29 novembro 2006

Até logo!


Para Angélica, com carinho de ontem, hoje e amanhã


Eu e Angélica estudamos juntas até a oitava série. Até festa de aniversário surpresa ela fez para mim um ano, com direito a venda nos olhos e tudo. Depois, cada uma seguiu a vida, numa dessas rotas cheias de bifurcações e não tão bem sinalizadas que fazem as pessoas se perderem umas das outras. Mas o destino nunca me deixa na mão. Certo dia, eu e Angélica nos encontramos casualmente em um vagão do metrô. Descobrimos que ambas tínhamos escolhido o mesmo curso de graduação; o mundo das letras é mesmo seletivo. Nessa época, Angélica trabalhava numa companhia aérea e estava estudando francês.

Tínhamos a mesma idade, a mesma infância, a mesma formação. Tínhamos passado em comum, um segundo lugar num festival de música da escola, muitas brincadeiras escondidas no quarto dela, onde brincávamos em tardes esticadas pela vontade de não crescer, que acabavam com bolo feito pela mãe dela; mimo doce para preparar o paladar para o às vezes amargo futuro.

“Vamos nos encontrar para tomar um café?”, ela me escreveu dia desses.

Não tomamos aquele café.

O destino, no entanto, sempre tão condescendente comigo, providenciou outro encontro casual. No dia do primeiro turno da eleição, quando trabalhei como mesária e fui almoçar no shopping, Angélica me viu comendo em pé e, gentilmente, como sempre, foi até mim para me chamar para almoçar na mesa onde ela estava com a família. Fazia anos que não nos víamos, embora nos falássemos via tecnologias disponíveis.

Por que não tomamos aquele café? Não foi por falta de tempo, porque isso não é desculpa. Não foi por má vontade, porque Angélica e eu seríamos incapazes disso. Não foi desencontro. Eu não sei o que foi. E esse não saber é que angustia, embrulhando todas essas maravilhosas lembranças em papel feio sem laço de fita, como coisa sem importância amontoada em qualquer gaveta.

É o velho e bom depois, um dia, vamos combinar, indefinição. É a velha e traiçoeira confiança no amanhã, no virar a folha do calendário como dois e dois são quatro, com o respaldo da tola juventude. É a velha e falsa imortalidade que vai juntando cafés aqui e ali, numa coleção infindável de até logos imbecis e estéreis, que nunca vão chegar.

Foi a última vez que vi Angélica. Hoje, ironicamente por meio das mesmas tecnologias disponíveis que tornaram possível restabelecermos nossa comunicação, eu soube que ela morreu. (Ainda se morre de meningite no século 21.) Fiquei sem chão, momentaneamente sem infância, sem mundo de letras, sem palavras, chorosa por dentro e por fora, mais até que essa chuvarada toda que embolora as idéias. Eu transbordei foi de saudade ao começar a embalar nossas lembranças em papéis maravilhosos, com fitas coloridas. (Nunca fui boa em despedidas.) Irrompi em lágrimas escandalosas de decepção comigo mesma por não entender o porquê de não termos tomado aquele bendito café.

Talvez porque simplesmente não haja razão para tudo. Nós é que somos nada.


26 novembro 2006

Por que detesto estatísticas

— Alô? Oi, aqui é da corretora, é sobre a renovação do seguro do seu carro.
— Ah, sim! Oi, tudo bem? Eu ia mesmo ligar pra você... Você já tem algumas cotações pra me passar?
— Tenho, sim, claro. Mas já vou te avisando que o valor subiu um pouco, não se assuste. E olha que tentei pechinchar. Consegui diminuir em quinhentos reais, mas ainda ficou bem mais caro que no ano passado...
— O curioso é que o carro é o mesmo e não houve sinistro, então, eu deveria ter bônus...
— É, mas você teve bônus e mais descontos por ter vacina antifurto no carro, alarme, por ter mais de 25 anos, ser mulher, deixar o carro em garagem de dia e de noite e...
— Fala logo qual vai ser a facada...
— Dois mil. Chorados, hein?
— Você tá louco?! O meu carro é popular!
— Justamente! E é o popular mais visado!
— Claro que é o mais visado! Pois foi o mais vendido! Se foi o mais vendido, há mais dele na rua, portanto, é mais roubado. Isso é lógica, eu não tenho culpa de ser pobre e só ter dinheiro pra comprar um carro popular, que, se foi o mais vendido, é porque, na época, era o melhor negócio...
— Calma. Olha, eu vou te explicar: há vários fatores que encareceram o seguro do seu carro.
— Por exemplo?
— As autopeças originais aumentaram em 300%, você não mora em apartamento e...
— Quê? O fato de eu não morar em apartamento encarece o meu seguro? Que absurdo!
— É que, estatisticamente, as pessoas que moram em apartamentos têm menos probabilidade de serem roubadas quando chegam em casa, porque é mais seguro...
— Ah, então eu não posso mais morar em casa?
— Pode, só se for em condomínio fechado... aí você tem o desconto.
— Mesmo não concordando com essa insensatez, quais os outros fatores que influenciaram no preço?
— Então, o modelo do seu carro não é mais fabricado e você mora na zona leste da cidade, onde, de acordo com as estatísticas, há mais incidência de roubo...
— E eu tenho culpa de morar em reduto de ladrão? Analise comigo: se os ladrões moram aqui ou se vêm roubar mais aqui é porque aqui é mais barato pra morar e tem mais carro popular e menos segurança; logo, é onde as pessoas mais simples, as que não têm dinheiro pra comprar casas e carros caros, moram. Se elas não têm como pagar por casas e carros melhores, por que têm de pagar mais por morarem onde moram? Não faz sentido!
— Pule essa parte do sentido. E eu ainda não terminei. O outro fator é, bem, eu tenho de falar, né, você perguntou... é porque você é solteira...
— Ã?! Eu tenho de pagar mais caro porque eu sou solteira?! Ah, era o que me faltava!
— É que, estatisticamente, as pessoas casadas saem menos de casa de carro, então, as solteiras são mais roubadas, e as companhias de seguro levam isso em consideração.
— Isso deve ser uma pesquisa manipulada, pra variar. Tem muito casado que sai mais do que muito solteiro. E, se isso não bastasse, além de não haver no mercado homem livre, desimpedido e bem-resolvido, eu ainda tenho de pagar por isso?! Eu é que sou a vítima dessa escassez! Eu deveria receber uma indenização em vez de pagar!
— Olha, se serve de consolo, você é uma mulher bonita, inteligente, logo, logo acha alguém e...
— Não é o que a Veja diz. De acordo com ela, as mulheres de 30 anos têm apenas 27,6% de chance de se casar! Aos 35 isso vai para apenas 19,2%! Então, estatisticamente, como você enfatiza, eu tenho mais probabilidade de continuar pagando meu seguro cada vez mais caro!
— Pensando por esse lado, é verdade. Sinto muito...
— Obrigada pela solidariedade. Mas tá errado! Tudo errado! Além de eu discordar da Veja por ela propagar esse tipo de estatística inútil que só reforça determinados preconceitos, os ricos têm grana pra pagar seguro, os bem pobres não têm carro, então, pessoas como eu, que não têm dinheiro pra ter carro bom, têm de pagar por tudo. Se eu ainda tivesse um carro com ar e direção, vá lá...
— Coitada! Bem, mas olha a boa notícia: você paga em quatro vezes sem juros! Fechado? É débito em conta como no ano passado, né? Dia 30 tá bom? Te mando a apólice amanhã!
— Isso é mesmo deprimente, não? Ainda ter de dividir em quatro vezes a minha indignação...



21 novembro 2006

Lunática sonhadora

Desde pequena eu sonho muito. Dos sonhos dormindo sempre me lembro acordada. Já os que tenho acordada acabam adormecidos na memória mesmo. Uns, mais insistentes, vingam e viram objetivos; outros são arquivados na seção do sono eterno e ponto final.

Dia desses sonhei com a Lua. Talvez Freud explique, não sei. Mas, antes de adentrarmos no sonho propriamente dito, querido leitor, preciso explicar que, também desde pequena, eu tenho uma certa rixa com a Lua (minha infância foi mesmo fascinante!): quando eu andava de carro e olhava para o céu, achava uma tremenda petulância desse satélite me seguir até em casa, naquela observação irritante. Com a caravan dourada que tinha, meu pai podia entrar em qualquer viela escondida dessa cidade enorme que não adiantava: a Lua lá, gloriosa, sempre me olhando. Não tinha sequer espírito esportivo para brincar de esconde-esconde. Bancava mesmo a mãe da rua, dona da bola, cheia ou minguante, tanto faz.

Cresci com essa mania de perseguição, que hoje amenizou-se, é verdade, porque para alguma coisa aquelas aulas chatas de Geografia tinham de servir. Mas, sobretudo em noites quando a Lua está grande no céu, volta em mim aquela sensação de infância: a Lua me olhando, soberana, como se fosse a única capaz de me enxergar por dentro, ainda que eu não tenha o que esconder.

Pois meu sonho foi, modéstia à parte, criativo pra chuchu. Primeiro, a Lua desmoronava sobre a Terra, e o céu, visto daqui, desaparecia. Ao olharmos para cima, tudo era solo lunar. Foi ficando frio e escuro. Tudo bem, eu sei que a Lua é muitas vezes menor que a Terra e tal, piriri, pororó, mas uso a licença poética até em sonhos. No meu, ela era maior e caía, assim, no planeta inteiro, sem aviso prévio mesmo.

Com humor de fim-de-mundo, as pessoas saíam de suas casas olhando para o céu-Lua, meio apavoradas, meio intrigadas. Saí também, mas, curiosamente, em vez de pânico por finalmente pensar que a Lua me descobriu e veio me buscar de vez — como o homem do saco que as mães sempre utilizam como ameaça em horas de impaciente desespero —, eu fiquei extasiada porque, diferentemente de todo mundo, eu via beleza.

Nesse momento, a Lua choveu. Ela chovia pedaços, que pareciam espuma de colchão. E aí veio uma tempestade de Lua. Todo mundo saiu correndo, feito fogos de artifício, só eu fiquei debaixo daquela Lua se desintegrando. Quando a chuva parou, as pessoas, ainda curiosas, tentavam pegar os pedaços lunares do chão, mas queimavam as mãos e logo os soltavam, de tão gelados.

Por motivos que a razão desconhece, até por estar ausente num momento como esse, eu continuei exceção e saí catando todos aqueles pedaços de Lua de espuma de colchão. Quando já estava com os braços lotados, como quem carrega lenha, caminhei até uma jardineira e os plantei, meio que esperando uma resposta. Se a Lua tinha despencado na Terra era porque queria entrar nela, pensei.

Acordada, eu não planto nem bananeira, quem dirá flor. Mas no sonho eu plantava Lua, que deu botão e fez crescer bem rápido um sonho de planta, linda e cintilantemente branca, com perfume de gardênia que se espalhava por aí. Mas a flor, que não existe na Terra, só durava um dia, para o meu desconsolo.

Acordei com essa sensação de e agora e fiquei um tempão pensando naquilo tudo. Será que é porque eu leio muito livro infantil, onde até avião bota ovo? Ou porque tenho tanto os pés no chão que fazer um intercâmbio com a Lua seria uma espécie de mestrado para aprender o diferente? Talvez seja influência do Pequeno Príncipe. Bom, pode ser também a minha criatividade ultimamente pouco utilizada transbordando no sono.

Que seja. O negócio, meus caros, é sonhar, em todos os sentidos, sem procurar lógica, motivo ou explicação. Porque, no mundo da lua, onde os sonhos acontecem, essas coisas definitivamente não importam.



Observação interessante: a foto da Lua sobre a qual fiz arte foi tirada pelo meu amigo Leo, aquele que foi para a Bahia comigo e que cisma em me levar para conhecer as nuvens, desta vez em uma viagem de balão. Para minha sorte, ele é psicólogo.


19 novembro 2006

A mulher e a carta


A mulher lia a carta.
A carta desconfiava da mulher.
A rua olhava as duas.
Na sombra.

A carta chegava mais perto da vista da mulher.
A mulher decifrava a caligrafia da carta.
A rua acolhia as duas.
Na subida.

A mulher não entendia o que lia na carta.
A carta tentava explicar-se para a mulher.
A rua ajudava as duas.
Na largura.

A carta emocionava a mulher.
A mulher chorava na carta.
A rua amparava as duas.
No chão.

A mulher sentou-se para dar mais tempo à carta.
A carta encompridou-se para auxiliar a mulher.
A rua esperava as duas.
No comprimento.

A carta fez suspirar a mulher.
A mulher dobrou a carta.
A rua assistia às duas.
No silêncio.

A mulher entrou em casa para guardar a carta.
A carta guardou as emoções da mulher.
A rua guardou as duas.
No anonimato.



História da foto: Em um dos passeios que fiz quando viajei para Portugal, em 2005, visitei um vilarejo com as casas todas branquinhas. Não havia ninguém na rua, exceto eu. De repente, a mulher da foto sai da casa dela, verifica a caixa de correspondência e pega uma carta. Ansiosa, senta-se ali mesmo e começa a ler. Eu não sei quem era aquela mulher nem o que havia na carta. Mas nunca presenciei uma manifestação de emoção confusa, solitária e espontânea como foi a daquela mulher, que não pude deixar de fotografar.

15 novembro 2006

Como começa o amor

"Kan querida,
Recebi o recado cedo, mas estou respondendo só agora porque já fizemos o TESTE....

Kandy pega uma coleção (infantil viu) para seu futuro afilhado(a) rsrssrrs temos 90% de chance de estarmos corretos, nós não vamos na balada.

Vamos comer pizza aqui em casa, se vc não for na balada aparece para comemorar, ok.

Fiquei com vergonha de te ligar, a gente ficou meio esquisito... não sabe se fica feliz, ou preocupado ou apavorado...rsrsrs

Liga pra mim tá. bjs.

Fê, Eri e bebê!" (e-mail de 9/fev./2006)




“Querida Amanda,

Você fez um mês dia 12, mas já observa tudo de um jeito que conquistou esta sua madrinha aqui. Ter um olhar inquisidor, desses de varrer tudo motivado por curiosidade, é bem a minha praia. Nesse quesito, você teve a quem puxar, apesar de não termos vínculos sangüíneos — um detalhe insignificante, a meu ver.

Eu nunca havia presenciado um nascimento até você vir ao mundo. E confesso que foi uma expectativa interessante. Você já emocionava as pessoas antes mesmo de sua mãe concretizar a torcida para você nascer no dia do aniversário dela e de Nossa Senhora Aparecida. Só por isso, você já é iluminada. E vai se divertir pra caramba, porque nasceu no Dia das Crianças (eu te dou dois presentes, combinado?).

Mas olhar você ali, enfrentando o mundo pela primeira vez com um monte de gente que até então você nunca tinha visto, fez as emoções transbordarem. E, junto com seu choro, todos choramos também, numa alegria que finalmente podia se despir de qualquer preocupação.

Sua mãe, minha melhor amiga, já dizia que eu seria a sua madrinha nos tempos em que eu e ela estudávamos juntas. Acredita? Eu ainda não sei como é ser madrinha de alguém, mas posso seguir o exemplo da minha, que é mesmo minha segunda mãe. Então, queridinha dos olhos azuis, fique tranqüila, porque eu sempre estarei aqui, participando ativamente da sua vida, festejando seus aniversários, suas conquistas, apoiando suas decisões, assistindo às suas apresentações na escola, te ensinando análise sintática, ajudando você a entender o mundo de um jeito poético, que isso ajuda bastante, e torcendo para que você tenha na vida uma amizade como a que eu e a sua mãe (e agora seu pai também) temos, que isso é extremamente importante.

Provavelmente você não se lembra, mas, quando peguei você no colo, ainda na maternidade, te falei quantas coisas legais você poderia conhecer: cata-vento, parque de diversões, algodão-doce, corrida de São Silvestre (com a sua família inteira correndo nela!), música, escorregador, risada espalhafatosa (que espero você tenha herdado da sua mãe), cores, tintas, giz-de-cera, orquestra, passeio no parque, vento no rosto, lençol cheiroso, pão quente, mimo de avô e avó, bicicleta, pastel de feira, jogo de vôlei, areia de praia, mar de informação e tantos outros aparatos eletrônicos que sabe Deus o que serão na sua adolescência...

Olhando para você, é inevitável a pergunta: o que será que você vai ser? O sonho da sua mãe (porque todas têm os seus) é viajar com você nos Jogos Olímpicos. É, porque você vai ser atleta de seleção, daquelas altas e bonitas, que vai literalmente “botar pra quebrar”. Mas você pode ser médica, cientista, estilista, comerciante, astronauta, professora, apresentadora da MTV, produtora de moda, jornalista, designer ou o que quiser ser, porque tem uma família que te ama que vai te ajudar a ser você.

Particularmente, meu desafio vai ser familiarizar você com os livros. No que depender de mim, eles vão fazer parte da sua vida naturalmente. Tudo bem, vai, eu forcei um pouco a barra lotando a estante do seu quarto de obras coloridas que você ainda nem sabe ler. Mas eu vou ler para você e vou te ensinar a folheá-los e a entrar neles de um jeito divertido. Isso talvez intensifique seu modo de olhar e deixe seus olhinhos ainda mais brilhantes, e talvez nós duas consigamos seqüestrar o resto da sua família para fazerem a mesma coisa. Certamente a leitura vai torná-la uma pessoa criativa... e, pensando bem, você vai poder até ser artista, porque a arte é indissociável da literatura...

Por enquanto, continue aconchegada no cobertor laranja de franjas que foi do seu pai, alegrando a vida dos seus tios babões (fala sério, Amanda, ser a única sobrinha de três tios homens é privilégio de poucas, hein?!), ouvindo calmamente a musiquinha do móbile que você ganhou de um deles, aproveitando a delicadeza do seu quartinho branco e lilás, e crescendo forte e saudável numa família que está se esforçando para ser perfeita para você.

Amanhã eu vou visitar você e te levar os cds que comprei para você dormir feliz. Longe de mim influenciar seu gosto musical, mas dormir ouvindo Pachelbel, Bach, Beethoven e até o estressado do Mozart (foi um pessoal diferente, um dia eu te explico se você quiser), todos com arranjos especiais para ninar bebês, não é para qualquer um — e, definitivamente, você não é qualquer um. Ah, se você não gostar, também tem um cd de MPB para bebês, e você vai poder conhecer a Mônica Salmaso e a Na Ozetti cantando músicas de pingo de chuva, que confortam qualquer alma pouco ou muito sonolenta.

Você vai ser feliz, porque é querida e amada, a começar pelo belíssimo nome que te deram (deixa eu te contar, vai, uma hora você ia ter de ficar sabendo mesmo: ele vem do latim amandus, a, tendo o primeiro registro identificado no século XVII, e quer dizer “digna de ser amada”). E vai poder ler esta carta sempre que quiser, porque ela vai estar dobradinha e escrita a mão no álbum colorido que vou montar para imortalizar seus primeiros anos de vida, contando o início da sua história.

Beijos estalados na sua bochecha fofinha, desta madrinha que te ama desde 9 de fevereiro,

Kandy”

Legenda da imagem: Erison na maternidade, olhando para a filha recém-nascida.

05 novembro 2006

A hora do aperto

Por alguns dias tive o tempo a meus pés, algo só possível quando se tem férias ou quando ocorre algum evento geralmente de natureza catastrófica que nos obrigue a ficar trancafiados em algum lugar sem nada para fazer, num exercício entediante e aflitivo de perder tempo.

Curiosamente, hoje entrou o horário de verão, quando os relógios tiveram de ser adiantados em uma hora. Mas minha sensação de tempo perdido é gigantescamente maior que isso, sobretudo agora, a menos de uma semana de retomar aquele ritmo alucinante de luta contra os ponteiros mais ágeis que eu.

Eu só tenho 31 anos, embora às vezes me sinta com 40. 9 anos perdidos. Mas também há dias em que me sinto mais nova, no auge dos 20, devido a um daqueles banhos imaginários em alguma lendária fonte da juventude. 11 anos perdidos. Os mais racionais dirão, como naquela metáfora do copo mais cheio ou mais vazio quando a água nele está exatamente na metade, que 31 são 31, nem mais um nem menos um. Mas eu estou perdendo tempo, e isso é um fato que nem a Matemática explica.

Estou perdendo os sonhos que não consigo realizar por motivos que independem de mim. Estou perdendo as viagens que poderia fazer não fosse a obrigação de comparecer diariamente ao trabalho (o mesmo trabalho que paradoxalmente pagá-las-ia). Estou perdendo horas fantásticas ao lado de amigos mais fantásticos ainda que só consigo ver nas férias. Estou perdendo céus coloridos que as janelas do escritório não me deixam ver e estrelas sempre cobertas quer pela poluição, quer pela minha falta de tempo para contemplá-las.

E, nessa perda de tempo, não sou mais capaz de visualizar as palavras de amor que ainda quero ouvir, os olhares cúmplices teóricos que nunca tiveram tempo de serem praticados, as tortas de morango que não tive tempo de aprender a fazer, os solos de violão que a falta de tempo trancou no armário, os filhos que não tive, as orações que não fiz, os momentos de liberdade covardemente sufocados por estar sempre atrasada, numa luta insana contra o que sempre passa mais rápido do que eu, as pessoas que não conheci por nunca ter chegado a hora, as conversas que poderiam acontecer não fosse eu ter de fazer mil coisas ao mesmo tempo, os beijos que não recebi de alguens que não tiveram tempo a me dedicar ou que têm predileção ao depois, o que deixei de fazer enquanto esperava o trânsito andar, o dentista me atender, o médico chegar, a fila acabar...

Não adianta: quanto mais o calendário anda, mais tempo eu perco. (O ideal seria não dormir, como agora, mas numa insônia voluntária e compensadora, multiplicadora de horas extras, diferente desta, motivada pela sensação de impotência diante de horas contadas.) Eu trocaria, de olhos fechados, muitas das minhas horas solitárias por poucos minutos de companhia sincera e espontânea.

Pode ser a cidade em que vivo a maior culpada por essa sensação de relógio acelerado. Pode ser minha ansiedade ou minha expectativa pelo diferente, que teima em acontecer sempre igual na minha vida, ou, ainda, a constatação infeliz de que tudo está mudando exceto eu. Essas coisas atropelam tudo sem piedade, fazendo das vinte e quatro horas um piscar de olhos.

Então, hoje, quando adiantei o relógio em uma hora, não doeu. Foram apenas cócegas nesse imenso desperdício.