29 setembro 2006

Coisa de pele...


Os dois estavam naquela fúria de hormônios. Resolveram juntá-los numa boa transa. Era roupa voando pra todo lado, os dois tropeçando nos móveis, derrubando objetos, rindo e beijando ao mesmo tempo. Mas, quando ela tirou a camisa dele, tudo parou.
— Pára, pára, pára tudo!
— Que é que foi? Fiz alguma coisa errada?
— Quem é ela?
— Quê?!
— Vai falando agora, seu sem-vergonha, salafrário, galinha!
Ele olha para os lados pra se certificar de que a conversa é com ele mesmo.
— Me explica o que tá acontecendo porque não tô entendendo nada!
— Muito conveniente, né, Paulo?!
— Ai, mulher tem cada coisa! Me explica, que ela é essa aí?
— Eu é que pergunto quem é essa piranha aí...
Ele olha para baixo e acaricia o lado esquerdo do peito.
— É a minha mãe...
— Ah, tá de sacanagem comigo, né?
— Bom, eu tava tentando, né, mas você mandou parar tudo e...
— Fala a verdade!
— Olha, Lucilene, eu sou muito tolerante, sabia? Você chamou a minha mãe de piranha, o que já é motivo de sobra pra eu te deixar falando sozinha, mas tô aqui, na maior boa vontade, e põe vontade nisso — suspira, olhando pra cima —, pra tentar fazer você entender que essa é a minha mãe...
— Assim bonitona, por acaso? Ah, conta outra!
— É, assim bonitona sim, senhora. Achava o quê? Que eu ia tatuar o rosto da minha mãe no peito com ela cheia de ruga e acabada?
— Mas tatuar a mãe?! Não dá para acreditar! Homem que é homem tatua uma coisa mais máscula, tipo um dragão, um tribal, cavalo, vulcão, uma águia, sei lá... ou um negócio mais pra natureza, sabe, como um tubarão, golfinhos ou uma anaconda se fosse o caso... até um beija-flor ficaria melhor que a sua mãe!
— Beija-flor, não, peralá! Beija-flor é coisa de viado, porque é tatuagem de mulher. Tatuei minha mãe porque ela me criou sozinha, tá sabendo, sozinha! Mora aqui, ó, no meu coração — vai batendo a mão no peito enquanto fala — e ninguém nesta terra vai conseguir tirá-la daqui!
— É, só cirurgião plástico, né, meu bem? Tudo certo, sua primeira justificativa foi péssima. Qual é o plano B?
— Que plano B? É a minha mãe, sim! Você tá achando o quê? Que eu tatuei o rosto de alguma ex minha? Tá louca? Acha que eu ia colocar uma qualquer aqui no meu peito, é?
— Ah, isso quer dizer que você me considera uma qualquer? Não me tatuaria, então?
— Lá vem você torcendo tudo! A gente nem tá falando disso!
— Homem é assim, ou é galinha ou tem complexo de Édipo!
— Quem é esse cara, Lucilene?! Hein? Te peguei, né? Você tá saindo com esse tal de Édipo há quanto tempo?
— Cala a boca, Paulo! Que ignorância! Édipo é — ia explicar o mito mas viu a oportunidade de se vingar daquela afronta — é o seu vizinho do décimo primeiro, é isso!
— Lucile-nê..., escuta, você não sabe mentir, a cobertura tá vaga faz tempo, ó... — começa a estalar os dedos. — sinal de que nem conhece Édipo nenhum, boba...
— Ah, Paulo, vá se catar, vai!
— Com Édipo ou sem Édipo, eu já disse que essa aqui no meu peito, linda e maravilhosa, é a minha mãe...
— E você acha que dá pra gente transar com essa, quero dizer, com a sua mãe assim, aí parada... Eu não curto relação a três, você sabe... Eu não consigo, Paulo!
— Ai, Lucilene, esquece isso. Olha, eu apago a luz, que tal, hein? — começa as preliminares novamente...
Não demora muito pra ser interrompido por um...
— Pára, pára, pára tudo!
— Haja saco, viu?! Que foi agora?!
— Não dá, Paulo. Mesmo no escuro eu sinto que ela fica me encarando... literalmente, né, porque você tatuou uma cara enorme bem em cima do seu coração. Isso me dá mil grilos na cabeça, sabe como é...
— É, sei. Isso aí nem mais é grilo, é um bando de gafanhotos mesmo... já deve estar pensando no dia em que casar comigo e minha mãe vier morar com a gente e...
— Ela vai vir?! — arregala o olho, nervosa e espantada.
— Eu tô dando exemplo, Lucilene, exemplo! Caramba, meu! Nem tô falando em casamento!
— Não tá?! — o olho fica ainda mais arregalado e ela, mais espantada.
Silêncio. Ele não sabe o que responder. Ela fica esperando ele se habilitar. A mãe ali, olhando tudo, com ar reprovador como quem cruza os braços e bate um dos pezinhos no chão repetidamente.
— Olha, Paulo, quer saber? Vai resolver o problema da sua carência materna com um psicólogo, viu? E, conselho de amiga, tá legal, apesar de você não merecer. Vou salvar seu futuro amoroso: na próxima transa que você conseguir, mesmo com a sua cantada incompetente, não tira a camisa nem por decreto, tá sabendo, nem por decreto! E passe bem!

Ele fica sem entender nada. Demora a tomar uma atitude. Se enrola no lençol e sai correndo pelo corredor, mas não consegue alcançá-la. A porta do elevador já havia fechado. Corre para a escada, prende o lençol na porta, continua correndo mesmo assim, a Lucilene é importante, é legal, ela vai entender uma hora. Lucilene, volta aqui, você também tem mãe! Desce os lances apressado e, ofegante, chega ao térreo. Sai pelado atrás da Lucilene, que a essa altura já vai longe na calçada pisando duro de birra. O portão do edifício trancou. Ainda no saguão, Paulo esbarra num morador que vem vindo carregando uns pacotes de supermercado. Fica novamente sem ação e, agora, também sem roupa. Precisa salvar a pele.
— É, oi, você é novo aqui? Não estranha, não, é que eu sou calorento, sabe... e tô.. tava... numa emergência. Ah, muito prazer — tira a mão que cobria a bunda e estende para cumprimentar. O outro declina o cumprimento; providencialmente, está com as mãos ocupadas. — Sou o Paulo, do nono.
— Ah, prazer, Paulo. Meu nome é Édipo, do décimo primeiro.



Saiba mais: Édipo, em grego, significa “pés inchados”, nome dado, na Mitologia Grega, ao filho de Laio, rei de Tebas, que, tendo sido advertido pelo Oráculo de Delfos de que um de seus filhos o mataria, abandonou a criança. Por ter sido encontrado, com os pés inchados, por pastores, Édipo recebeu esse nome. Como estava predestinado a matar o pai, fê-lo sem saber do parentesco. Édipo foi o único a conseguir decifrar o enigma da Esfinge e, por esse feito, recebeu o trono de Tebas e a mão de Jocasta, sua própria mãe, por quem se apaixonou sem saber que cometia incesto. Dessa união nasceram quatro filhos: Etéocles, Polinice, Antígona e Ismena, todos com destinos trágicos. Quando Édipo soube que havia matado o rei de Tebas e que se tratava de seu próprio pai, vazou os próprios olhos e foi expulso da cidade. Jocasta, envergonhada, enforcou-se. Depois de uma vida errante e de recusar-se a voltar a Tebas a pedido dos filhos, Édipo morreu em Colona, povoado de Atenas. Um oráculo previra que a cidade que tivesse o túmulo de Édipo seria eternamente protegida pelos deuses. Por isso é que os atenienses sempre venceram os tebanos. A Psicanálise baseia-se em vários mitos para explicar comportamentos humanos. O complexo de Édipo é um deles, tendo sido desenvolvido por Freud, segundo o qual trata-se do “conjunto mais ou menos organizado de reações afetivas, tanto amorosas quanto hostis, que uma criança sente em relação aos pais; desejo de relações sexuais que o filho sente pela mãe”. Popularmente, é a “disposição mental e comportamental inconsciente tida como procedente de uma ligação excessiva à mãe e por sentimentos de ciúme com relação ao pai”.


Fontes de consulta:
Houaiss eletrônico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. versão 1.05a
Dicionário de mitologia greco-romana. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1976.

7 comentários:

Anônimo disse...

huahuahuahua
Muito boa!!!
(Como sempre!!!)
bjs

Ricardo disse...
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Ricardo disse...

Não bastasse o texto primoroso, a história com timing perfeito, o humor maravilhoso, e o final surreal, ainda tem a nota de rodapé que nos brinda com cultura e conhecimento. Vc é incrível!!! Pena que demorou tanto tempo pra sair da casca! Parabéns!!!

Anônimo disse...

No lugar dela eu faria o mesmo...
A sogra é demais....

Anônimo disse...

Depois que uma namorada me beliscou por eu ter olhado umas sombras, não duvido de mais nada. rs

Gostei da "interferência" mitológica no texto, com bastante humor. Mais uma vez, biscoito fino aqui.

Bjs!

Livia Mata disse...

Tá vendo, sogra é assim, até no escuro tá presente. Repito todos os elogios que o visitante Ricardo fez. 10! Continue assim sempre! Abraço, Lina

Anônimo disse...

Kandy,

Temos que agradecer à sogra por ter colocado nosso amor no mundo, no entanto ninguém merece estar com ela nesses momentos especiais!!

Beijos, Lina Maria