Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa
Todos os anos eu vou à missa de Santo Antonio numa tímida igrejinha aqui perto de casa. Depois da missa sempre tem uma procissão. É, na metrópole mais desenvolvida do país, ainda existem bairros de vizinhança amigável, de crianças brincando na rua com traves improvisadas com pares de chinelos, de igrejinhas pequenas com procissão seguindo o santo.
Eu vou à missa porque simpatizo com Santo Antonio, que prefiro chamar de Santo Antonio de Lisboa — minha parte portuguesa falando mais alto. Mas não é só por isso que sigo a procissão com uma vela simples acesa iluminando o caminho. Não sou movida pela esperança de que o santo me ajude a casar, embora esse seja o motivo principal de a maioria das mulheres lá irem. Eu simplesmente gosto desse santo, porque ele me ajuda a achar as coisas perdidas, me ouve com uma paciência de Jó apesar de ser Antonio, tem aquele olhar complacente difícil de encontrar hoje em dia. Além disso, eu sou afeita a tradições e confesso adorar o caráter cultural que as procissões têm. Elas mostram mesmo a alma das pessoas.
Quando estive em Portugal, por exemplo, terra desse santo Antonio, pude visitar Fátima, onde há a Procissão das Velas. À noite, com tudo escuro, aquele mar de gente reza junto o terço, cada dez ave-marias em uma língua diferente, que é para agregar todos os povos que por lá passam. E todo mundo anda com uma vela na mão. A mistura cultural e a união de pessoas provenientes de cantos tão longínquos uns dos outros é tão emocionante quanto o visual de tudo aquilo: luzinhas cintilantes mostrando corações tão acesos.
Pois eu lá, comovida com tudo, obviamente quis participar da procissão. Mas eu não tinha vela. Estava com cinco euros no bolso, o que dá para comprar um monte delas. Minha ingenuidade brasileira fez-me crer ser possível adquirir a vela, receber o troco e ainda dar um sorriso amigável a alguma portuguesa simpática que as estivesse vendendo. Mas lá em Fátima as velas ficam em caixas de acrílico abertas, ao lado das quais há um vão, como a abertura de um cofrinho, onde são colocadas as moedas para pagá-las. O valor de uma era algo como trinta centavos de euro, o que significava que a nota que eu tinha no bolso era muito. No lugar onde as velas ficavam à venda não havia qualquer tipo de fiscalização, câmera, pessoas vigiando ou conferindo se o valor depositado correspondia mesmo à quantidade de velas tiradas das caixas. Santa honestidade!
Fiquei maravilhada com aquilo: só faltou cair de joelhos para agradecer o contato com a civilização. Entretanto, fiquei mesmo sem vela diante da impossibilidade de obter troco. Não que a lindíssima procissão não valesse uma vela superfaturada, mas é que a conversão para reais travou minha fé.
Pude me redimir de ter ido a uma procissão de velas sem uma vela em outra procissão, desta vez na cidade natal do meu pai, onde fiquei uma semana. O patrono da cidade, São Sebastião, estava sendo festejado justamente quando de minha passagem pela aldeia. A festa é linda. A procissão é de verdade. Nunca andei tanto na minha "imaculada" vida. Lá, as pessoas se comprometem com o propósito da procissão, levam a sério de um jeito que emociona estrangeiros, dedicam-se a tornar tudo bonito, organizado e inesquecível.
No entanto, todo santo ano eu me decepciono quando, aqui em São Paulo, vou à missa de Santo Antonio. Não com o santo nem com a procissão em si, mas com as pessoas. A maioria é de um egoísmo de irritar qualquer cristão, até os não praticantes. Talvez por isso precisem freqüentar a missa, ir à igreja, pedir perdão ou o que for. Mas já era para terem aprendido, não?
A impressão que me dá é que as pessoas só seguem a procissão porque é apenas depois dela que são distribuídos os famosos pães bentos de Santo Antonio, comumente tidos como fonte inesgotável de abundância até o próximo 13 de junho. A tradição diz que se deve deixar um pedaço daquele pão onde se guardam os mantimentos, para que nunca falte comida. Reza a história — e o padre — que o pão de Santo Antonio simboliza o pão que Jesus dividiu com os apóstolos na Última Ceia, isto é, representa a partilha.
Dividir é tudo o que aquelas pessoas não fazem. Terminada uma procissão onde só meia dúzia acompanha a reza enquanto o restante da centena fala da novela, reclama do trajeto, presta atenção no carro da CET interditando as ruas, reclama da fome, olha para as placas de vende-se dependuradas em qualquer portão, brinca de colocar fogo no copo de plástico que protege a vela, faz-se um tumulto ao redor do que era para ser um andor — os tempos modernos demandam que o santo ande de carro, coitado.
Pois aquela bendita gente depena o pobre do santo. Não sobra uma flor para contar a história. Arrancam tudo como se aquilo fosse prover milagres, suprir necessidades, arranjar casamentos hollywoodianos com homens estonteantemente belos, bons, honestos e românticos. É, faz mesmo bem acreditar em milagres.
E a partilha, a comunhão, o olhar o próximo e dividir com ele, tudo isso fica na promessa. As pessoas se engalfinham com saquinhos plásticos nas mãos pegando quantos pães o desespero e a falta de educação permitirem. Não olham para trás, não levam em consideração a existência de outras pessoas, não têm sequer vergonha daquela insanidade toda. Os mais pacientes, que ficaram esperando sua vez com uma civilidade d'além-mar e atitude cristã, acabam sem pão. Justo eles, que saberiam, como ninguém, multiplicá-lo em tantos pedaços quantos fossem necessários para satisfazer a todos.
Não sei se é ignorância ou egoísmo demais abraçando a alma desses pobres de espírito. Sei que é preciso ser santo para continuar perseverante na crença de que elas um dia serão de fato catequizadas, introjetando, independentemente da religião que escolherem, a máxima que salvaria o mundo de todo tipo de infortúnio: "ama o próximo como a ti mesmo".