão dele com a tecnologia, e é uma sensação curiosa sentir-se ponte entre passado e futuro.

Qual não foi minha surpresa quando, tendo voltado de uma viagem à terra do meu pai, em visita aos meus ancestrais, algo que sempre tive vontade de fazer desde pequena sei lá por quê, vi que minha máquina digital recém-comprada e cujo manual fui lendo durante a viagem era capaz de tirar fotos belíssimas.

Não era a máquina. Era meu avô me ensinando que nada nunca é a mesma coisa e que precisamos mostrar aos outros o nosso modo de olhar...

Não estudei fotografia e ainda não sei consertar motocicletas. Não tenho cartão com logotipo nem ambição suficiente para ter um estúdio. Mas gosto de retratar a vida, embora tenha óculos próprios. Por isso, antes de ser Saraiva, eu sou Sgarbi.


8 comentários:

Anônimo disse...

Que belo texto, Kandy Sgarbi!
Foi um imenso prazer conhecer o seu avô...
Bjs,

Sérgio Klein

Anônimo disse...

Esse texto me emocionou, Kandy...
Tb me lembrei de meu avô materno!
Acho que eles mereceriam um blog inteiro dedicado às lembranças que temos deles...:)
Um bj
Jana

Anônimo disse...

Kandy!!
Nossa que delícia, voltei a minha infância e o que é mais engraçado , lembro do seu avô estacionando a moto em frente a casa da D. Celina(eu era vizinha dela ), e o que é mais legal ...Hoje a minha melhor amiga (Glaucia), é a neta dele !!!
Obrigada por esse momento ....

Anônimo disse...

Kan,
Que pena que o vovô não está aqui pra ler isso! Mas tenho certeza que o sangue dele corre MESMO em nossas veias. Pelo menos nós duas saímos a ele: grandes amantes da fotografia!
Eu herdei também outra paixão , que guardo com marcas profundas, em uma relação de paixão e ódio, onde sempre o amor ainda fala mais alto, até berra em meu coração: a paixão pelas motos. Isso também herdei dele...
Somos privilegiadas em ter tido um apaixonado como nosso avô em nossas vidas. Um cara moderno para o seu tempo, que gostava de coisas belas e que sabia viver.
Ele me ensinou que tudo na vida, depende do ângulo que a gente fotografa, seja com uma máquina na mão ou na nossa vida. O importante é o ângulo que a gente enxerga as coisas. Vamos pegar apenas os melhores ângulos para nossas vidas, tá!? Sempre!!!!!!
BJS da prima que te adora
Glau

rafael fermiano disse...

ou Zgarbi...certo?
Meu avô materno ainda está vivo. Com ele aprendi a tirar outro tipo de foto. Ele me ensinou a ver o tempo, sempre sei quando vai chover ou abrir o tempo do nada. Consigo sentir o sabor do vento, e que sabor o vento tem. Por falar em sabor, ele me disse qual o gosto de cada bicho de nossas matas, e até fez alguns para que eu experimentasse. Ensinou-me a soltar pião. E tem um rádio muito louco que ainda vou ter.
Esses dias porém descobriu-se que ele tem cancer, próstata. É triste ver aquele homem forte desesperadamente fraco. Não sei o que fazer, não sei.

Anônimo disse...

Kandy, você surpreende mais e mais com este blog. O lado KANDY ESCRITORA se revela com talento cada vez maior.

Tocante este texto. Delicado. Sincero. Envolvente.

Não tenho essas lembranças com avós, porque infelizmente nenhum foi marcante em minha vida — muito menos pelo lado paterno, você deve imaginar. Essa oportunidade com seu avô foi um enorme privilégio. Que riqueza ter essas lembranças! Fiquei mesmo emocionado e senti uma "saudável inveja" de sua relação com um avô. Mantenha-o sempre muito vivo em sua memória.

Anônimo disse...

Oi Kandy...

Avô é muito mais do que família é com certeza a maneira mais caleidoscópica de se conhecer o mundo. Tenho a sorte de ainda ter meu avô materno ao meu lado e continuar enxergando as coisas através da sabedoria multicor dele.

Eu tive uma feliz coincidência com a sua infância: como você, meu avô também me levava para passear de metrô. Enquanto olhava a sua janela, eu ia visitando várias lembranças destas viagens com gostinho doce de infância, mas uma em especial me veio a mente: como era interminável a escada rolante da estação Santana! Até hoje quando passo por lá ainda tenho essa sensação infantil de infinito.

Tem uma música do Cazuza que diz que só as mães são felizes. Bobagem... felizes mesmo, são os avós. E os netos.

Parabéns a você pelo texto e ao Sr. Sgarbi pelo legado.

Abraços,

Fabiano

Anônimo disse...

Também senti saudade, não sei bem do quê... Fiquei emocionada!
Adorei o texto!
Beijocas,