23 abril 2007

De quando eu vejo a morte de perto

Cemitério da Consolação, SP


A gente se dá conta de que cresceu quando começa a freqüentar velórios e não apenas festas de aniversário. É nessa hora em que se instala dentro da gente o começo de toda a indagação a respeito da morte.

Não sei se, com a idade, as outras pessoas se acostumam com eventos tristes desse tipo, se passam a achar que a vida é assim mesmo — vive-se, morre-se e acabou-se. Eu não me acostumo.

Enquanto puderam, meus pais sempre pouparam a mim e meus irmãos desse contato mais próximo com a morte. Minha mãe ia aos velórios e meu pai ia aos enterros. Eles se revezavam para que sempre um deles ficasse cuidando de nós.

Um dia, porém, morreu alguém que acabou com o revezamento. Era o pai de uma aluna da minha mãe, pessoa muito chegada à família, e parece que meu pai não podia faltar ao serviço no dia seguinte, de modo que teria de ir ao velório junto com a minha mãe e, conseqüentemente, levar-nos com eles.

Enquanto minha mãe me penteava, dizia: "Kandy, não fique impressionada, porque eu sei que você se impressiona com as coisas. Não fique olhando porque não há o que olhar, entendeu?". Interessante como as pessoas interpretam a morte. Para a minha mãe, talvez, ela fosse sem forma, porque não havia o que olhar. Mas, se não havia o que olhar, para que velório?

As mães sabem os filhos que têm. Eu, sempre morrendo de curiosidade, não acatei o conselho e olhei aquele senhor num caixão, com aquele monte de gente chorando em volta. Senti o cheiro de crisântemo misturado ao de velas acesas sabe-se lá há quanto tempo. O que mais me incomodou, porém, foi a indiferença do morto, aquele jeito impessoal. Ele não estava nem aí — ou lá — para todo aquele escândalo.

Isso me causou uma sensação terrível. Aquelas pessoas todas tristes e chorosas, sentindo tanto aquele muito que todo mundo diz que sente quando alguém morre, e o morto estático, inexpressivo e alheio àquele tudo. Nesse momento eu entendi minha mãe: o morto era um nada que não tinha o que ser olhado. E isso era mesmo pesado de traduzir pelo muito que o morto tinha sido. Hoje sei que é daí que provém a palavra pêsame (de "pesa-me", de "pesar", do latim "penso, as", que significa "pensar, examinar, ponderar, considerar, meditar"). É, eu estava indo pelo caminho certo.

O segundo velório de que me lembro foi o da minha avó materna (de minha avó paterna infelizmente eu só conheci o túmulo, quando estive em Portugal). Nesse, a tristeza era proporcional à pessoalidade que tínhamos em vida. Eu tinha treze anos. Foi a primeira vez que ouvi de alguém "meus sentimentos" e, sempre racional em relação ao significado das palavras, estreei-me aí na arte de refletir sobre o que aquilo poderia querer dizer. Até hoje acho incompleto, lacunesco, tão vago quanto a morte. Que sentimentos são esses? A pessoa está tão triste quanto a gente? Mas ela não sou eu para saber! Está tão saudosa quanto a saudade que aperta miúdo o meu coração num momento assim? Mas o coração dela não é o meu!

Àquela altura, eu só entendia o vazio daquelas palavras, e era aí que fazia todo o sentido: um vazio que eu identificava com o vazio daquilo tudo, tão sem sentido, coisa besta, confusão, conflito. Eu achava razão no que, além de não ter o que olhar, não era pensável.

Dois anos depois foi a vez do meu avô materno, mas nem por isso foi menos triste. Ao contrário: tenho pra mim que, quanto mais a gente freqüenta velórios e presencia perdas, nossas ou dos outros, um pouco mais fundo a morte entra na gente, mostrando que existe, que é implacável, nada, nada simpática e, o pior, que sempre volta. A freqüência das visitas é proporcional à idade que acumulamos, isso é fato.

Prestar minhas condolências às pessoas que perderam entes queridos passou a ser, deste modo, um exercício de reflexão sobre essa visitante atrevida e insegura, que tem a péssima mania de se impor a qualquer custo. Fui percebendo que ela levava a alma das pessoas, como nos é explicado nas histórias, não porque as pessoas diziam que era assim, mas porque eu notava o vazio, sempre o vazio. Era na inexpressividade do morto que a morte começava a fazer sentido para mim.

Tudo porque a palavra alma vem de "ânima", que, novamente em latim, significa "sopro". É a essência que temos dentro da gente, o que infla nosso corpo e nos dá movimento e sentimento. É daí que, curiosamente, surgiu a palavra "ânimo". É preciso alma para resolver os problemas, alma para combater a tristeza, alma para levantar da cama. Sem alma, a gente não vive.

E, então, meus olhos curiosos notaram como o morto fica diferente no caixão. Não pelas flores ou pelo inconveniente algodão que nele é colocado, mas pela falta de ânimo: a expressão muda de um jeito que a pessoa parece até outra, completo desconhecido, tão estranho quanto a morte que o fez assim.

Portanto, tão triste quanto a saudade que a pessoa deixa, quanto as circunstâncias da perda, é a falta de ânimo, sopro que a morte inspira, arrebatando a essência que levamos a vida toda para lapidar. O sopro que resta nos que sobrevivem a isso pode ficar mortiço por um tempo, mas vai inflando novamente à medida que o ânimo volta a preencher cada vazio que dentro de nós fica. E é ela, a alma, que sabiamente transforma esse vazio em saudade, palavra que só existe em português, para o nosso consolo.


14 abril 2007

Mais

Eu queria ser apaixonante, para que algumas pessoas se apaixonassem por mim. E queria ser um pouquinho mais gorda, ter um nariz levemente mais delicado e um tantinho de coragem para tatuar alguma parte de mim. Queria falar francês e ser mais política, sabendo degustar com classe tudo o que é imposto por qualquer tipo de máfia. E, se eu soubesse tocar violão, deixaria meus dias mais musicais, sem meu (irritante) assobio pra lá e pra cá.

Queria ser mais aventureira, pra não me importar tanto com barro sujando minhas meias ou risco de vida dependurado em alpinismo; não sentir tanto enjôo quando subo serras ou passo em frente a ambulantes vendendo comida em qualquer calçada.

Eu queria fazer uma expedição à Antártida, mesmo preferindo verão a inverno e sendo a criatura mais friorenta do hemisfério Sul.

Queria não precisar ver o incrível para ter uma sensação cômoda de agora-eu-acredito-que-existe. Isso facilitaria deveras a minha vida.

E queria ter uma casa minha com quintal grande para abrigar um ou dois cachorros grandes, porque adoro casa grande e cachorros grandes. Teria sido bom se eu tivesse mudado de casa pelo menos uma vez, pois as mudanças deixam a gente menos conservadora.

Queria ter um ateliê onde pudesse esparramar minha arte sem ter de me preocupar em juntar tudo depois para guardar num lugar milimetricamente calculado feito quebra-cabeças de cinco mil peças. Aliás, seria igualmente bom ter paciência para montar quebra-cabeças de cinco mil peças.

E, pensando bem, seria maravilhoso precisar mais dos outros sem achar que incomodo, ter alguém para me abraçar nos shows a que vou, pra quem ligar a qualquer hora pra me acudir em qualquer lugar e me ajudar a resolver qualquer problema ou a carregar as compras do supermercado ou os quinhentos livros que vivem dentro do meu carro, despindo-me dessa coragem besta e militar de resolver tudo sozinha devido a anos de treinamento intensivo em sobrevivência na selva.

Queria poder ter um disque-bolo de chocolate, pra onde ligar da rua ou do trabalho pra poder pedir um pedaço descompromissado de pão-de-ló... sem ter de pagar por ele.

Agora, o ideal mesmo seria se as crianças governassem o mundo. Aí eu iria querer a volta das balas de coco, com papel esfiapado e tudo, nas festas de aniversário e em todos os restaurantes por quilo, que, obviamente, serviriam petit-gâteau de graça.

Falando em comida, queria conseguir comer uma maçã inteira — e com casca — e beber pelo menos um litro de água por dia, como recomenda todo mundo, além de correr cinco quilômetros sem sucumbir à caminhada e pensar em água o tempo todo. Paradoxal. Mas não abro mão de ser paradoxal, porque conter os opostos enriquece muito a gente.

E se eu tivesse uma agência dos Correios do lado da minha casa, eu seria a escrevedora mais feliz do planeta, porque e-mail algum substitui uma carta bem escrita à mão. O papel pouco importa.

Importaria se, em vez de fechadas nervosas no trânsito, as pessoas abrissem sorrisos gentis; se a Academia Brasileira de Letras decidisse de uma vez por todas o que tem hífen e o que não tem, se todos recebessem doses generosas de romantismo quando fossem tomar vacina e se houvesse trilha sonora automática para cada momento da vida, como nos filmes.

Eu queria ser mais voluntária e menos proletária, mais benevolente e menos irada, mais na moda e menos neutra. Queria ter um xale bem lindo feito o daquelas cantoras portuguesas de fado. Já imaginou, também, se eu soubesse maquiar meus olhos como a Anne Hathaway em O diabo veste Prada, naquela cena em que ela janta com um bonitão em um restaurante francês? (o bonitão e o restaurante francês, por estarem no contexto, não têm como serem excluídos desta lista de desejos...)

Queria que minha memória não fosse tão boa, o que torna tudo inesquecível — e há coisas que é sempre melhor não lembrar.

Também queria dominar todas as fórmulas do Excel, e saber pintar com tinta, e andar de salto em rua de paralelepípedo sem perder a pose, e achar delicioso qualquer coisa feita com abóbora, e saber subir no telhado para ver céu estrelado, e ter um motorista pelo menos uma vez por semana à minha disposição, e café na cama uma vez por ano talvez, e não querer matar o locutor de rádio quando ele faz o obséquio de me acordar pela manhã com aquela voz suave feito travesseiro macio.

Mas se eu fosse tudo isso ao mesmo tempo, não seria quem sou; se tivesse tudo o que quero, não teria mais querer. E quando a gente fica sem querer nada, morre para o mundo e renasce fútil.

É preferível uma lista renovável e extensa de desejos realizáveis ou utópicos à futilidade de contentarmo-nos com o que somos e temos. Querer move tudo.



As fotos dos grafites de Donato foram gentilmente cedidas pelo Ricardo Montero, fotógrafo amador da arte de fotografar, mas profissional no jeito de olhar.


10 abril 2007

Ninguém

Salvador, BA


A Juliana anda bem sem você. Sem as palavras que você não diz, os indícios que você não dá, as gentilezas que você se recusa a fazer.

A Marina anda bem sem você. Sem o nome dela na sua agenda telefônica, sem os e-mails que você não escreve, as letras que você não contorna.

A Rita anda bem sem você. Sem a angústia que você causa, sem as flores vermelhas recendendo remorso, as jóias brilhantes carregadas de arrependimento.

A Paula anda bem sem você. Sem os perdidos que você dá, a falta de atitude que não o faz sair do lugar, a acomodação infantil que redemoinha tudo.

A Camila anda bem sem você. Sem o que você só sabe ser, as pedras que você insiste em trazer, as explicações entaladas em algum lugar sem saída.

A Simone anda bem sem você. Sem as expectativas que você espalha por aí, sem a falta de nome para as coisas que você nunca sabe definir, falta de memória cheia de nós.

Nós é o que você não sabe ser.

O mundo anda bem sem você.


04 abril 2007

Socorro, não. São Paulo.

Museu de Arte de São Paulo — Avenina Paulista


Parado, aí, irmão! Vai dando tudo! O que quiser a hora que quiser. Todo tipo de gente, todo tipo de comida, de banco, de igreja, de diversão. Tudo que é religião. Gente circulando o tempo inteiro, de janeiro a janeiro. Pressa, impaciência, toda sorte de indecência; barulho, entulho, moçada estranha negociando bagulho; buraco na rua, lixo na rua, menino de rua, outdoor de mulher nua (tá pra acabar: o outdoor, não a pobreza — que beleza!), e prostituta e travesti. Caramba! O que é que eu tô fazendo aqui?! Lugar que alaga, mar de gente, enchente! Fecha esse vidro, olha pro lado, entra à direita, tá tudo parado! Parado aí, irmão, vai dando tudo; não tenho emprego, mas tu tem canudo! Tudo sujo, impregnado. Toma cuidado! Tudo por aí, espalhado: indiferença, anonimato. Olha que eu te mato! Tudo chato, descolorido. Tu é bandido? Olha a lombada, camarada. Afe, furou o pneu! Vixe, quem foi que morreu? Tia, eu não tenho nada, sou favelada, compra minha bala? Bala de menta, de hortelã, ardida. Bala perdida. Respeite o pedestre, não pare na faixa, a Zona Azul bem que podia ser de graça... Mas parou em fila dupla, dá-lhe multa. Preciso de salário nessa terra de trabalho. Cê é otário?! Puta que o pariu, minha carteira sumiu! Roubo, polícia, briga de motorista. Não vem pra cima de mim! Tá achando que meu dinheiro é capim? Música alta, terno e gravata, muita tecnologia. Orgia. Centro de compra, motel, arranha-céu; chave de carro roubado é troféu. Multa, rodízio, radar. Com quem que eu tenho de reclamar? Urbe eclética, cheia de madame, não adianta mais arame. Farpado. Tudo agora tem alarme, câmera, monitoramento. É tudo movimento, moda, museu, exposição. Da figura. Malabarismo no farol, tô suando nesse sol! Formigueiro descendo na rodoviária. Um monte de horas pra alcançar a praia. Caminhão pra todo canto, poluição, desencanto. Moto à toda, ambulância, viatura. Se situa, criatura! Fica na sua, mané! Não tá vendo meu retrovisor, qual é?! Tempo é dinheiro, tudo é mercado financeiro, cidade mais rica do país, mas tua vida aqui tá sempre por um triz. Noite badalada, vida agitada. Cadê a calçada? Todo tipo de entretenimento. Vai passando o documento! Jogo do Curíntia e do Parmera, pastel de feira. Puta loja careira! Roupa de grife. Passa tudo, patife! Estresse, desconforto. Me acudam que eu tô ficando louco! Aeroportos, caos, avião. Pra nada dão explicação. Tudo é longe, a gente demora pra chegar. Claro, claro, eu dô uma passadinha lá. Sai da frente sua lerda! Por que é que eu ainda vivo nessa merda?! Dois suflé, um real. Faço quatro, cinco, mil. Deiz real, onde já se viu?! Drama cotidiano de todo santo paulistano. Metrô lotado, trânsito engarrafado; macetes, cacetes, surra, gastura. Saber onde anda, saber onde alaga, trabalhar feito camelo pra saber o que paga. Paciência. Violência. Cumpadi, tenha piedade, me dá uma moeda? Deixa eu lavar teu vidro? Precisa, não, amigo, fica pra próxima. Oportunidade.