
Quando eu era pequena, meu avô materno me levava, junto com minhas irmãs e meu irmão, para passear de metrô. Era uma farra. Íamos e vínhamos na mesma linha várias vezes sem cansar. E ele lá, paciente, ouvindo os mesmos comentários a cada vez que víamos as mesmas coisas. Para ele, nada nunca era a mesma coisa.
Essa é uma das lembranças que tenho da infância. Durante os anos de faculdade, em que tinha de pegar o metrô lotado todo santo dia, freqüentemente me apanhava com essa memória invadindo a mente. Quem diria que aquele gostoso passeio de criança seria uma obrigação chata na minha idade adulta...
Meu avô era fotógrafo. Não desses chiques, com cartão com logotipo, placa na porta do estúdio e tudo. Meu avô não tinha estúdio nem ambição suficiente para chegar a ter um. Era mecânico de motos também. Mas, diferentemente do estúdio, moto ele tinha. Uma grande, de tanque vermelho, em cima da qual quantas e quantas vezes ia me buscar na escola. A mim e a meus irmãos. Todos de uma vez.
Brasílio Sgarbi era o nome dele. Eu sempre escrevi com s; ele, sempre com z. Dizia que o Brasil com s era com z quando ele nasceu e que, por isso, ele era com z também. Nunca averigüei isso, talvez por não aceitar sequer a possibilidade de tirar-lhe a razão... aquela coisa de neto que respeita demais os mais velhos. Teve pouco estudo, o suficiente para aprender sozinho a fotografar e a consertar motocicletas. Adorava comer banana, tinha umas manias engraçadas, retratava a família inteira em slides, filmava minha infância em rolos de filme que projetava na parede, atrás da porta do quarto, em algumas tarde de domingo, tinha uma garagem que cheirava a gasolina e uma Variant vermelho-cereja impecável, de pouco uso. Nos últimos anos de vida, com óculos emprestados, passava o dia assistindo à televisão, numa poltrona comum.
Morreu há 15 anos, tempo bastante para transformar a tristeza de sua ausência em suave saudade, em lembranças como as que conto aqui. Ultimamente, tenho me lembrado muito do meu avô.
Embora nunca tenha conversado com ele sobre fotografia, sei que ele nem imaginava que um dia as máquinas seriam digitais, que haveria Internet, msn, telefone celular, conversa em tempo real com o outro lado do mundo — e com imagem! Essas coisas certamente o fascinariam, ainda que tivéssemos de levar algum tempo para explicar-lhe como funcionam.
Então, cada vez que me deparo com o avanço tecnológico, principalmente no que se refere à imagem, lembro-me do meu avô, antigo, velhinho, com toda aquela parafernália que ele guardava em uma parede inteira cheia de prateleiras. Sinto-me a conexão dele com a tecnologia, e é uma sensação curiosa sentir-se ponte entre passado e futuro.
Qual não foi minha surpresa quando, tendo voltado de uma viagem à terra do meu pai, em visita aos meus ancestrais, algo que sempre tive vontade de fazer desde pequena sei lá por quê, vi que minha máquina digital recém-comprada e cujo manual fui lendo durante a viagem era capaz de tirar fotos belíssimas.
Não era a máquina. Era meu avô me ensinando que nada nunca é a mesma coisa e que precisamos mostrar aos outros o nosso modo de olhar...
Não estudei fotografia e ainda não sei consertar motocicletas. Não tenho cartão com logotipo nem ambição suficiente para ter um estúdio. Mas gosto de retratar a vida, embora tenha óculos próprios. Por isso, antes de ser Saraiva, eu sou Sgarbi.