
A mãe está lendo o jornal, sentada no sofá, enquanto a filha de sete anos brinca no tapete da sala com uns bloquinhos coloridos. Com seu raciocínio a mil, de repente a menina pergunta:
— Mãe, a gente vamos no shopping amanhã?
— A gente não vamos, filha, nós vamos.
— Nós quem?!
— Ué, eu, você e seu pai.
— Então, mãe, a gente!
— Eu sei, filha, mas é que com a gente não se usa “vamos”, mas “vai”.
— Mas eu, você e o papai não é a gente?
— É.
— E você não falou “eu, você e seu pai”?
— Falei.
— Então, é a gente vamos, oras!
— Filha, a gente e nós é a mesma coisa, mas um é vai e o outro é vamos, entendeu agora?
— Não. Se é a mesma coisa por que é diferente?
— Ai, bendita hora que te comprei esse joguinho de montar. Isso tá mexendo com a sua cabeça! — a mãe se esconde atrás do jornal, agora totalmente aberto.
— Mãe — a menina começa a puxar a barra da calça da mãe —, “a gente” não é duas palavras?
— A gente são duas palavras, Maria Eduarda!
— Olha aí! Tá vendo!? Como é a gente vai se agora é a gente são?!
A mãe começa a se mexer no sofá. Coloca o jornal de lado, ajoelha no tapete e olha firme para a garotinha, falando manso (muitas mães, quando não sabem as respostas, espelham a ignorância nos filhos, na tentativa de se safarem da situação):
— Duda, meu amor, a gente são duas palavras. Como é mais de uma palavra, a gente usa “são”.
— Então, falei certo: a gente são duas palavras, a gente vamos... Nós é uma palavra, então é vai: nós vai, né?
— Filha, presta atenção... — a mãe coça a cabeça.
— Presta atenção você, mãe! Você tá me ensinando errado... eu já sei contar faz tempo! Dois é mais que um.
— É, você tem razão. Vou tentar te explicar de outra forma — agora ela respira fundo, conta até dez mentalmente, se ajeita sobre as pernas, coloca o cabelo atrás das orelhas com as duas mãos.
— Alô-ô, tô esperando...
— Então, filha, olha só: a gente e nós são pessoas, certo?
— Que pessoas?
— Não importa. Pessoas são pessoas e pronto acabou. A gente são muitas pessoas, nós, a sociedade, entende?
— Sociedade é um conjunto de nós e de a gentes, então?
— Não, quer dizer, sim... A gentes? Que raio é isso?! Bom, voltando... as pessoas fazem parte da sociedade. Quando você diz “a gente”, embora esteja pensando em mais de uma pessoa e tenha dito duas palavras, precisa falar “vai”. Quando fala “nós”, mesmo sendo uma palavra só, precisa falar “vamos”.
— Ah, é ao contrário? É como se a gente valesse menos que nós?
— Nós e a gente são a mesma pessoa, filha de Deus!
— Ih, mãe, acho que você ficou louca. Primeiro, eu sou sua filha, não de Deus. Depois, eu sou uma pessoa só. E nós não era a tal sociedade? Como é que pode ser a gente?!
— Ai, Jesus! — a mãe bufa. — Escuta: é assim porque tem uma coisa chamada Gramática que diz que é assim.
— Ai, que Gramática burra! Nem sabe contar! Ela, então, é mais importante que nós que é a gente? Por isso a gente precisamos obedecer?
— A gente precisa obedecer, Maria Eduarda! Brinca aí, vai, brinca...
Silêncio. A mãe, achando que a filha tinha finalmente entendido o espírito da coisa, levantou-se do tapete e voltou a pegar no jornal. Ainda de costas para a filha, ouviu:
— É por isso que todo mundo só fala eu eu eu toda hora. Ninguém nessa tal sociedade entende o nós — e continuou montando seus bloquinhos.
— A gente são duas palavras, Maria Eduarda!
— Olha aí! Tá vendo!? Como é a gente vai se agora é a gente são?!
A mãe começa a se mexer no sofá. Coloca o jornal de lado, ajoelha no tapete e olha firme para a garotinha, falando manso (muitas mães, quando não sabem as respostas, espelham a ignorância nos filhos, na tentativa de se safarem da situação):
— Duda, meu amor, a gente são duas palavras. Como é mais de uma palavra, a gente usa “são”.
— Então, falei certo: a gente são duas palavras, a gente vamos... Nós é uma palavra, então é vai: nós vai, né?
— Filha, presta atenção... — a mãe coça a cabeça.
— Presta atenção você, mãe! Você tá me ensinando errado... eu já sei contar faz tempo! Dois é mais que um.
— É, você tem razão. Vou tentar te explicar de outra forma — agora ela respira fundo, conta até dez mentalmente, se ajeita sobre as pernas, coloca o cabelo atrás das orelhas com as duas mãos.
— Alô-ô, tô esperando...
— Então, filha, olha só: a gente e nós são pessoas, certo?
— Que pessoas?
— Não importa. Pessoas são pessoas e pronto acabou. A gente são muitas pessoas, nós, a sociedade, entende?
— Sociedade é um conjunto de nós e de a gentes, então?
— Não, quer dizer, sim... A gentes? Que raio é isso?! Bom, voltando... as pessoas fazem parte da sociedade. Quando você diz “a gente”, embora esteja pensando em mais de uma pessoa e tenha dito duas palavras, precisa falar “vai”. Quando fala “nós”, mesmo sendo uma palavra só, precisa falar “vamos”.
— Ah, é ao contrário? É como se a gente valesse menos que nós?
— Nós e a gente são a mesma pessoa, filha de Deus!
— Ih, mãe, acho que você ficou louca. Primeiro, eu sou sua filha, não de Deus. Depois, eu sou uma pessoa só. E nós não era a tal sociedade? Como é que pode ser a gente?!
— Ai, Jesus! — a mãe bufa. — Escuta: é assim porque tem uma coisa chamada Gramática que diz que é assim.
— Ai, que Gramática burra! Nem sabe contar! Ela, então, é mais importante que nós que é a gente? Por isso a gente precisamos obedecer?
— A gente precisa obedecer, Maria Eduarda! Brinca aí, vai, brinca...
Silêncio. A mãe, achando que a filha tinha finalmente entendido o espírito da coisa, levantou-se do tapete e voltou a pegar no jornal. Ainda de costas para a filha, ouviu:
— É por isso que todo mundo só fala eu eu eu toda hora. Ninguém nessa tal sociedade entende o nós — e continuou montando seus bloquinhos.