O piano hoje jaz na sala, móvel inútil, imponente e aposentado. Dorme quieto num dia-a-dia conturbado que olha para ele com uma injustiça muda.
Mas ele já foi ativo, já ajudou algumas pessoas a entender e a apre(e)nder música, já animou aniversários e acompanhou cantorias — cavalheiro, como sempre.
Já pensou se ouvíssemos melodias tocadas ao piano no primeiro beijo, em despedidas, nascimentos, nome na lista de aprovados no vestibular, decepções amorosas, olhares interessados, conquistas e céu azul?
O piano é a trilha sonora perfeita para bolo de chocolate em dia de chuva, rumores abafados por melancolia, amores perdidos em páginas de diários, reflexões demoradas em qualquer janela. Embala viagens de trem, musicando a paisagem; dá ritmo a qualquer descompasso, dor de cabeça, constatação infeliz, conta de luz.
Ele não precisa ser de cauda, alemão, austríaco ou de marca boa. Pode ter teclas amareladas, tampo trincado, madeira opaca, pedal engasgado. A melodia que emana toca a alma, como se isso fosse inato ao ser humano. E são tantas bailarinas rodopiando nas veias clássicas que fica difícil não melodiar momentos — mesmo que na imaginação sem partitura.
Acordes ao piano são pensamentos pingando, brisa em dia quente, água escorrendo pela pele, massagem nos nervos, passos apertados, suspense, abraço caloroso e beijos apaixonados. É trilha sonora para viver. Qualquer coisa.
Sou filha, sobrinha e prima de professoras de piano, mas tudo que sei tocar são palavras, embora seja mais hábil em tirar sons de seus sentidos que propriamente de sua sonoridade. Não obstante minha incapacidade para debulhar qualquer instrumento, minha vocação musical é o canto, mas ainda não tomei vergonha na cara para ir estudar técnicas vocais, embora a vergonha apareça em minhas bochechas quando canto em público. No entanto, tudo muda de figura se houver um piano em cena. Acompanhada por um, eu viro uma sem-vergonha, porque ele é tão mais importante, que fica mais em evidência que eu.
Seu som me conforta, como se as notas fossem todas estofadas e macias, formando nuvens onde consigo encostar a cabeça e soltar as preocupações.
Se mais pianistas povoassem o planeta, se pudéssemos ouvir com mais freqüência o piano imaginário que toca nossa intuição, se os acordes desse instrumento compusessem nossos sentidos, haveria mais poesia e sensibilidade no ar.
Quem dera ele musicasse o mundo, espalhando mais som àqueles que se recusam a ouvir até mesmo o pulsar de toda a sinfonia de vida que jaz dentro de si.
10 comentários:
É verdade, o som do piano é simplesmente fantástico... dá-nos uma calma, uma paz interior!
Não sei tocar, nunca tive jeito para a música mas gosto muito de ouvir.
Beijinhos
Sara Andrade
lá em cima do piano tem um copo de veneno...
lá em cima do piano, tem a musa de vermelho, que canta
lá nas teclas do piano, tem uns olhos de onze anos, na ponta do pé, desentendendo a partitura
ahhhhhhh, que lindo! :)
Puxa, se o Universo te ouvisse, seria uma bênção, ainda mais nessa terra da egüinha pocotó...
bjs
Lendo esse texto e o de baixo, tudo que posso concluir é que vc está apaixonada por um pianista! :)
Olha, Kandy, você me emocionou muito! Encerrei um trabalho agora. São 4h40 da madrugada. Querendo arejar a mente, vim para seu blog. Lendo o post de hoje, envolvido pelas lindas músicas, eu... sei lá... Difícil explicar. Pô, já começou com aquela bonita do Elvis! Que maldade! ;-) Sempre sou muito durão, sou o tipo que se emociona em cinema mas dificilmente chora... mas acredita que meus olhos chegaram a ficar molhados? Isso pra mim já é muito, viu! Você nem imagina o tamanho dessa proeza! Nossa, ler esses textos com músicas do tipo que eu gosto... (Sou muito seletivo para músicas, e prendo-me às antigas. E adoro as românticas.) Demais, demais! E mais gostoso se for de madrugada!!! Recomendo a todos! Isso tem o "Selo Glauco de Qualidade"! ;-) Ah, sim: eu me junto a Marmota para refletir sobre uma Kandy apaixonada por algum pianista... ;-) /// ["Sou filha, sobrinha e prima de professoras de piano, mas tudo que sei tocar são palavras, embora seja mais hábil em tirar sons de seus sentidos que propriamente de sua sonoridade."] Tocar palavras... Vou refletir sobre isso. Profundo. UM ESPECIAL 'PARABÉNS!'.
Que legal que ficou!Adorei esse negócio de colocar musiquinhas. Obrigada pela citação da tal prima pianista ...mas confesso que estou atualmente meio enferrujada. Tocar piano faz bem mesmo para a alma e o mais incrível é como você consegue traduzir a sensação que a gente tem ao tocar um instrumento, mesmo como vc diz, sem saber tocar nada.Mas vc toca palavras e muito bem! E talvez seja mais interessante, pois suas palavras levamos para qualquer lugar enquanto o meu piano é um pouco pesado...
Pergunta: a inspiração desses texto veio daquela nossa idéia ou a idéia veio do texto?
Kandy...
eu também tenho uma paixão por piano..
Precisamos criar vergonha na cara... você começar suas aulas de canto e retomar as minhas de piano.
E seu texto, novamente, esta maravilhoso.
Parabéns !!!
Como sempre seu texto está "perfect" !
beijoooooooooooooooooo
Uma de minhas frustrações, não saber tocar piano... Mas tudo o que vc escreveu sobre o piano é perfeito. Se um surdo ler seu texto certamente ele "ouvirá" o som tão belo de um piano.
(PS1: Tom Jobim estaria fazendo 80 anos em 2007, e era um dos grandes ao piano)
(PS2: Maravilhoso seu "rádio". Depois me ensina!)
Kandy,
Eu sei que estou te devendo Claire de Lune ao piano, mas a partir de agora, você fica me devendo também uma música cantada, acompanhada por eu mesmo (e não adianta ficar vermelha !). Escolha a música e me avise !!
Beijos ...
Ps.Adorei o texto. Serviu como momento de reflexão.
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