30 julho 2006

Tudo em família

Pai: — Coloque mais macarrão pro seu amigo, filho.
Filho: — Acho que ele não quer mais macarrão, pai.
Amigo: — É, não precisa se incomodar, não. Eu já peguei, obrigado.
Mãe: — Você está me fazendo uma desfeita, filho, pega mais, pega...
Amigo: — Obrigado mesmo, mas eu estou satisfeito, viu, já peguei...
Avô: — Ô, filha, deixa o rapaz, não tá vendo que ele não quer mais?
Mãe: — Ai, pai, também não precisa falar assim, né? Vai ver o moço tá acanhado, tem vergonha de pegar mais...
Amigo: — Não, não, não estou acanhado, é que não quero mais mesmo.
Mãe: — Por quê? Você não gostou do meu macarrão?
Filho: — Caramba, mãe, se liga, você tá deixando ele sem graça assim, ele já disse que não quer!
Pai: — Não fala assim com a sua mãe, filho!
Avô: — E você não fala assim com o meu neto, cáspita!
Amigo: — Olha, eu não quero causar discórdia, não precisa brigar, eu pego mais...
Mãe: — Pegar mais macarrão só por causa disso é uma desfeita maior que não pegar por não querer mais!
Pai: — Deixa que eu resolvo. Dá aqui o teu prato de uma vez que eu te sirvo e pronto!
Amigo: — Tudo bem. Mas põe só um pouquinho, por favor, é que eu realmente estou satisfeito.
Avô: — Se está satisfeito, por que é que tá pegando mais? A gula é um pecado capital, sabia?
Mãe: — Deixa o moço, pai, que implicância!
Avô: — Implicante é você, que fica enfiando macarrão goela abaixo nos outros. Que coisa mais feia isso! Não te deram educação, não?
Pai: — Olhe lá como o senhor fala com a minha esposa!
Filho: — E o senhor não grita com o vovô, ele é idoso!
Avô: — Eu já vou te dizer quem é o velho!
Amigo: — Gente, gente, olha aqui, ó, eu tô comendo tudo, está uma delícia! Viram só? Podem parar de discutir...
Pai: — E você não se mete que nem da família é!
Filho: — Pai, que grosseria, ele é meu convidado!
Avô: — É isso mesmo! Um convidado muito do falso, isso sim! Esse macarrão tá intragável e ele não teve coragem de dizer... por isso não quis mais!
Amigo: — Não é verdade, está uma delícia!
Avô: — Tá me chamando de mentiroso?
Mãe: — Se disser que meu macarrão tá ruim você vai ver só!
Filho: — Gente, olha a situação que vocês deixaram o cara... pega leve, pô!
Pai: — Come logo essa porcaria e pronto! Caramba!
Mãe: — Porcaria?! Você tá chamando o meu macarrão de porcaria?! Eu passo a manhã inteira do meu domingo cozinhando pra vocês pra ouvir isso? Ai, é o fim!
Amigo: — Senhora, senhora, olha, não liga pra eles, eu tô comendo tudo, está divino, de verdade. Está tão maravilhoso que... a senhora não teria um pãozinho aí pra eu raspar o molho do prato?
Avô: — Além de tudo é mal-educado! Raspar o molho do prato com pão é falta de educação!
Filho: — Vô, agora o falso é o senhor. Lá na Itália todo mundo faz isso, o senhor faz isso... e agora tá chamando meu amigo de mal-educado?! Ah, assim não dá, viu!
Pai: — Come logo isso tudo e pronto! Será que toda refeição é isso?! A gente precisa discutir?!
Mãe: — Ai, que desconsolo! Ninguém gostou do meu macarrão.... buááááááááá
Amigo: — Dona, dona, não chora. Pega aqui meu guardanapo pra enxugar suas lágrimas. Eu como tudo, a travessa inteira, mas pára de chorar.
Avô: — Porca miséria, mas que puxa-saco!
Pai: — E o senhor é um ranzinza!
Mãe: — Você tá ofendendo meu pai!
Filho: — Eu não como mais! Bando de loucos! E nunca mais trago ninguém aqui! Que vergonha!
Avô: — Isso, desconjura a família que te criou, seu desnaturado! E não bate o garfo no prato desse jeito que é falta de educação!
Amigo: — Gente, obrigado pelo almoço, de coração, mas acho que já vou indo, viu...
Mãe: — Ah, mas não vai mesmo! Sem comer a sobremesa?! E o bolo inteirinho que eu fiz pra você? Tá na geladeira, com recheio e tudo! Peraí que eu já pego. Filho, segura o seu amigo aí pra ele comer a sobremesa!
Pai: — É isso mesmo! Que horror sair assim, sem sobremesa e no meio da refeição! Isso é falta de educação!
Avô: — Pode ir parando aí! Quem vem à minha casa nunca sai sem a sobremesa. Tá pensando o quê?
Amigo: — Já sei, vai dizer que é falta de educação. Mas é que... eu não posso porque... sou diabético!
Pai: — O quê?! Filho, como é que você me traz um diabético pra almoçar e não avisa a gente? Agora o moço vai ficar sem sobremesa! Isso é inadmissível!
Filho: — Eu sabia que ia sobrar pra mim!
Avô: — Sobrar? Sobrar o quê? O esfomeado do seu amigo comeu tudo, não sobrou foi nada!
Mãe: — Olha o bolo aqui, vamos acalmar os ânimos pra comer, vamos...
Amigo: — Eu até que gostaria, mas eu não posso, entenda, meu diabetes, sabe, eu não posso comer doces e...
Mãe: — Ah, mas meu bolo é diferente, não vai fazer mal. Olha, come aí, come, eu já coloquei pra você, veja, experimenta, experimenta...
Filho: — Vocês vão matar o cara!
Avô: — Pois já passou da hora!
Mãe: — Pai!
Pai: — Come logo esse inferno de bolo!
Mãe: — Não fala assim do meu bolo!
Amigo: — Tudo bem, vai, eu como, mas só uma fatiazinha... E isso se vocês me prometerem que essa brigaiada acaba aqui! SEM CAFÉ, ENTENDERAM?!



24 julho 2006

Romântica incurável

Choro em filmes água-com-açúcar (chorar é modo de dizer. Eu me debulho em lágrimas mesmo, daquelas de lavar a alma). Derramo-me em despedidas, em casamentos, em dramas familiares. Um choro discreto, mais emocionante e saudoso do que propriamente triste.

Ouço trilha sonora mesmo no silêncio, como a personagem da Barbra Streisand em “O espelho tem duas faces”, que sempre imaginava uma ópera cantada pelo Pavarotti fosse qual fosse a situação amorosa. Quando essa trilha sonora existe de verdade então, ela me comove de várias formas: pelo ritmo, pela letra ou até pelas associações que faço com a música.

Escuto a mesma mil vezes sem enjoar. Assisto aos mesmos filmes quinhentas vezes, rindo e chorando sempre nas mesmas cenas, porque elas me tocam sempre nos mesmos pontos.

Sonho acordada, sinto cheiro de rosas sem flores por perto, venero gentilezas, impressiono-me com o cavalheirismo, aprecio demonstrações de carinho, vejo possibilidade em tudo e sempre tudo colorido e perfumado, como se flutuasse constantemente em uma brisa de ternura.

Mando cartões de Natal todos os anos, personalizadíssimos, escritos e feitos a mão em madrugadas sonolentas, mas com desejos sinceros de boas vibrações por pura convicção de que elas existem e operam milagres. Escrevo o que quer que seja sempre com a alma, com uma intensidade que assusta até a mim mesma.

Para mim, não há lugar para a má vontade, porque tudo precisa ser feito com amor. Do contrário, melhor nem fazer. Penso, penso e penso em muitas coisas ao mesmo tempo, sempre com um pingo de esperança misturado a um tonel de incertezas. O interessante é que, em mim, esse pingo de esperança nunca se dilui ou se evapora. Ao contrário, ele contamina todo o resto e faz voarem todos esses pensamentos, assoprando-os como bolhas de sabão em sonhos que se perdem em mim mesma.

Ajudo o próximo como gostaria de ser ajudada. Dôo-me inteira, porque de metades já chega o mundo, dividido bestamente em hemisférios. Nunca espero nada em troca, porque ser bom para os outros é ser bom a si mesmo, o que dá um brilho todo especial ao coração.

Vejo tudo belo e fico profundamente triste quando a realidade é mais cruel que o poder do meu olhar. Não sei lidar com injustiças porque minha crença no bem vai além de mim mesma. Hoje meu otimismo me surpreende, assim como sorrisos sinceros, dizeres espirituosos, demonstrações constantes de bom humor e olhares que dizem tudo.

“Tudo o que você faz é de uma vibração intensa”, disseram-me uma vez. Fiquei pensando nisso com uma certa curiosidade. Ué, mas não deveria ser assim com todo mundo? Pra que ser comum se podemos ser autênticos?

Acho que não. Só os românticos incuráveis têm esse dom. Ser intenso em tudo, colocar profundidade em tudo, ver todas as dimensões, colocar-se no lugar, sofrer de verdade, chorar de verdade, sorrir de verdade, entristecer-se sem vergonha de parecer piegas e melancólico demais. Sentir demais tudo com uma sinceridade cristalina. É bom e ruim, porque é bastante dolorido desenvolver a sensibilidade além da média.

Mas, para quem já é esquisita por natureza aos olhos alheios, isso é só mais um detalhe. Imenso, gigantesco, mas que me torna ainda mais romanticamente incurável — e especialmente diferente. Essa é a graça.


17 julho 2006

A história de Judite


Judite não sabia o que fazer. Queria alguém que a fizesse rir, alguém que pudesse abraçá-la sem perguntar nada. Mas o ser humano é curioso por natureza, isso ela sabia. Por que está chorando? Por que está assim? Por que não sai um pouco? Mas fazê-la sorrir que era bom, nada.

Judite era esperta. Esperta e triste. Vivia melancólica pelos cantos, esperando o tal alguém que a fizesse sorrir, que pudesse abraçá-la. Não se olhava no espelho porque já estava cansada de ver a si mesma. Aquela companhia como reflexo não era o que ela desejava.

Judite era a desesperança em pessoa. Só sabia querer, não agia. Isso a impedia de ver além de sua própria imagem e a deixava cada vez mais distante de si mesma.

Judite chorava, inundando a sala. Havia lenços de papel por toda a casa da Judite. Eles a entendiam, ela pensava.

Judite já não assistia mais tv, não lia mais o jornal, não achava nada interessante. Vestia apatia, respirava solidão.

Judite um dia ouviu uma música vinda do vizinho. Era uma melodia linda, suave, confortadora. Esboçou um sorriso e lentamente foi sendo abraçada pela poesia daquele som.

Judite começou, daquele dia em diante, a prestar mais atenção às coisas, querendo ouvir mais. E vieram outras músicas ainda mais belas.

Judite se surpreendeu.

Judite estava encantada. Começava a ser fisgada pela vida com a isca das notas musicais. Deixou acabarem os lenços de papel e parou de chorar. Quebrou o espelho, vestiu uma roupa limpa e cheirosa, respirou fundo e saiu.

Judite saiu de si mesma.


13 julho 2006

1950


Para o tio Carlos, que me deu a idéia...

— Alô?
— Boa tarde. Por favor, aí é da casa do senhor Antônio Carlos?
— Sim, é. Quem está falando, por favor?
— Aqui é a Olívia, do Sarmento.
— Nossa, que nome diferente! Pois não, dona Olívia do Sarmento, posso ajudá-la?
— Não, não, você não entendeu. Sarmento não é meu sobrenome, é um lugar.
— Lugar?
— É, é o nome de um colégio.
— Ah! Bem, que seja. O que posso fazer pela senhora?
— É um assunto delicado, eu receio. Você pode me responder uma pergunta?
— A senhora está fazendo alguma pesquisa, por acaso? É que eu estou com um pouco de pressa e...
— Não, não, não se trata de pesquisa. Você é o quê do senhor Antônio Carlos?
— Filha dele.
— Ah! Desculpe o jeito da pergunta, mas... o seu pai ainda está vivo?
— Quê?! Ah, bem, está sim. Tudo bem que eu não entendi esse “ainda” aí da sua pergunta. Significa por acaso que ele passou da idade de estar vivo?
— Não, absolutamente. Ufa, que alívio! Sabe o que é, é que eu estou ligando para a turma de 1950 do colégio Sarmento, sabe? Seu pai estudou nessa turma e eu queria fazer um reencontro dessas pessoas. O problema é que a maioria dos ex-alunos que eu consigo localizar já morreu, sabe?
— Não, não sei. Morreram? Que horror!
— Pois é. Mas que bom que seu pai está vivo, acho que ele vai gostar de ir à reunião. Nossa, tão emocionante! Imagine você, a turma de 1950!
— É, dona Olívia do Sarmento, eu faço uma idéia. A reunião vai ser onde?
— Ainda não está planejado porque preciso saber primeiro quantas pessoas sobreviveram, ou melhor, quantas irão. Mas você acredita que uma outra moça, filha de um ex-aluno pra quem liguei, teve a coragem de perguntar se a reunião não seria num centro espírita, porque era o único jeito de convocar os defuntos?!
— Ai, cruz-credo!
— Então, você poderia falar para o seu pai que eu liguei?
— Claro, a senhora deixe o seu telefone, por favor, que ele liga de volta.

+ + + + +

— Pai, ligou para o senhor uma tal de Olívia do Sarmento.
— Não conheço ninguém com esse nome.
— Não, não, o senhor não entendeu. Sarmento é o nome de um colégio.
— Colégio? Mas eu já passei da idade escolar faz um tempo... No mínimo pegam o nome da gente na lista telefônica pra sair oferecendo curso...
— Pai, Sarmento é o nome do lugar onde o senhor estudou! Eu, hein!
— Eeeeeeuuuuuu? Quem te falou isso?
— A tal da Olívia do Sarmento, ué. Aliás, ela também ficou muito feliz pelo senhor ainda estar vivo. Disse que todo mundo pra quem ela liga da turma de 1950 já morreu. Bom, né?
— Ô louco! Como é que pode ser bom?! Coitados! Será que morreram de morte morrida ou de morte matada?
— Isso eu não sei, mas falei bom porque isso é sinal de que o senhor está aí, firme e forte, pra contar a história.
— Mas eu nem me lembro dessa gente! Não me lembro sequer do nome desse colégio! Quem dirá contar história. Posso é contar umas piadas, serve?
— Mesmo assim, eu se fosse o senhor iria a essa reunião!
— E vai ser onde? No cemitério?! — e caiu na risada.
— É, pai, acho que entendi por que o senhor é um sobrevivente da turma de 1950...
— Tudo bem que eu não era lá um aluno exemplar, mas também não boiava nas aulas pra você me considerar um náufrago a ponto de me chamar de “sobrevivente”!
— O senhor é bem-humorado e espirituoso.
— A tal da Olívia do Sarmento achava que eu já era espiritual — e caiu na risada de novo.
— Que roupa o senhor vai usar nessa reunião?
— Pelo andar da carruagem, acho melhor eu ir fantasiado de Gasparzinho, o fantasminha camarada... para me reenturmar, entende? Vai ser uma aparição e tanto! Cai como uma luva para esse evento! Pensando bem, vai ser um assombro essa reunião, né? — ria feito doido — Eu e a Olívia do Sarmento com um bando de almas penadas. Hi, hi, que divertido! Vou poder finalmente saber como é que é o outro mundo! Já vou chegar falando: e aí, turma do além, há quanto tempo, hein?
— Isso é o que eu chamo de reviver os velhos tempos! Ou é melhor dizer desenterrar o passado? Só falta ela marcar isso no Dia das Bruxas... já pensou?
— Aí, minha filha, vai ser literalmente de arrepiar!

E os dois morreram de rir. Ops, modo de dizer, modo de dizer...


09 julho 2006

Lendo o mundo


A gente aprende a aprender em casa. Pelo menos foi assim comigo. Sou perguntadeira. Meus pais, respondedores de primeira.

Lembro-me como se fosse hoje de quando aprendi a ler. Nauseada pela ânsia de juntar aquelas letras todas que passavam apressadas enquanto andávamos de carro, eu perguntava: “Nossa, como é que vocês conseguem? Eu fico tonta!”. Meu pai: “Calma, você não precisa ler tudo o que aparece pela frente”. Então, eu tapava os olhos com as mãos, porque fechá-los era pouco. Eu não me continha. Primeiro me ensinam a ler e depois me falam que não é pra ler?! Vai entender a cabeça dos adultos!

Nem preciso dizer que meu primeiro filme legendado foi frustrante. As linhas eram muito longas e eu não me contentava em mover apenas os olhos. A cabeça ia pra e pra também. É, ler, definitivamente, era uma tortura.

Mas, quem diria! Se a vocação de fato existe, eu demonstrei a minha precocemente. Eu dizia “cisnei” porque fazia o paradigma com Disney, que, pra mim, nem com letra maiúscula era. Meu eu infantil achava que disney era um lugar comum, não sobrenome de gente.

No dia em que descobri que testemunha não começava com D, quase caí pra trás. Pra quem sempre “guspia”, o cuspe foi difícil de engolir. Minha mãe sempre me corrigia quando eu perguntava se íamos ao isológico. Na minha cabeça de criança que tudo compara, esse lugar não era nenhum bicho-de-sete-cabeças: um mero prefixo iso- com a palavra lógico. Pra quem conhecia isopor e isolar, isológico era o mais lógico, obviamente. Mas minha mãe dizia: “eu disse, Kandy, que é zoológico”. Errei outras vezes não por ignorância ou teimosia. Era por convicção mesmo. Como ninguém pronuncia os dois o, que outra palavra começava com zo? Desde criança a gente aprende a desconfiar do que é esquisito...

Mas só fui descobrir que tinha um i no fim da imundície na faculdade. Vergonhoso. Mas tanta palavra termina com ice que esse ície até hoje não me convence. Outra esquisitice.

Ainda criança, um dia comentei: “pai, eu não aprendi na escola essa letra da globo”. Eu olhava, olhava e não entendia que aquilo era um G grudado no L inclinadinho. É mais ou menos como os pingüins da Antarctica que parecem uma carinha ou o C branco do Carrefour que todo mundo como uma seta azul. Eu enxergava a Globo com uma letra dela que não tinha no meu alfabeto.

Meu alfabeto, diga-se de passagem, era bem diferente mesmo. Fui alfabetizada com a cartilha Caminho Suave, que trazia de um tudo, exceto o K de Kandy e o Y do meu final. Naquela cartilha, eu sempre me senti incompleta.

Nela, a lição do fá-fé-fi-fo-fu tinha uma faca desenhada na letra F. Sei por quê eu associava o som do f com a letra v. Ainda hoje, quando minha mão vai mais rápido que o pensamento, troco um pelo outro. É tanta faca que sai vaca que eu nem te conto!

Não me lembro a idade que eu tinha quando perguntava essas coisas. Mas me lembro perfeitamente de que nunca fiquei sem resposta. Não para as indagações lingüísticas; para tudo.

Por que alguns fios dos postes têm essas bolinhas no meio?”, “Para os aviões não baterem neles quando pousarem ou decolarem, Kandy”. “Como a gente faz para sair de dentro da Terra?”, “a gente não está dentro da Terra, Kandy, mas em cima dela”. Isso eu levei um certo tempo para entender, confesso. Como via sempre aquelas gravuras do planeta todinho azul, achava que aquela cor era o céu em volta da gente, porque, na figura, o resto era preto e sem forma. Na minha cabeça isológica, o céu era mesmo redondo, de um horizonte a outro, e a gente morava dentro do globo, um desses simples, sem letra estranha grudada e inclinadinha.

Por essas e outras é que a gente aprende a aprender em casa. Sem as pacientes respostas que meus pais sempre me deram, eu não teria seguido a tal da vocação. Hoje mesmo, vinte e poucos anos depois disso tudo, ainda perguntei pro meu pai enciclopédico enquanto assistíamos a tv: “o que é aquilo oval atravessado por uma reta que a gente sempre de cima do Cristo Redentor?”. “É o jóquei clube do Rio de Janeiro, Kandy”.

Não adianta. Eles sempre sabem tudo. Pra minha sorte.


02 julho 2006

Quebrando os paradigmas

Para Neto (enchanté!), virtualmente uma amizade real

Ela entrou no avião sentindo um friozinho na barriga. Embora já tivesse viajado sozinha, aquela era a sua primeira viagem internacional e, para piorar, para o outro lado do oceano. Não tinha medo de o avião cair no meio do Atlântico, pois sabia nadar e pretensiosamente achava que sobreviveria à queda. Tinha medo era da vastidão do mundo, do desconhecido e de como aquilo tudo poderia influenciar sua vida, abalar sua segurança e modificar seus parâmetros, pois nunca mais se é o mesmo quando conhecemos alguém ou alguma coisa.

O frio na barriga ia demorar para passar, ela sabia. E, logo, logo, a ele seria adicionada aquela sensação incômoda no ouvido provocada pela mudança de altitude. Como, não raro, as alterações físicas são um indício de alterações emocionais que estão por vir, era natural preparar-se para ser surpreendida. O novo sempre assusta no princípio.

Começou a procurar por seu assento. Havia solicitado, na agência, que a pusessem à janela, mas, no
check-in, viu que a tinham colocado em um daqueles quatro assentos centrais. Em meio àquela balbúrdia de gente conversando, malas sendo acondicionadas aqui e ali, pacientemente ela foi pedindo licença para tentar chegar logo a seu destino. Curioso isso... Como podia procurar por algo que nem ela ainda conhecia?

Mas, como ser ímpar tem lá suas vantagens, foi fácil encontrar um único assento desocupado no meio. Ajeitou a bagagem de mão no compartimento próprio para isso e já estava pegando o cobertor deixado em seu assento para colocá-lo junto à bagagem quando o rapaz já sentado ao seu lado a interrompeu com um calmo e sorridente “é meu”. Ele lia, interessado, um guia sobre Roma. “Vai para a Itália”, ela obviamente deduziu.

Sentou-se observando tudo. O assento até que não era ruim: de lá dava para ver muito bem a televisão, e o banheiro, que ela nem chegaria a usar, era próximo.

Talvez por terem de passar as 9 horas seguintes lado a lado, o rapaz virou-se para ela e, numa acolhedora demonstração de simpatia, perguntou algo como “está indo pra onde?”. Ela timidamente respondeu: “Pra Portugal. Você, pelo visto, vai pra Roma, né?”.

Pensando bem, aquele assento ali, no meio, dava de dez no da janela. O frio na barriga foi passando. O medo do desconhecido converteu-se em conforto. Sem que eles percebessem, as coisas já começavam a mudar de uma maneira inusitada: até então, nunca haviam conhecido alguém a bordo de um avião.

Embora tivessem destinos diferentes, haviam se encontrado no meio do caminho.